Nº 2639 - Dezembro de 2021
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Fraturas e Futuros para a Ordem Internacional Liberal
Dr.
Filipe Alves Domingues

Introdução

O futuro pertence aos patriotas, não aos globalistas

 

Foi com estas palavras que, há pouco mais de um ano, Donald Trump proclamou o fim da ordem internacional liberal. Contudo, mais do que a escolha real das palavras, foi a escolha simbólica do local que imprimiu força política ao anúncio. De todos os palcos, o então Presidente dos Estados Unidos decidiu utilizar a Assembleia-Geral das Nações Unidas para confirmar, à frente de todos os líderes e meios-de-comunicação mundiais, a profecia auto realizável que ele, através da plataforma de autoridade que lhe conferia o cargo de “Líder do Mundo Livre”, estava a encarregar-se pessoalmente de acelerar e promover.

Através desta declaração, o país que criara o sistema internacional baseado em regras, responsável por regular nos últimos 70 anos as relações de poder entre os Estados, refletia para o exterior a sua fratura interna e a abdicava publicamente do seu lugar de liderança, deixando-o à mercê de quem o quisesse conquistar.

Chegados a 2021, porém, e uma vez afastado Donald Trump do poder, impõem-se uma série de perguntas: até que ponto ficou o “trumpismo” enraizado, dentro e fora dos Estados Unidos? Que ator ou atores reúnem as condições e a vontade de ocupar o espaço deixado vazio? Terá a administração Biden capacidade para devolver a credibilidade internacional ao país e recolocá-lo no centro das dinâmicas globais de poder? Afinal está, ou não, a ordem internacional liberal condenada a desaparecer?

Mais do que meras respostas sim-e-não, estas dúvidas constituem um desafio e uma chamada à ação. Se o multilateralismo, assente nos princípios da democracia liberal, não conseguir redescobrir a mesma flexibilidade e o mesmo dinamismo que proclama para o interior das sociedades, reinventando-se a si próprio e apresentando soluções credíveis para os problemas reais dos cidadãos, mais do que dos Estados, então sim, irá desmoronar-se.

E, sim, o regime global que vier a substituí-lo será seguramente pior, de cariz nacionalista, autoritário, tribalista e propício a conflitos.

A questão que temos pela frente é, portanto, estrutural e existencial: como redesenhar o multilateralismo, enquanto elemento agregador da globalização, e, por essa via, salvar a ordem internacional que nos dá mais garantias de paz e desenvolvimento humano?

 

1. A Ordem

Sem entrar nas origens históricas do multilateralismo e do mundo Vestefaliano, a Ordem Internacional Liberal é o sistema de organização coletiva criado no final da 2ª Guerra Mundial, assente em organismos supranacionais e em relações formais entre Estados, com objetivos:

a. Estratégicos – através de uma arquitetura de defesa, entreajuda e cooperação militar, que constituiu a base política para uma nova era de paz e estabilidade e que potenciaria, por sua vez, mais crescimento económico.

b. Económicos – fortalecendo os vínculos comerciais e de investimento entre os Estados, através da livre circulação de bens, pessoas e capitais. Exemplos: Organização Mundial de Comércio, FMI, Banco Mundial, NAFTA, ASEAN.

c. Político-diplomáticos – criando um modelo de concertação entre Estados, do mundo ou de regiões específicas, onde estes pudessem fazer convergir as suas posições políticas e defender interesses comuns no contexto da globalização.

Os primeiros e principais entusiastas deste grande quadro de relacionamento foram os regimes que acreditavam num Estado ao serviço dos cidadãos, onde a dignidade do ser humano e a resiliência das instituições tomavam precedência sobre a autoridade dos líderes. Foram os regimes que já partilhavam os princípios da democracia representativa e do pluralismo partidário, onde existiam eleições livres e alternância de poder, onde se defendia a liberdade de iniciativa privada – como de expressão, associação e reunião – onde existiam checks and balances entre os poderes estatais e os órgãos de soberania, com uma imprensa forte e independente e, sobretudo, um respeito inegociável pelos direitos humanos.

Ao longo das décadas seguintes, a maior parte dos Estados do mundo foi aderindo à lógica da globalização ocidental, até porque muitos se foram convertendo eles próprios em democracias. Foi o caso de Portugal, que em 1976 inaugurou aquilo a que Samuel Huntington chamou a “terceira onda da democracia”.

A tendência manteve-se até ao final do século, em todos os continentes, e até a China parecia encaminhada para o mesmo destino. De facto, no início dos anos 2000, quase dois terços dos países do mundo eram democráticos, mas foi aqui que começaram os problemas.

Um inegável aumento na desigualdade de rendimentos, acentuada pelo desaparecimento de milhões de postos de emprego, tanto por via da deslocação de riqueza para o Sul Global como do fenómeno interno e irreversível da automação, a disrupção permanente nas estruturas sociais e empresariais, aliadas aos efeitos das crises financeira global de 2008 e do euro de 2012-2013, além de uma crescente saturação com as falhas dos governos, contribuíram para a – real ou percecionada – decadência dos valores democráticos e do próprio Ocidente.

Para complicar ainda mais o cenário, a ordem internacional que conhecemos hoje tem vindo a ser dominada por um número crescente de atores não estatais, com interesses conflituantes e que não raramente competem até com os Estados.

Desde logo, e formalmente ao serviço dos Governos, as próprias instituições de Bretton Woods, bem como as agências e organismos que compõem o sistema das Nações Unidas. Ao puzzle multilateral, foram-se juntando mecanismos de integração, alguns baseados na geografia, outros em alianças ideológicas, outros ainda em interesses industriais/setoriais/temáticos, e que se tornaram verdadeiros atores globais com força diplomática e peso económico suficiente para redesenharem o ordenamento internacional de onde emergiram.

Desta rede, fazem ainda parte um universo de ONG nacionais e globais, umas amplamente financiadas, outras cirurgicamente posicionadas junto dos media e da opinião pública, e com uma linguagem que apela diretamente às emoções dos cidadãos, consumidores, contribuintes e eleitores.

Existe ainda um número crescente de empresas multinacionais que, pela riqueza que controlam, pelo número de pessoas que empregam e pela omnipresença da tecnologia que detêm, adquiriram um estatuto de quase impunidade.

Na dimensão securitária, grupos armados e organizações terroristas que não reportam a qualquer Estado, nem se regem pelas normas do Direito Internacional Humanitário, adquiriram capacidades bélicas para atingir alvos civis ou infraestruturas críticas de qualquer país do Mundo. Desenvolveram capilaridade operacional e redes internacionais, tornando-se capazes de controlar, ou pelo menos destabilizar regiões inteiras, como é o caso do Sahel, onde uma teia em permanente mutação, composta por jihadistas, milícias, tribos e grupos étnicos, impede o êxito de uma operação militar composta por algumas das forças armadas mais profissionais da história da humanidade. Da Al-Qaeda ao Estado Islâmico, da Frente Al-Nusra ao Ejército de Liberación Nacional, do Al Shabab ao Boko Haram e ao Hezbollah, todos têm vasos comunicantes entre si e com grupos menores de insurgência civil, ação transfronteiriça, nalguns casos intercontinental, e todos desempenham um papel no xadrez global.

É preciso ainda considerar unidades de poder local como cidades, que reúnem mais riqueza, população, indústrias com capacidade instalada e tecnologia mais avançada do que muitos Estados. O PIB de Seul é do maior que o da Holanda.

Finalmente, o menor e mais recente fenómeno dos global influencers, como a jovem ativista Greta Thunberg, que soma quase 11 milhões de seguidores no Instagram, celebridades como a cantora Rihanna, ou desportistas como Mesut Özil, que não competem naturalmente com os Estados, mas que mobilizam a opinião pública e condicionam a agenda política.

Quanto ao contexto puramente político, já se escreveu demasiado e demasiado bem sobre o fenómeno da polarização e sobre as pulsões nacionalistas que contaminam as sociedades liberais, mas todo este sistema, cuja complexidade não tem de ser mais desenvolvida, está de facto ameaçado por dentro, por outbreaks de tribalismo, protecionismo e guerras comerciais.

Na verdade, é a primeira vez desde o final da Guerra Fria em que o sistema liberal se encontra no meio de um jogo de pinças, entre ameaças externas e internas. Na vertente externa, enfrenta um número considerável de adversários de cariz mais ou menos autoritário – Rússia, Bielorrússia, Polónia, Hungria, Turquia, Venezuela, Filipinas, Brasil, Tailândia, Myanmar – que já aprenderam que não precisam de ser económica, nem tecnológica, nem militarmente superiores ao Ocidente para explorar as suas fragilidades, interferir nos seus assuntos internos, aprofundar divisões e causar danos reais. Mais ainda, o sistema liberal ficou demasiado dependente de uma superpotência iliberal, cuja economia é dirigida centralmente e de acordo com critérios políticos definidos por um único partido, de inspiração e prática marxista-leninista. É certo que esta superpotência é das maiores beneficiárias do capitalismo globalizado e que não tem interesse em destruí-lo. Já lá iremos.

Mas o que é realmente original nesta crise é o facto da maior ameaça vir de dentro… há já quase duas décadas.

Em 2006, a dupla que liderava as Nações Unidas era constituída por um ganês que dispensa apresentações, Kofi Annan, e por um britânico, Mark Malloch-Brown, que ocupava o cargo de Secretário-Geral Adjunto. Já agora, por curiosidade, o representante permanente dos Estados Unidos junto da ONU, nessa altura, era nem mais nem menos do que John Bolton. Ora, a invasão norte-americana do Iraque, três anos antes, tinha criado uma atmosfera de conflitualidade de tal maneira acentuada entre Nova Iorque e Washington, que Malloch-Brown, num gesto praticamente sem precedentes no histórico de punhos-de-renda onusianos, acusou a administração Bush de hipocrisia por instrumentalizar as Nações Unidas a seu bel-prazer no exterior, enquanto as descredibilizava no interior dos Estados Unidos: “Much of the public discourse that reaches the U.S. heartland has been largely abandoned to its loudest detractors such as Rush Limbaugh and Fox News (…) You will lose the U.N. one way or another”, disparou o deputy de Annan, num discurso público.

Ou seja, nada disto é novo e reflete uma tendência: é justamente o país que desenhou o sistema internacional à sua imagem, semelhança e interesses, e que o liderou desde então, quem parece estar a divorciar-se das instituições multilaterais de maneira mais chocante.

A maior ameaça à ordem mundial liberal baseada em regras vem, assim, da mais influente sociedade ocidental democrática, cujos conservadores agora até Salazar acharam por bem começar a elogiar.

 

2. Placas Tectónicas em Movimento

Era uma das melhores notícias das últimas décadas. Para a ONU, para os Estados Unidos, mas sobretudo para a Colômbia: o conflito armado mais antigo da América estava prestes a terminar.

Com o acordo de paz finalmente assinado pelas duas partes, o Presidente Juan Manuel Santos confiou o machado-de-guerra nas mãos do povo, para que o enterrassem juntos e definitivamente, enquanto nação.

Convocou-se então um referendo, destinado a ratificar, em primeiro lugar, os termos da paz, que o governo de Bogotá tinha conseguido forjar com a guerrilha narco-terrorista das FARC, mas também o próprio legado político do Presidente. Só que no dia em que foram chamados a pronunciar-se sobre o modelo de reconciliação, que iria definir o futuro da sua convivência coletiva, os colombianos disseram: Não…

A vontade popular rejeitava, assim, a proposta de colocar um ponto final a quase 60 anos de sequestros, assassinatos, violações, extorsão e recrutamento forçado de menores, que tinham feito da Colômbia o país com mais Pessoas Internamente Deslocadas do mundo e um dos principais recetores de ajuda humanitária em todo o continente.

Mas o que o resultado do referendo mostrava não era que os colombianos estavam contra a paz. Significava, sim, que estavam contra o perdão às FARC, ou, pelo menos, contra aquele perdão, tal como fora negociado e tal como lhes fora vendido.

Contudo, mais do que um simples falhanço político, o episódio colombiano refletiu em todo o seu esplendor o divórcio crescente entre representantes e representados que alastrava por todo o Ocidente democrático, sintomático do final de era que tantos líderes e observadores prenunciavam já naquele atípico 2016. As relações de poder entre Estados, mas sobretudo dentro dos Estados, tal como haviam sido inscritas no ordenamento liberal, tinham cada vez mais dificuldades em responder aos anseios reais dos cidadãos e, por seu lado, os cidadãos mostravam-se progressivamente alheados das mensagens habituais e das receitas obsoletas oferecidas pela liderança distante das elites tradicionais. E queriam mudança.

Ao mesmo tempo, o ‘Não’ colombiano materializava outra coincidência: tal como ocorrera quatro meses antes, do outro lado do Atlântico, a aposta por uma saída referendária significava um erro fatal para um governo democrático, que decidira arriscar todo o seu capital político numa jogada em que viria a perder clamorosamente. Apesar de as discrepâncias entre a Colômbia e o Reino Unido não poderem ser mais evidentes – uma colónia no Novo Mundo americano e um império colonial da Europa; uma jovem democracia católica e uma antiga monarquia protestante; um mercado emergente, abundante em recursos naturais, e uma economia desenvolvida, rica em indústria, serviços e tecnologia – as duas nações partilhavam uma alteração de paradigma na sua estabilidade social e política.

Acelerado pela emergência voraz da China; assaltado pela estagnação secular da economia ocidental e sobressaltado por uma onda crescente de angústias sociais; contaminado pela incerteza em torno das alterações climáticas, das novas ameaças terroristas e da cibersegurança, o Mundo Novo, que não terminava de nascer, deixara de encontrar respostas nas fórmulas do Mundo Velho, que não terminava de cair.

E muito concretamente, o grande desígnio político do Ocidente, concretizado na emergência das democracias liberais e no triunfo da economia globalizada, vinha a perder tração de uma maneira geral.

Segundo a Freedom House, no mesmo ano do Brexit, do referendo da Colômbia e da eleição de Donald Trump, já mais de 50 países evidenciavam retrocessos democráticos, não por golpes de Estado ou ações violentas inesperadas, mas como consequência das decisões dos seus próprios cidadãos. De acordo com o relatório ‘Freedom in the World 2019 – Democracy in Retreat’, “political rights and civil liberties declined in 68 countries, while only 50 countries made gains”. No mesmo estudo, menos de metade dos Estados do mundo foram catalogados como Free Countries (44%) e mais de um quarto caíram na categoria Not Free (26%).

Mas talvez a mais surpreendente das preocupações publicadas por este watchdog, financiado pelo governo de Washington, estava relacionada com a recente erosão da democracia e perda de liberdades, nos próprios Estados Unidos: “the pillars of freedom have come under attack here in the United States”.

Estavam, portanto, criadas as condições internas para o surgimento de Donald Trump e para que muitas das suas decisões externas tivessem respaldo, público e partidário. A nível multilateral, as ações do Presidente limitaram-se a precipitar os Estados Unidos para a materialização de um antigo desejo de muitos republicanos: o desaparecimento, ou a perda de liderança num conjunto de palcos onde tradicionalmente os seus interesses eram projetados:

a. Saída da UNESCO;

b. Início do Procedimento para Saída da OMS;

c. Saída do Conselho dos Direitos Humanos da ONU;

d. Saída do Acordo de Paris;

e. Saída do Acordo Nuclear com o Irão;

f. Chantagens, ameaças e sanções a juízes do Tribunal Penal Internacional, numa escalada de agressividade mesmo quando comparada com os ataques desferidos já pela administração de George W. Bush;

g. Mudança da embaixada americana em Israel para Jerusalém, deixando de reconhecer o estatuto internacional da Cidade Santa, num movimento criticado unanimemente pelos restantes 14 membros do Conselho de Segurança;

h. Corte nas contribuições para a UNRWA, que tinha como finalidade exclusiva o apoio humanitário aos mais de três milhões de refugiados palestinianos no Médio Oriente – a United Nations Relief and Works Agency reunia consenso bipartidário desde a sua criação, em 1950, recebendo financiamento de todos os presidentes norte-americanos, por ser vista como um pilar da política dos Estados Unidos para a estabilidade da região, a tal ponto que as contribuições individuais e diretas dos cidadãos norte-americanos superavam as doações de Estados como a China, a Rússia e a Índia.

Mas Trump é – ou foi – realmente uma figura transitória e, por mais que até possa deixar o seu legado nos Estados Unidos e noutros países, temos o dever de olhar para as suas ações como como alerta e como um sinal.

A primazia internacional dos EUA, como a conhecíamos, desapareceu e até a decisão da Comissão Europeia assinar o acordo de investimento com a China, nas vésperas da tomada de posse de Biden, pode ser interpretada como uma mensagem para Washington de que, independentemente do Presidente, a U.E. não está disposta a depender tanto da relação com os Estados Unidos, no longo prazo. A decisão europeia é também sintomática do que já é o novo paradigma de negociações bilaterais e multilaterais, em que as relações entre os Estados vão ser mais seletivas e definidas em função de circunstâncias específicas, tornando-se progressivamente mais difícil catalogar os países e as regiões como adversários ou aliados.

Perante este movimento de placas tectónicas, em que nenhum governo parece ter as condições ou a vontade política para liderar a comunidade internacional, é nas mãos da ONU que acaba por recair uma oportunidade ímpar: agarrar o leme da navegação global e mostrar que ainda são as Nações Unidas as detentoras de uma bússola moral coletiva, capaz de nortear as grandes decisões do sistema mundial.

Apesar de cronicamente refém da sua natureza de árbitro imparcial e sem qualquer poder executivo, a ONU pode e deve reclamar a legitimidade de ser a única instituição com o mandato e a autoridade moral para fazer convergir todos os Estados do planeta. É insubstituível nesse papel, mas deve mostrar capacidade de, pelo menos, manter todos os tripulantes dentro do barco.

 

3. Multipolar ou Apolar?

Até a Rússia admite, através da sua academia diplomática, que “the actual multistructurality of the emerging world order (…) refutes any hierarchical structure in global politics and works to strengthen horizontal ties – our assessments should rely not on the prevalence of this dichotomy, but on polycentricity being a universal, complex and self-regulating system”.

O que é facto é que este sistema policêntrico não beneficia apenas os interesses de Moscovo. Para todos os desafios diplomáticos e formais que apresenta, uma ordem internacional que gravite em torno não apenas de um, ou dois grandes centros de poder, constitui uma das melhores defesas que a humanidade pode ter contra o escalar de um conflito bipolar e contra a suposta “armadilha de Tucídides” moderna, que coloca os Estados Unidos e a China em inevitável rota de colisão.

Contudo, o mundo atual não corresponde exatamente à definição de multipolar, sobretudo pelo facto de existir um número virtualmente ilimitado de atores, especialmente os não-estatais já referidos, que retiraram o monopólio do poder aos Estados.

Há quase uma década que Ian Bremmer, presidente do EurAsia Group, uma das mais prestigiadas consultoras de risco político no Ocidente, conceptualizou a ideia de G-zero. E há mais de uma década que Richard N. Haas, presidente do think tank Council on Foreign Relations, escreveu que “…power is now found in many hands and in many places”. António Guterres rejeita a caracterização do sistema contemporâneo como unipolar, bipolar ou mesmo multipolar, preferindo considerar que a presente ordem internacional é simplesmente caótica” …“. Mas seja qual for o rótulo académico que quisermos utilizar, o elemento incontornável é a consolidação da China como a única superpotência capaz de rivalizar com os Estados Unidos e de equilibrar, ou desequilibrar a distribuição de poder.

A China é o principal investidor e parceiro comercial dos dois continentes com maiores projeções de crescimento demográfico para as próximas décadas: África e América Latina. Só no 1º semestre de 2020, enquanto estávamos todos encerrados em casa, o Brasil disparou para 34 mil milhões de dólares as exportações para a China, tendo vendido mais do dobro do que comprou.

Pequim controla ainda o mercado de metais raros, essenciais para as indústrias do futuro, ocupando cada vez mais espaço na agenda dos governos e das empresas, frequentemente sem grande esforço. Por exemplo, apesar de ser o maior investidor estrangeiro em África, o continente só representa 4% do investimento estrangeiro da China no mundo.

Por não ser o objetivo deste artigo, não iremos entrar em detalhes sobre a política exterior chinesa, muito menos sobre os seus desafios políticos internos, mas vamos sim ter em consideração aqueles que, ao analisar as suas decisões e movimentos, podemos deduzir serem os seus grandes objetivos diplomáticos e estratégicos: consolidar a sua liderança indiscutível no sudeste asiático (na “esfera de influência” chinesa não faltam rivais, nomeadamente o Japão, a Coreia do Sul e a Índia), mesmo se isso significar um desafio aos interesses estratégicos dos Estados Unidos na região; projetar essa influência pela massa continental euro-asiática; ser percecionada como um ator global poderoso, que atingiu o sonho do “grande rejuvenescimento”, mas que se mantém um parceiro bem intencionado e sem ambições imperialistas – apesar de cada vez mais campainhas estarem a soar em governos de todo o mundo.

De facto, apesar do empenho numa política de boa vizinhança – como o corrobora a recente assinatura do Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) – a falta de aliados regionais continua a ser uma das maiores fragilidades geoestratégica da China, que, apesar da sua nova estratégia económica de circulação dupla, continua a ter como interesse vital a defesa das saídas marítimas para as suas exportações, que em 2019 valeram 18,4% do PIB.

O regresso da Austrália – ao final de 13 anos! – aos exercícios militares de Malabar no quadro da Aliança QUAD, com os Estados Unidos, a Índia e o Japão, é prova desse ceticismo com que os restantes atores regionais encaram o indisfarçável expansionismo chinês.

Adicionalmente, vale a pena considerar aquela que é seguramente a face mais visível, mais publicitada e mais analisada em todos os meios ocidentais da diplomacia chinesa: o compromisso com as operações de paz da ONU.

Em 2020, a China tinha mais de 2500 soldados e polícias destacados junto das Nações Unidas, colocando-se entre os 10 países que contribuem com mais tropas para o peacekeeping.

Isto é tanto uma projeção de força como uma demonstração de goodwill e até de inteligência, já que a decisão foi não competir com os Estados Unidos em termos de orçamento – Washington continua a pagar sozinha 28% das operações de paz, cerca do dobro de Pequim – mas, sim, onde havia espaço: no número de homens. E já que este é um artigo sobre a reconfiguração e as transformações no xadrez global de poder, quantifiquemos a evolução do envio de tropas chinesas para operações de paz, nas últimas duas décadas.

2002: 123 | 2004: > 1000 | 2008: > 2000 | 2015: >3000

Diplomatas e analistas ocidentais não hesitam em concluir que a verdadeira agenda da China é redesenhar as operações de paz e alterar a sua própria natureza, para as afastar da defesa dos direitos humanos e dos processos democráticos, fortalecendo a narrativa internacional de êxito do seu modelo político, em oposição aos fracassos ocidentais.

De facto, o regime autoritário chinês, que coloca o supremo interesse do Estado à frente das liberdades dos indivíduos, não só gerou mais prosperidade do que o Ocidente nos últimos 20 anos, tendo retirado centenas de milhões de pessoas da pobreza, como muito recentemente, na gestão da pandemia, se provou mais eficaz do que os mecanismos democráticos.

Mas se a emergência da China estava anunciada há tanto tempo, com uma acumulação tão evidente de sinais, como é que Washington ainda não tem um “Long Telegram”, como teve durante a Guerra Fria, com um quadro de referências e propostas de atuação políticas, diplomáticas estratégicas, em que se basear?

Entre outros motivos, porque os Estados Unidos, como a Europa, como todos os países do mundo, beneficiaram e muito do dinamismo económico da China e das suas ambições internacionais. Tal como a China deve a sua prosperidade à globalização e ao estabelecimento de relações comerciais e de investimento com Estados que são, ao mesmo tempo, parceiros e adversários.

Três possíveis conclusões:

a. A estratégia política da China obedece a uma visão económica. O Ocidente mantém uma estratégia económica para perseguir uma visão política.

b. A ordem internacional, presente e futura, mais liberal ou menos liberal, mais apolar ou mais multipolar, será indelevelmente marcada por um regresso atualizado da “competição entre superpotências”, um conceito reconhecido formalmente no principal documento estratégico dos EUA.

c. Nenhuma das superpotências quer subverter as regras do jogo internacional, ou, pelo menos, não quer mudar de jogo, já que as duas dependem fundamentalmente do sistema atual para assegurar o seu bem-estar económico e a sua estabilidade – para não dizer a sua sobrevivência – política. A integração na ordem liberal – com os seus permanentes fluxos transfronteiriços de bens, produtos, energia, tecnologia, talento e capitais – continua a ser um eficaz dissuasor de conflitos.

 

4. Portugal

“Há dois grupos de países na União Europeia. Os pequenos e os que ainda não se aperceberam que são pequenos”.

A frase é de Enrico Letta, primeiro-ministro italiano entre 2013 e 2014, e reflete com exatidão o dilema de posicionamento estratégico da comunidade geopolítica e geoeconómica onde nos inserimos.

Por serem evidentes as vantagens de pertencermos a este “gigante económico e anão político”, a relação de poderes mais benéfica para Portugal seria uma em que a União Europeia conseguisse manter uma tripolaridade económica com Pequim e Washington. Até podemos rejeitar a premissa simplista de que “se a Europa prosperar, Portugal prospera”, mas temos de aceitar a dramática “se a Europa entrar em crise, Portugal entrará numa crise maior”.

Mais proveitoso ainda, mas manifestamente mais difícil, seria esperar uma futura tripolaridade política, dada a manifesta e crónica descoordenação entre as agendas externas dos Estados Membros e que potenciam a irrelevância política do cargo de “Ministro dos Negócios Estrangeiros Europeu” – uma função que dificilmente poderia ter saído mais desprestigiado da desastrosa visita de Borrel a Moscovo.

De resto, a própria China, que teve historicamente uma perspetiva positiva sobre o processo de integração europeia, considera que uma Europa forte e coesa poderá servir os seus interesses, contribuindo para um equilíbrio mundial multipolar, até porque não tem com a U.E. os antagonismos estratégicos que tem com os Estados Unidos.

Quanto às ferramentas nacionais que podemos utilizar autonomamente, recordemos uma frase deliciosamente verdadeira do tenente-coronel e historiador norte-americano Conrad Crane: “existem duas abordagens à guerra: a assimétrica e a estúpida”.

Tal como fez ao longo da sua história, Portugal deve continuar a utilizar a mesma matriz de pensamento dos “conflitos assimétricos” (assymetrical warfare ) para afirmar com êxito os seus interesses no exterior, fazendo-se valer dos seus elementos diferenciadores, da sua rede de alianças (geoeconómicas, transatlânticas, linguísticas e histórico-culturais), do seu soft power e mesmo de ferramentas que arrepiam os mais conservadores, como a diplomacia desportiva ou a diplomacia digital.

Por dispor de um território continental exíguo e de uma plataforma marítima virtualmente impossível de controlar, como de aproveitar sozinho; por ser demográfica e economicamente irrelevante no contexto global; por não ter conectividade a redes de mercados nem a consumidores com elevado poder de compra; por ter recursos naturais escassos e um regime fiscal assustador para o investimento estrangeiro, Portugal é muito mais um espectador do que um ator, mesmo a nível regional. Mesmo a nível sub-regional, se olharmos apenas para a Europa do Sul.

Teremos sempre de navegar em ondas maiores do que a nossa pequena embarcação, por mais digna que seja. E é por isso que, num quadro de globalização incerta e com superpotências em enfrentamento, a diplomacia é tão importante – e devia ser muito mais valorizada e acompanhada.

Quanto às ferramentas que temos ao nosso dispor, comecemos pelo facto de sermos previsíveis. A nossa política exterior não é partidarizada, nem ideologizada, é uma política de Estado. Esta tradição democrática dá boas garantias aos nossos parceiros internacionais – Estados, organizações, instituições financeiras multilaterais – de que os nossos compromissos não serão postos em causa pelos protagonistas do ciclo eleitoral seguinte.

Não faz sentido, portanto, reinventar a roda. A nossa hierarquia de prioridades diplomáticas está bem definida e deve permanecer: União Europeia, relação transatlântica (Estados Unidos em primeiro lugar, mas também, desde o Brexit, é devido um regresso de atenção especial ao Reino Unido), países de língua portuguesa (CPLP). Depois, mais do que nunca, manter uma agenda positiva face ao multilateralismo e em prol do sistema internacional, que continua a proporcionar-nos as maiores e melhores caixas de ressonância para defender os nossos interesses.

Nota breve: havendo mais recursos, sem dúvida nenhuma que seria interessante desenvolver uma dimensão mediterrânica onde pudéssemos servir de ponte Sul-Norte – mais do que qualquer vizinho europeu. A proposta seria reforçar os mecanismos de diálogo político e reforçar a presença diplomática e de representantes da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) em todas as capitais do Magreb, com destaque para Rabat – que é a capital mais próxima de Portugal e que governa um dos dois únicos países com quem partilhamos fronteira.

Depois, o nosso sólido posicionamento enquanto honest broker, assente no capital de simpatia conquistado, há séculos, junto de países de todo o planeta – não só da nossa vizinhança próxima – graças a uma atitude geral mais construtiva do que imediatista, mais multilateral, por vocação, do que imperialista, mais pragmática do que calculista. As eleições de Guterres,
Vitorino e Barroso são apenas as partes mais visíveis de um grande iceberg.

A lista poderia continuar, mas talvez seja mais interessante deixar aqui algumas propostas:

a. A nível temático fará sentido propor algumas áreas de intervenção não exploradas, sem descaracterizar o essencial. A nossa diplomacia é frequentemente acusada de imobilismo ou alheamento da realidade, de ser excessivamente monolítica e resistente à mudança, de não ter voz própria e ser demasiado seguidista das posições de Bruxelas, ou de Washington. Mas nenhum país geobloqueado, e imerso nas condições descritas acima, é capaz de sobreviver – e, vá lá, de prosperar – durante quase 900 anos sem uma grande escola diplomática, cuja qualidade é reconhecida universalmente. Dentro do Palácio das Necessidades, não falta quem seja crítico do funcionamento da casa, excessivamente vertical, excessivamente hierarquizado, fossilizado em processos seculares e essencialmente fechada ao exterior. A vontade até está lá, o talento individual nem se fala, existem várias iniciativas nesse sentido, mas faltam mais ações. A nossa diplomacia deve abrir-se mais: às universidades, ao setor privado, à cooperação interinstitucional, aos centros de pensamento, à diplomacia privada.

b. Coordenar efetivamente a nossa política de cooperação para o desenvolvimento com a nossa participação em missões de paz. A projeção de força portuguesa em cenários de conflito ou pós-conflito não pode estar divorciada da reconstrução dos Estados, sob pena do investimento político, militar, financeiro e humano não nos dar os devidos frutos.

Já o Secretário-Geral da ONU defende um modelo de “continuum da paz”, composto por uma sequência virtuosa de: prevenção à resolução de conflitos, à peacekeeping, à peacebuilding, ao desenvolvimento de longo prazo.

Ainda por cima, a nossa política de cooperação atual concentra-se no que o governo chama “desenvolvimento humano” e divide-se em dois pilares: saúde e educação. Não é possível tocar em lugares emocionais mais fortes junto das populações e dos líderes dos teatros onde operamos e o capital político que daqui advém tem de ser aproveitado, em benefício dos intangíveis diplomáticos que compõem a nossa reputação internacional, mas que se traduza também em novos horizontes para as nossas instituições, empresas e cidadãos.

Se os portugueses tivessem claras as vantagens do investimento público em política externa, talvez fosse possível resolver o problema orçamental crónico do Ministério do Negócios Estrangeiros – que continua a ter uma das dotações orçamentais mais baixas de todos os ministérios e que, naturalmente, não fica resolvido com a cooperação delegada da Comissão Europeia.

 

5. Propostas

Quando Trump anunciou o fim do sistema internacional liberal não estava, de facto, a inventar nada. Estava apenas a dar eco e a cavalgar as frustrações de parte significativa da população ocidental.

Na verdade, o sistema liberal, como um todo, só entrou em crise porque o liberalismo entrou individualmente em crise nos Estados democráticos e liberais. As suas limitações tornaram-se evidentes aos olhos de todos, sobretudo quando contrastadas com o êxito aparente dos regimes autoritários e com a autoconfiança exacerbada dos seus líderes.

Mais recentemente, a pandemia começou a arrasar com milhares de empresas, sobretudo pequenas e médias, ao mesmo tempo que inadvertidamente fortaleceu as grandes, levando a um aprofundamento da fratura entre os rendimentos imediatos, como das aspirações de longo prazo, dos microempresários e das multinacionais. Pela mesma lógica, é previsível que venha a ser acentuada a tendência de rutura nas próprias sociedades, entre os indivíduos que conseguiram beneficiar da crise e os que ficaram (ainda mais) para trás, perdendo muito ou tudo.

O caráter global e interconectado das megatendências e desafios do século XXI – e de que a pandemia é só o mais recente e flagrante exemplo – exige abordagens coletivas e soluções transnacionais.

Isto não quer dizer obviamente retirar soberania e poder de decisão aos Estados. Como escreveu o Papa Francisco na encíclica Fratelli Tutti de 2020: “nas famílias, todos contribuem para o projeto comum, todos trabalham para o bem comum, mas sem anular o indivíduo; pelo contrário, sustentam-no, promovem-no”. Esta ideia é válida para as famílias, como para os Estados, como para qualquer organização coletiva que se pretenda resiliente e capaz de combater a entropia intrínseca e fatal aos sistemas fechados.

Reforçar o multilateralismo é uma tarefa que serve, ao mesmo tempo, os nossos interesses individuais e coletivos, egoístas e altruístas. Para isso, contudo, a ordem internacional liberal precisa de renovar-se profundamente, tendo desafios urgentes e prioritários.

Os urgentes passam por reconhecer os erros do passado recente e por colocar uma lupa sobre as pulsões nacionalistas e a conflitualidade sociopolítica dentro dos Estados – não foram plantadas nem por russos, nem por marcianos – clamando por mais soberania, por mais respeito pelas decisões individuais dos cidadãos. O multilateralismo do futuro precisa de se reinventar sob o peso da ameaça que é o desinteresse ou a hostilidade dos contribuintes e eleitores. Só conhecendo as fragilidades do atual sistema é que poderemos (re)desenhar estruturas de governança globais mais eficazes, atrativas, flexíveis e resilientes.

Entre os prioritários, podemos considerar a mudança de paradigma na abordagem teórica e prática aos problemas, reconhecendo definitivamente a necessidade vital de trabalhar com o setor privado. Os líderes do sistema internacional devem ser coerentes com a sua própria mensagem “problemas coletivos exigem respostas coletivas” e reconhecer que os Estados e os organismos que dirigem precisam de sair do conforto das suas bolas de sabão e interagir mais com os agentes económicos – em desafios que vão das alterações climáticas aos processos de paz – não só para acederem a mais talento e recursos, como importarem boas práticas ao nível da accountability e da profissionalização, com prazos e objetivos, competitividade intra e interinstitucional, meritocracia e prestação de contas, para dentro como para fora das organizações.

Os desafios atuais não se resolvem com imobilismos monolíticos. Para que o momento iliberal não se transforme numa era iliberal, o sistema tem de se atualizar e tornar-se fit for purpose neste convulso século XXI e isso depende exclusivamente das ações e omissões dos democratas liberais.

Aqui ficam algumas propostas:

a. Colocar o indivíduo, não o Estado, no centro da ação do sistema multilateral.

No futuro previsível que nos aguarda, com as novas tecnologias a desempenharem um papel de mediação ainda mais omnipresente e ativo nas interações entre seres humanos, por sua vez mais conscientes da sua individualidade, tal como potencialmente mais alienados uns dos outros e com menor capacidade intercompreensão, precisaremos fazer do Cidadão o destinatário primeiro e último de todo o trabalho dos organismos internacionais. Seria politicamente e economicamente benéfico que se construísse um sentimento de pertença a uma comunidade global e onde o principal sonho – dos indivíduos e das nações – fosse o da liberdade, associada à dignidade da pessoa humana. Por exemplo, a visão da OMT deveria estar focada na resposta às demandas de comércio justo, métodos de produção ambientalmente sustentáveis, bem-estar animal, adotando boas práticas que protejam a segurança, a privacidade e os direitos digitais dos consumidores. Os grandes pressupostos do sistema, contudo, não devem alterar-se. O multilateralismo terá de continuar a assentar em fortes relações no âmbito da segurança e num compromisso inegociável para com uma economia global aberta. Esta deve continuar a ser a pedra de toque do sistema e, juntamente com a defesa da democracia, das liberdades individuais e dos direitos humanos, o seu principal elemento identitário coletivo. O que deve mudar é o foco: do Estado para o indivíduo, da verticalidade para a horizontalidade, como uma rede e não como uma escada, de modo a aproximar os cidadãos das instituições. A ideia é, portanto, individualizar o multilateralismo. Pode parecer contraditório, mas o caminho passará necessariamente por fortalecer e investir mais nesse mesmo multilateralismo.

b. Reformar e dar mais meios à ONU.

Ao longo do século XX, as sociedades democráticas têm-se demonstrado mais resilientes a crises do que as autoritárias, por evidenciarem: ao nível da liderança, competência e compaixão; no seu interior, solidariedade e confiança. A confiança que essa liderança inspira advém frequentemente do exemplo. Está mais do que na hora das agências e órgãos da ONU darem o exemplo e “put their money where their mouth is”. É urgente uma reconfiguração do Conselho de Segurança, que deixou de refletir as dinâmicas globais de poder. É legítimo que num modelo futuro os cinco membros permanentes mantenham algum tipo de voto de qualidade, o que não parece aceitável é que qualquer um deles, individualmente, possa continuar a bloquear ações determinantes para salvar vidas ou impedir atrocidades. Dentro e à volta da ONU, não faltam grupos de trabalho, públicos e discretos, de países e ONG, para discutir os métodos de trabalho, os conceitos e o funcionamento da organização, portanto não faz sentido nem há espaço para abordar essa matéria agora. Existe, sim, espaço para exigir uma maior responsabilização do trabalho das Nações Unidas. Para aproximar estes organismos dos cidadãos, é preciso retirar-lhes o jargão indecifrável, as siglas, a opacidade e o excesso de formalismos. Mas os organismos também precisam de mais poderes efetivos de escrutínio e intervenção sobre as injustiças a ilegalidade, junto dos Estados, nomeadamente no âmbito do terreno onde irão jogar-se os grandes conflitos deste século: o ciberespaço. Já lá vamos. Adicionalmente, há décadas que o “mundo livre” se encontra órfão de líderes que inspirem as populações. O Secretário-Geral da ONU tem de ser essa figura, mas para isso precisa de muito mais autonomia e de mais instrumentos de influência, não pode trabalhar 90% nos bastidores, sob pena de ter a cidadania global a questionar “então, mas o que é que este senhor anda lá a fazer?”. Enquanto instituição independente e não partidária, que precisa fortalecer-se com mais instrumentos de ação e intervenção, deverá ser responsabilizada pelos seus falhanços – que é o caminho fácil, já que os falhanços são inevitáveis – como elogiada e valorizada pelas suas vitórias – que não faltam, mas que não são conhecidas. Como diz o Secretário-Geral “não há câmaras de televisão quando um conflito é evitado”. Só por essa via ganhará a legitimidade e a autoridade que parece faltar-lhe face aos desafios do século XXI. Mas por cima das reformas, precisa de uma narrativa emocional renovada, que dê sentido político ao papel insubstituível da ONU.

c. Regulação

“O Poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”, escreveu Lorde Acton, no século XIX. Da mesma maneria que a democracia precisa do primado da lei e de contrapoderes que restrinjam os seus líderes, também o sistema internacional precisa de uma regulação eficaz, que mitigue assimetrias, controle o exercício discricionário do poder e previna/sancione ações ilegais – dos Estados, das empresas e dos restantes atores do palco global. O sistema liberal, para não ruir, terá de definir e implementar um quadro de – não maior, mas – melhor regulação. O mercado não criou sozinho a concentração de riqueza em poucas mãos, o aumento das desigualdades, os crimes político-financeiros, nem o crescimento das pulsões extremistas no Ocidente. Pela mesma lógica, não será o mercado sozinho a resolver estes problemas. Também aqui é preciso adotar uma perspetiva integrada dos problemas, que depois se traduza num quadro regulatório – aberto e defensor da globalização, mas – que possa ter exceções, sempre e quando se justifique. Ainda no ano passado, em Berlim, o Bundestag aprovou uma lei que permite ao governo apertar o controlo sobre a aquisição de empresas alemãs por investidores não-europeus. É um magnífico exemplo do que Richard N. Haas chama “multilateralism à la carte (…) It would not eliminate nonpolarity, but it would help manage it and increase the odds that the international system will not deteriorate or disintegrate” Haverá seguramente um “ponto óptimo”, ou próximo disso, onde possamos equilibrar a nossa redescoberta necessidade de soberania estratégica com a abertura global dos mercados. Todos os sistemas fechados caminham para a entropia e o liberalismo – tal como todas as ideologias – não contém em si mesmo uma fórmula universal que apresente soluções para tudo, graças apenas às suas intenções bondosas. Depende das mãos que o utilizam e precisa de ser atualizado, até porque, se defendemos a meritocracia, a competição como motor do desenvolvimento e da inovação, é do próprio sistema que tem de partir o exemplo de permeabilidade a mudanças, adaptações e melhoria continua.

d. Ciberespaço

Manter a aposta na agenda climática é quase uma ‘lapalissada’.

A defesa de melhores práticas de sustentabilidade ambiental responde, por um lado, aos objetivos das empresas e instituições financeiras que movem parte da economia mundial – e que se encontram maioritariamente na Europa, ou, pelo menos, no Ocidente – como, por outro, às exigências das gerações presentes e futuras. Mais ainda, é uma poderosa arma emocional para esgrimir contra a narrativa chinesa. Muitíssimo mais difícil de implementar é uma agenda de regulação do ciberespaço, sobretudo porque todas as grandes (e médias e pequena) potências realizam diariamente operações de ciberconflito para atacar os seus adversários. É muito mais barato, muito mais seguro e muito mais rápido contratar-formar-equipar-destacar um exército de trolls e hackers do que uma força armada convencional. Graças ao ciberconflito, um país não precisa ter uma economia de triliões de dólares, nem investir 10% do PIB em Defesa para conseguir causar danos reais aos rivais, estejam eles perto ou longe, sejam eles empresas de telecomunicações, serviços centrais do Estado ou infraestruturas energéticas. Uma vez que já se encontra avançada a discussão sobre “quando é que um ciberataque é um ato de guerra?”, o efeito destas operações deverá continuar, por enquanto, a ser limitado e os seus objetivos a serem mais destabilizar, subverter e roubar informação do que destruir. Contudo, e uma vez que este é a dimensão de confronto entre os Estados que ainda não se encontra regulada por qualquer convenção internacional, sendo o equivalente a um território sem lei, o sistema internacional não dispõe de muito tempo para apresentar soluções para este problema inevitável. Apesar de todos os dias serem prevenidos incontáveis ciberataques em todo o Mundo, a nível de quadro regulatório internacional e da vontade política necessária para o negociar e implementar, este é provavelmente mais um caso histórico em que os Estados só serão levados a reagir quando já for tarde, isto é, depois de estar causado algum estrago de proporções – ao dia de hoje – incalculáveis. Adicionalmente, é no digital que se encontra a chave para a continuidade do sistema internacional, porque é o espaço onde os cidadãos, da Patagónia ao Alasca, da Escandinávia ao Cabo, das Fiji a Vladivostok, já procuram a maioria das respostas – e das perguntas – para as suas vidas. Por isso, o ciberespaço precisa de um conjunto de normas que protejam a privacidade e a segurança dos utilizadores. O sistema internacional tem de assegurar a proteção desses direitos, que vão passar a ocupar um lugar central na agenda internacional, governativa, corporativa e privada.

e. Narrativa

Finalmente, para conquistar o coração dos cidadãos e, por essa via, levar os seus decisores a agir, todas as reformas de que o ordenamento liberal precisa têm de aparecer vestidas com a melhor roupa. É fundamental embrulhar o conteúdo político numa narrativa sexy e apelativa, que não nos deixe a mais pequena dúvida sobre o tipo de sociedade de que queremos fazer parte. No entanto, também isto é uma obviedade e é algo que a União Europeia, em particular, poucas vezes conseguiu fazer. Christine Ockrent, do European Council on Foreign Relations, equiparou brilhantemente a narrativa europeia a “cold fish”.

Para a agenda digital, será preciso moderar o jargão onusiano e eurocrata, que servem mais para excluir do que para incluir e que afastam mais do que aproximam. Projetam mesmo uma imagem de uma autoridade longínqua, endogâmica desfasada da realidade dos cidadãos. Para a causa ambiental, será preciso uma estratégia mais ambiciosa do que ficar à espera da próxima adolescente sobre os ombros de quem depositar a tarefa prioritária de entusiasmar as massas, a que as respeitáveis senhoras e senhores de Bruxelas, Capitol Hill, White Hall e Nova Iorque não chegam.

 

Conclusões

A ordem internacional liberal deve ter capacidade de demonstrar que existe para servir os interesses dos indivíduos e, por essa via, entusiasmá-los. A narrativa não se constrói agradando aos aparelhos diplomáticos dos Estados, nem com telegramas opacos para as capitais, nem oferecendo palcos elegantes para discursos (cada vez menos) televisionados e para photo ops com outros ministros e presidentes, que servem apenas os egos dos próprios e dos jornalistas que os acompanham.

É preciso restaurar um sentimento de propósito partilhado, um sentimento de pertença a uma identidade global e nacional – inclusiva e não exclusiva – bem como a um sistema de valores como a primazia do indivíduo sobre o Estado. Esse indivíduo merece que as instituições o procurem para lhe prestar contas, que lhe mostrem porque existe separação e equilíbrio entre poderes, que as elites não gozam de impunidade, que existem limites às nossas liberdades e que é do benefício de todos contribuirmos para aumentar a igualdade de oportunidades.

A ação do sistema liberal deve girar em torno da dignidade e da liberdade de escolha do ser humano, reconhecendo quase “maslowianamente” que a hierarquia de valores e prioridades dos que vivem no mundo industrializado terá de ser necessariamente outra, mas que é do interesse vital do Ocidente promover, nos seus vizinhos do Sul, os seus valores e os sonhos liberais – adaptando-os às realidades locais. Em política, como em diplomacia, não há espaços vazios e a narrativa iliberal tem sido mais eficaz a ocupar esses espaços e a conquistar aliados.

Finalmente, as novas gerações terão de aprender a história de evolução e progresso que o mundo ocidental alcançou nos 100 anos do século XX, em particular desde o triunfo liberal em 1945. Foram décadas de paz, crescimento e prosperidade, que só se alcançaram graças ao esforço conjunto de partilhar um objetivo liberal, em graus diferentes nos países, mas comum a todos.

Para evitar que a desagregação e o “decoupling” aumentem as probabilidades de conflito, é imprescindível defender o coração do sistema internacional – a Organização das Nações Unidas –, mas esse coração deve inspirar à ação, espelhando a coesão e o sentido de propósito que falta ao seu redor. Só assim poderá travar a fragmentação que corrói as relações de poder globais.

Para credibilizar a Organização, convertendo-a num agente transformador de comportamentos individuais e coletivos, com influência real nas decisões dos Governos, é preciso encontrar, mais do que insípidas reformas administrativas, a tal mensagem agregadora que gere entusiasmo e expectativa face ao mundo que construímos.

Para concluir, regressemos ao Papa Francisco, um dos pensadores políticos mais provocadores, reformistas e brilhantes da nossa geração.

A encíclica publicada no ano passado foi dedicada ao tema “Fraternidade e Amizade Social”. Nesta carta, a palavra “igualdade” é mencionada em 14 ocasiões. “Segurança”, em 16. No entanto, o Papa preferiu dar mais importância a outro conceito, utilizando-o mais do dobro das vezes: 38 no total.

Esse conceito, esse valor, essa visão é a Liberdade.

 

Referências:

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2022-04-21
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Dr.

Filipe Alves Domingues

É co-autor da biografia do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, “O Mundo Não Tem de Ser Assim”. Licenciado em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo estudos de Pós-graduação em Diplomacia e Relações Internacionais na Universidade Lusíada de Lisboa.

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by COM Armando Dias Correia