O Retorno do Cavalo nas Guerras de Contrainsurreição
John P. Cann
Considero muito interessante e, sem dúvida, elucidativo, o facto de serem historiadores estrangeiros os que mais se têm dedicado à colonização portuguesa e às suas campanhas em África, publicando sobre estes temas um número grande de interessantes trabalhos, sendo o nosso autor de hoje um dos exemplos paradigmáticos, como procurarei demonstrar.
John P. Cann é capitão-de-mar-e-guerra aposentado da Marinha dos EUA.
– Oficial navegador, serviu numa variedade de missões aeronáuticas, incluindo funções de comando, no decorrer das quais acumulou mais de 3.000 horas de voo.
– Ao longo da sua carreira, entre 1987 e 1992, desempenhou funções no Estado-Maior do Comando da Área Ibero-Atlântica da NATO, em Oeiras, o que lhe permitiu, ao longo de 5 anos, um contacto diário com os camaradas das Forças Armadas Portuguesas, todos eles participantes nas campanhas portuguesas em África, entre 1961 e 1975. Desses contactos resultou um interesse cada vez maior pelo estudo das nossas campanhas de contra insurreição que, em Angola, Guiné e Moçambique, um país pobre de meios conseguiu manter durante 15 anos.
– John Cann mantém uma actividade académica de grande relevo no estudo das operações especiais e é responsável por mais de 30 projectos de investigação na base dos conflitos de baixa intensidade, sendo considerado internacionalmente como um especialista em guerra assimétrica. É investigador convidado e professor jubilado de Estudos de Segurança Nacional na Academia de Fuzileiros dos EUA.
– É doutorado em Estudos de Guerra pelo King’s College de Londres, onde, em 1996, defendeu a tese Contrainsurreição em África – O Modo dos Portugueses Fazerem a Guerra. 1961-1975, publicada em Portugal, em 1997, e reeditada em 2005. A este, seguiu-se a publicação, em 1998, de Memórias da Guerra de Portugal em África 1961-1975, em 2008, e 2014 foi a vez de A Marinha em África – As Campanhas Portuguesas em Águas Interiores de 1961 a 1974 e, em 2015 e 2017, o Plano do Voo África. O Poder Aéreo Português na Contrassubversão 1961-1974. Para além destas obras de grande fôlego, Cann publicou ainda, relacionados com o mesmo tema, em 2017, Os Páras em África, em 2018, Os Flechas, Os Caçadores Guerreiros do Leste de Angola e Os Fuzileiros em África, em 2019, Os Comandos em África, e está a lançar hoje a versão portuguesa deste Os Dragões em África, fechando, assim, a sua visão do que considera as forças especiais portuguesas na contrassubversão.
O Exército, a Marinha e a Força Aérea de Portugal reconheceram já o interesse e o valor dos seus trabalhos para as respectivas instituições, galardoando-o com as Medalhas de D. Afonso Henriques do Exército, da Cruz Naval da Marinha e de Mérito Aeronáutico da Força Aérea. Por sua vez, Portugal, pelo Presidente da República, no palácio de Belém, agraciou-o com a comenda da Ordem do Infante D. Henrique «pelas suas obras sobre o conflito na África Lusófona de 1961-1975».
A primeira vez que, em obras estrangeiras, encontrei uma referência ao uso de cavalos pelos portugueses na guerra subversiva foi num livro americano, editado por James Lawford1, em 1976, titulado Cavalry com o subtítulo «triunfos dos cavaleiros militares: histórias dos grandes regimentos de cavalaria, seus comandantes e acções célebres», no qual o artigo de abertura, assinado por Peter Young2, insere na página 9 uma fotografia de dois cavalos com o seu tratador legendada como sendo «cavalos da cavalaria portuguesa em Angola no ano de 1972, onde foram usados em missões de contrainsurreição, sendo o da esquerda um palomino3 de provável origem ibérica» que mostrei ao Tenente-coronel António Ferrand de Almeida que, louco de alegria, me disse não perceber como tal fotografia ali aparecia, pois tratava-se dos cavalos que ele próprio tinha distribuídos e do seu tratador, enquanto, na fase final, serviu nos Dragões de Angola.
Recentemente, a revista Guerre & Histoire, no seu n.º 11 Hors-Série de Julho de 2021, edição da Science & Vie, subordinada ao tema geral «3.000 Anos de História – A Cavalaria» apresenta, com assinatura de Laurent Henninger4, o artigo intitulado Dragões de Angola: A Última Experiência, onde, entre outras, o autor faz as seguintes afirmações:
«Proibidos de permanecer sobre os campos de batalha saturados de granadas de obus e de armas automáticas, os cavalos reencontram a sua primitiva vocação nos conflitos coloniais de África. Como em Angola, onde Portugal os utilizou como arma moderna e eficaz.»
«Em teoria, é a arma de infantaria a mais adaptada para a luta anti guerrilha, não só para perseguir grupos inimigos, mas também para manter um contacto próximo com as populações. Mas para cumprir uma tal missão num tão vasto território, a infeliz infantaria portuguesa5 era bem insuficiente. A motorização não era solução: a extensão territorial era completamente destituída de estradas e, por vezes, coberta de florestas impenetráveis aos veículos. Restava o helicóptero, aparelho ideal mas caro, de que Portugal não podia dispor senão em número limitado. Por outro lado tropas sistematicamente helitransportadas perdem completamente o contacto com as populações. Este problema torna-se urgente a partir de 1966, quando o MPLA abre uma nova frente na fronteira oriental. Torna-se necessário encontrar uma força que combine a mobilidade em terrenos difíceis com a capacidade para enfrentar os insurretos mantendo a ligação com as populações.»
«Os Dragões asseguraram a presença portuguesa nos sectores mais afastados e inacessíveis, sucesso táctico depois imitado pelos Rodesianos e Sul-Africanos.»
Verdade seja dita, também por vezes o tema foi abordado por portugueses e destes não posso deixar de referir o Coronel José Miguel Moreira Freire, membro efectivo do Conselho Científico da CPHM e actual comandante do RC6, em Braga, que já antes, como professor da Academia Militar, promoveu debates para conhecimento dos cadetes, escreveu artigos que conseguiu ver publicados em revistas de língua inglesa e, em 2015, apresentou o tema no Congresso Internacional de História Militar que teve lugar em Pequim, na China. É talvez interessante chamar a atenção para o facto de que Moreira Freire não foi oficial dos Dragões, enquanto os que o foram escreveram pouco sobre a sua experiência ou, até, nada escreveram e sempre, julgo que por modéstia exagerada, nunca quiseram falar de si, lembrando neste caso o capitão Luís Banazol que teve um papel fundamental no comando de um dos esquadrões.
John P. Cann, neste seu Os Dragões em África, aprofunda o tema procurando mostrar-nos como foi possível atingir o sucesso táctico referido atrás por Henninger.
O Autor, a abrir, faz alguns agradecimentos e, por eles, ficamos a saber que, para além da investigação pessoal a que procedeu, teve o cuidado de contactar quantos serviram nestas forças para recolher depoimentos e iconografia. Refere, entre outras, «a ajuda generosa do Coronel Miguel Freire, que fez da pesquisa sobre os Dragões em Angola um seu interesse pessoal e que partilhou comigo generosamente as suas investigações», assim como refere a ajuda dos também por mim indicados coronéis Manuel Moreira Dias e Manuel Veloso.
A obra contém uma curta introdução a que se seguem 5 capítulos, a saber:
– Cap. I: Porquê a Cavalaria a Cavalo, onde, em 46 páginas, percorre o enquadramento histórico, apresentando-nos flashes sobre a influência napoleónica, a actuação da cavalaria em Moçambique, em 1895-1896, e no Sul de Angola, em 1897, referindo o desastre do Vau de Pembe, em 1904, e a campanha do Cuamato, em 1907, assim como Naulila, em 1914, e a reconquista do Sul, em 1915, sem esquecer a ameaça a Moçambique no decorrer da Guerra de 1914-1918 e até a conversão em ciclistas do grupo de cavalaria do CEP na Flandres. A finalizar este capítulo, Cann esclarece-nos sobre o que ocorreu com a cavalaria em Portugal, nos anos entre as guerras de 1918 a 1961, terminando com a resposta à pergunta «porquê o cavalo?»
– Cap. II – As Chanas de Angola, onde, em 22 páginas, o Autor nos fala dos movimentos nacionalistas e do seu assalto ao Norte, da frente Leste e da estratégia da guerrilha em oposição à da campanha portuguesa, terminando com uma referência àquilo que designa por “movimentos de abertura” levados a cabo pela dupla de generais Costa Gomes, comandante-chefe, e Bettencourt Rodrigues, comandante da nova Zona Militar Leste, criada em Março de 1971. Não posso deixar de chamar a vossa atenção para o conjunto iconográfico a cores e a preto e branco deste capítulo, com imagens belíssimas, recolhidas dos arquivos de quantos prestaram serviço nestas forças (Moreira Dias, Veloso, Fernando Ataíde, p. ex.), ou, em alguns casos, pelas suas famílias, quando aqueles já se não encontravam entre nós (Fernandes Faia, p. ex.).
– Cap. III – A Entrada do Cavalo, onde, em 42 páginas profusamente ilustradas com excelentes fotografias a preto e branco extraídas das colecções de Veloso, Moreira Dias, Vasco Ramires, Fernandes Faia, Fernando Ataíde e Soares da Mota, nos é relatado o processo inicial, com princípio em Janeiro de 1967, as decisões que conduziram à escolha do equipamento e armamento a distribuir a estas forças, os problemas de alimentação e saúde para o cavalo e o cavaleiro, o recrutamento e a formação para criação, em 1968, do Grupo de Cavalaria n.º 1 e a sua actividade operacional. A finalizar o capítulo procura-se, “olhando para trás”, conhecer a contribuição das unidades a cavalo no resultado verdadeiramente satisfatório a que se chegou na região em que actuaram, que o Brigadeiro Hélio Felgas, no princípio de Abril de 1974, avaliava como não havendo contacto entre as nossas forças e os guerrilheiros de qualquer das facções nacionalistas, sendo a actividade da guerrilha praticamente inexistente.
– Cap. IV – A Ameaça em Moçambique, onde, em 14 páginas, Cann nos dá conta resumida mas esclarecedora da situação política, administrativa e militar do território e dos apoios ou, ainda melhor, das iniciativas de Julius Nyerere, da Tanzânia, que com o apoio do Congresso Nacional Africano e do Congresso Pan-Africano, da África do Sul, e da União Nacional Africana, do Zimbabué, concederam o necessário apoio e abrigo à FRELIMO. O primeiro incidente de acção armada ocorreu a 21 de Agosto de 1964. A experiência feita em Angola com a cavalaria e o conhecimento histórico de tais forças usadas nas campanhas do fim do século anterior com Mouzinho, levaram o General Kaulza de Arriaga, aconselhado por um cavaleiro experiente – o tenente-coronel Jorge Mathias – a, em 1972, pedir para Lisboa autorização para ali criar um esquadrão de cavalaria a instalar no Centro de Instrução de Vila Pery, sob a supervisão do Major de Cavalaria Alberto da Costa Ferreira, com remonta de 164 cavalos realizada na Rodésia, os últimos dos quais foram entregues em Vila Pery, já em Março de 1973. As coisas não correram bem no curto tempo (cerca de um ano) que restou apesar do esforço que o capitão José Eduardo Castro Neves, nomeado comandante da unidade, desenvolveu para, com liderança e competência, obter o sucesso pretendido. Com este difícil começo, só a partir de Fevereiro de 1974 o esquadrão começou a desenvolver acções tácticas ofensivas e defensivas, combatendo bandos armados da guerrilha e forças inimigas pseudo-regulares, a realizar acções psicológicas contra o inimigo e em apoio da população e, finalmente, a apoiar as autoridades civis quando solicitado. No curto período que restava antes do golpe de 25 de Abril, o esquadrão ainda realizou 22 patrulhas não chegando, no entanto, em nenhum caso a ter contacto com o inimigo. Castro Neves ainda foi rendido pelo Capitão Rogério da Silva Guilherme, o último comandante do esquadrão. Já depois do 25 de Abril, o esquadrão ainda realizou 33 operações que terminaram a 30 de Setembro quando a unidade foi desactivada. O capítulo é, também ele, muito ilustrado com fotografias do espólio pertencente ao hoje Coronel Castro Neves.
– Cap. V – A Cavalaria a Cavalo na Contra-Insurreição, é o último e muito curto capítulo desta obra, com apenas duas páginas, no qual se procura fazer uma síntese do trabalho produzido, principalmente em Angola, e que, resumidamente, se pode concretizar pela sua real contribuição para o problema que era cobrir 250.000km2 de terreno hostil, normalmente intransitável na estação chuvosa, à custa de 300 elementos de cavalaria e um mínimo de esforço logístico, reunindo informações, comunicando com a população, garantindo presença e conduzindo operações. Tal experiência, reconhecida pelos nossos vizinhos, foi seguida pela Rodésia, que estabeleceu os Grey’s Scouts, em 1976 e, a partir de 1977, também as Forças de Defesa da África do Sul as usaram na guerra de fronteira com a SWAPO que só teve fim em 1989.
Esta obra de John Cann, agora lançada na sua versão portuguesa, foi publicada em inglês, em 2019, demora que podemos atribuir à malvada Covid que, nos EUA como cá, nos impediu maior rapidez no processo.
Tenente-general Alexandre de Sousa Pinto
Sócio Efetivo da Revista Militar
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1Tenente-coronel James Lawford, leitor sénior na Real Academia Militar de Sandhurst, co-autor com Peter Young de História do Exército Britânico e a Obra Prima de Wellington, um profundo estudo da Batalha de Salamanca.
2Brigadeiro Peter Young que fez a II Guerra Mundial como coronel e é agora considerado um dos melhores historiadores militares britânicos.
3Palomino é um cavalo de pelos muito claros (amarelados) com crinas e cauda completamente brancas, cuja origem ibérica neste caso pode ser posta em causa, porque, em Angola, as primeiras remontas foram feitas na África do Sul e depois na Argentina, onde eventualmente também poderiam surgir.
4Laurent Henninger é considerado um especialista em História Militar que na revista referida assina vários dos artigos nela inseridos.
5A Infantaria em Portugal sempre se considerou a rainha das armas, e não a julgo de modo algum infeliz, muito pelo contrário. Henninger considera-a infeliz por não ser suficiente, mas julgo que a complementaridade das diferentes Armas do Exército e até certo ponto dos diferentes Ramos das Forças Armadas foram naquele conflito específico uma mais-valia que todos reconhecemos.
Sócio efetivo da Revista Militar. Presidente da CPHM.