Este pequeno artigo é a versão em português de uma intervenção feita em França, na Escola Superior de Guerra, em 1979 (há 43 anos!!!). Essa intervenção foi feita num painel intitulado “Defesa e Sociedade” no qual participei com este texto sobre o “Espírito de Defesa”. Tendo havido profundas alterações geopolíticas e de poder durante todos esses anos, pode parecer desajustado republicar aquele texto. Há porém aspectos que não se alteram e são hoje até mais evidentes, como as limitações do Estado-Nação, a marcha imparável do individualismo, a constância das autocracias, a fragilidade das democracias, a alteração dos valores, as variações do Espírito de Defesa. Assim sendo, e como ponto de reflexão, talvez valha a pena relembrar aquele escrito.
A noção de espírito de defesa é normalmente entendida como a vontade colectiva de defender, por todos os meios, com ênfase nos militares, uma determinada unidade política. A intenção, um pouco ambiciosa, desta minha breve intervenção é a de mostrar que para além daquela vontade, ou antes dela, o espírito de defesa está intimamente ligado aos valores que se pretende defender e à importância acrescida do peso dos indivíduos nas sociedades modernas.
Como nota preliminar e convidando-os a pôr de lado as considerações que a nossa formação militar e a situação de «cidadãos fardados» nos suscitam, levanto as seguintes questões: O pacifista que se deixa matar por se recusar a combater é um exemplo do enfraquecimento do espírito de defesa? ou é a excepção que confirma o dever de defesa? ou é, apenas, uma manifestação flagrante que, para esse indivíduo, há valores mais sagrados que certos valores colectivos que são geralmente aceites? ou não será esta atitude uma manifestação de um espírito de defesa superior, face a outros valores?
Colocarei, ainda uma outra questão. Suponhamos um País que, confrontado com uma determinada ameaça, se recusa a bater-se porque os seus cidadãos concluíram que o preço de sangue e destruições resultantes da guerra é superior aos valores em discussão. Será que este País demonstra, com esta atitude, uma ausência de espírito de defesa, ou, pelo contrário, ela é um exemplo de um espírito de defesa elevado, face a outros valores que estamos, pela nossa formação, menos predispostos a aceitar?
Deixo estas questões sem resposta, mas sentir-me-ei satisfeito se no final desta intervenção elas ainda nos perturbarem.
Como se aponta na introdução precedente, creio que ao estudarmos o espírito de defesa devemos dar uma atenção acrescida aos valores que se defendem, porque esses valores, na sua harmonia, na sua diversidade, nos seus antagonismos e na sua hierarquia podem dar-nos pistas importantes sobre o espírito de defesa.
São bem conhecidas as vozes, de tonalidade profética e demasiadamente seguras de possuírem a verdade, que anunciam que a sociedade ocidental não poderá jamais bater-se, num combate igual, se não encontrar, previamente, os seus próprios valores. E estas vozes acrescentam que o Ocidente, até hoje, não tem tido mais que antivalores, ou seja, procurado valores que são apenas a negação dos do adversário.
Nas sociedades primitivas os valores de defesa estavam intimamente ligados às necessidades de sobrevivência física: a privação do gado ou dos bens que a natureza oferece conduziria à fome; o roubo das mulheres impediria a reprodução, logo, o prolongamento no tempo do grupo constituído; a destruição dos abrigos exporia as pessoas às incertezas e agruras do clima.
Empregando uma óptica marxista, que me parece apropriada a esta análise, o espírito de defesa destas sociedades primitivas era a expressão natural da satisfação das necessidades fundamentais e instintivas. Os seus valores eram os bens essenciais da época, que não abrangia ainda as necessidades do espírito (que já é preocupação do homem moderno) nem uma noção clara da preservação do espaço, que passou a ser um valor cada vez mais evidente de todos os grupos humanos. A noção de defesa do «território social» (que se nota já em alguns animais) ganha uma expressão acrescida quando o Homem se sedentariza e a agricultura e a terra se tornam, naturalmente, valores «sagrados».
Com a génese das nacionalidades, a terra mantém ou consolida o seu carácter sagrado, apesar de perdido o costume de se oferecerem sacrifícios aos «deuses agrícolas» e de terem ficado, apenas, reminiscências das festas da Primavera e das colheitas.
Mas o Homem, ele próprio, também evoluiu. Descobriu formas de poder e preocupações espirituais; desenvolveu a técnica para aumentar a sua capacidade de realizar; descobriu o mundo e rasgou horizontes; encontrou a complementaridade de regiões e de bens – o comércio; abriu o seu espírito às ideologias; e começou a dominar a natureza morta na Revolução Industrial.
Será que esta grande liberdade de acção e os novos horizontes físicos e intelectuais não transformaram o Homem num novo nómada do orbis, que, em vez do alimento fresco para os animais, procura agora satisfazer e acalmar a sua ansiedade? Será que esta libertação não irá dessacralizar o território, no futuro? Não começa já o Homem, com um olhar ecológico, a preocupar-se com a preservação da Terra a um nível planetário? Não serão os fenómenos de regionalismo e supranacionalismo os sintomas da decadência dos espaços territoriais e políticos que fizeram o Homem viver e morrer, durante séculos, pelas bandeiras nacionais?
Com efeito, a evolução da humanidade transformou progressivamente o Homem num ser muito menos ligado ao «habitat estatal» e bastante mais preocupado e ansioso em encontrar as respostas às suas necessidades materiais, intelectuais e morais.
É lógico que esta metamorfose, mesmo que muito lenta, substitua e transforme os valores que se defende e a intensidade com que se procura preservá-los.
Com uma certa coragem e atrevimento, procurando desenhar um esboço da situação actual, diria que a Humanidade se agrupou em unidades políticas, que têm a sua identidade social, mas que os homens se libertam sucessivamente dos seus laços societários, na procura permanente dos valores individuais e universais, que nenhuma fronteira pode conter, nem nenhum poder é capaz, completamente, de controlar.
Apesar da diversidade das paisagens físicas, políticas e humanas, que o mundo dos nossos dias nos oferece, vejo aparecer cada vez mais um «universo de homens», ou uma Humanidade de «homens universais», onde os indivíduos desfazem a pouco e pouco os laços comunitários e as dimensões restritas. Estamos mergulhados, a nível planetário, em numerosas sociedades «moleculares», onde os elementos atómicos, os homens, elegem valores iguais ou semelhantes. Isto dessacraliza muitos outros valores e começa a sacralizar o Homem e o Universo. É por isso que vemos hoje fermentarem estes valores nos vários quadros políticos e, paralelamente, um movimento, em meu entender irreversível, para o individual e para o universal.
Por estas razões encontramos em todas as sociedades, por um lado, os valores a defender escolhidos pelas unidades políticas, e pelo outro, os valores individuais que cada vez menos se identificam com os primeiros.
Figura 1
Olhando esta tendência, no seu limite, no último desenho do esquema, encontramos o paradoxo da sociedade sem homens, mas também o verdadeiro símbolo da utopia anarquista – o «reino» dos indivíduos e o fim das sociedades.
Penso que ao estudarmos os problemas do espírito de defesa, nos nossos dias, na óptica dos valores a defender, uma unidade política pode ser representada da forma que se indica.
Figura 2
Não passa, evidentemente de um esquema, com todas as limitações e cautelas com que o devemos olhar, mas se repararmos nele, com atenção, podemos ver a dupla dialéctica entre os valores sociais e os valores individuais, e entre os valores universais e os valores regionais. E nestas dialécticas cabem os diferentes graus e características do espírito de defesa das diversas unidades políticas.
Posições pacifistas individuais e universais, posições expansionistas ou de preservação dos espaços nacionais, posições de negação ou obrigação do dever de defesa, posições ecologistas, etc., são apenas teses desta dupla dialéctica, que o poder das unidades políticas tem dificuldade em concertar.
Na impossibilidade de tratarmos as várias sociedades, farei apenas uma breve consideração sobre os dois tipos de sociedade que, pelas suas tensões, estão sempre presentes no nosso espírito.
Figura 3
Neste primeiro caso, que a figura procura resumir, a comunidade tem a possibilidade, através de um forte poder, pela utilização de ideologias (ou religiões) muito mobilizadoras e possessivas e por um desenvolvimento do sentido comunitário em detrimento do indivíduo, de deslocar os valores individuais para a esfera dos valores societários.
Estamos face a uma sociedade de inspiração autocrática, que pode ter um espírito de defesa elevado, com a consequente mobilização de recursos e imposição de sacrifícios, mas que, face ao imobilismo dos valores societários (que em nosso entender, como acima deixámos expresso, contraria os «ventos da história» do processo individualista e universalista), tem tendência a destruir-se a médio ou longo prazo.
Figura 4
Neste segundo caso a sociedade mantêm um elevado estado de dialéctica entre o social e o individual, que aparentemente nos faz suspeitar do valor do espírito de defesa, mas tem, também, a possibilidade de fazer aproximações nos dois sentidos, pelo peso dos indivíduos e das suas opiniões nas instituições sociais. Por isso, a resultante nunca terá o nível de «consenso» que encontrámos no primeiro caso.
Estamos face a uma sociedade de inspiração democrática, de espírito de defesa variável, vulnerável aos afrontamentos directos com as sociedades de espírito de defesa mais elevado, mas muito mais apta a adaptar-se à evolução do Homem e dos seus sentimentos.
Das considerações que temos vindo a fazer, que não primando pela clareza têm, quanto a mim, a vantagem de ser pouco conformistas, é-nos permitido apresentar as seguintes conclusões:
– Um estudo sério sobre o espírito de defesa não pode ser feito sem um aprofundamento detalhado dos valores a defender pelos diversos agentes;
– O espírito de defesa de uma sociedade não é qualquer coisa de estático, mas um produto variável, no tempo e nas circunstâncias, das relações poder-cidadãos;
– A marcha da Humanidade para o individualismo pode enfraquecer, cada vez mais, o espírito de defesa das sociedades;
– Começa a aparecer um espírito de defesa, a nível universal, que é um factor a não negligenciar quanto ao declínio do espírito de defesa das actuais unidades políticas;
– As sociedades democráticas têm que saber que o seu espírito de defesa se enfraquece naturalmente, mas, porque significam a melhor sociedade para responder à ansiedade dos Homens, têm que sublinhar este valor e elegê-lo em valor a defender, para não poderem ser destruídas pelas sociedades autocráticas que ciclicamente vão emergindo no Mundo e que, na posse de meios cataclísmicos de destruição, são um perigo para a Humanidade e para o Universo;
– A destruição, voluntária ou não, do espírito de defesa será, certamente, o maior desarmamento que jamais existiu, mas no actual momento da História, ela é um suicídio.
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1998-2001).
Ex-Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Revista Militar (2003-2011).
Sócio Efectivo da Revista Militar.