As Pequenas e Médias Empresas (PME) têm não apenas em Portugal como em regra no mundo, um papel fundamental na garantia dos chamados equilíbrios sociais, muito necessários para o bom funcionamento das sociedades, especialmente no quadro de economias capitalistas. Por um lado, elas são garantia de geração de riqueza e rendimento para muitas pessoas, que assim podem ver concretizadas as suas aspirações de inserção e até de mobilidade sociais. Por outro lado, elas permitem que muitos possam trabalhar sem ser na qualidade de trabalhadores por conta de outrém, isto é, sem estarem na dependência económica de outrém, e assim também favorecendo a diminuição da própria conflitualidade social. Num plano mais micro, as PME são fator de promoção da igualdade de género, permitindo a muitas mulheres, pequenas e médias empresárias, afirmar o seu talento e criatividade e reforçar o seu empoderamento na sociedade. Finalmente, mas não menos importante, as PME são instrumento de coesão social e territorial, pois sendo de dimensão mais pequena, elas estão mais facilmente ligadas às realidades e à economia local. Nas zonas de interior, as PME são instrumento importante de combate ao abandono dos territórios e de combate à desertificação.
Por causa desse seu importante papel na manutenção dos equilíbrios sociais, as PME devem ser valorizadas e apoiadas pela sociedade em geral, pelas grandes empresas (a quem aquelas fornecem e de quem consomem) e devem ser, desde logo, apoiadas pelos poderes públicos. Esse apoio não deve ser, contudo, um apoio cego e acrítico, antes pautado pela preocupação de favorecer nelas a inovação, a criação de empresas em sectores mais produtivos e diversificados, o aumento dos respetivos níveis de produtividade e, se possível e quando se justifique, o aumento da sua capacidade exportadora. Por outro lado, mas não menos importante, cabe ainda aos poderes públicos criar todo um quadro institucional, financeiro e legislativo que contribua para gerar bons incentivos (de toda a espécie) para que essas empresas possam crescer e, no limite, passarem de PME a grandes empresas.
As PME foram particularmente atingidas pela crise pandémica e isso deveu-se não apenas ao facto de serem à partida empresas menos robustas do ponto de vista financeiro e por isso, porventura, mais vulneráveis a choques adversos, mas também pelo facto de os sectores mais atingidos pela pandemia e pelos sucessivos confinamentos terem sido sectores de proximidade física, onde tipicamente operam PME – o caso do comércio a retalho, da restauração, alojamento e dos serviços turísticos em geral.
Não admira, pois, que muito do apoio, quer direto quer indireto, de combate aos efeitos da pandemia, tenha tido como destinatário primacial as PME. Ora, todos estes apoios – diretos e indiretos – foram decisivos para minimizar restrições de liquidez que estas mesmas empresas, especialmente as de menor dimensão, poderiam vir a enfrentar na sequência das medidas de confinamento adotadas durante o período mais crítico da pandemia. Evitaram insolvências e a destruição de capital físico e humano. E tais apoios foram e continuam a ser muito importantes para a manutenção dos equilíbrios sociais na economia e na sociedade portuguesas, aqui anteriormente referidos.
Agora, num quadro de recuperação económica que, como se antevê, irá assentar fundamentalmente nos eixos das transições ambiental e digital, as PME são confrontadas com novas exigências e oportunidades associadas a essas mudanças paradigmáticas e globais.
3.1. As PME e a transição climática; a questão do acesso a financiamento
Começando pela transição ambiental, estão fixados, como sabemos, objetivos muito ambiciosos de combate às alterações climáticas, por exemplo, o de se alcançar a neutralidade carbónica em 2050.
No quadro da transição ambiental, eu salientaria três aspetos que condicionarão a atividade e o desempenho futuros das empresas e designadamente das PME portuguesas. Um primeiro aspeto é de ordem específica, isto é, respeitante a um determinado tipo específico de empresas; os outros dois aspetos serão de ordem geral ou transversal, dizendo, pois, respeito à generalidade das empresas (figura 1).
Fonte: Construção própria da autora (2021)
Figura 1 – Desafios da transição ambiental em três aspetos da atividade
das empresas, especialmente das PME.
Quanto ao aspeto de ordem específica, aquele que se prende com a produção da energia em si, o desafio está aqui em produzir energias renováveis (as energias limpas), em detrimento das energias fósseis. Esta exigência respeita, em primeira linha, como é óbvio, às empresas cujo negócio é esse: produzir energia. Portugal está à partida bem posicionado para assegurar essa produção, no caso de diferentes energias renováveis (como a solar e a eólica) e ainda na produção de hidrogénio verde, mas mais importante do que isso será assegurar o desenvolvimento e a patenteação da própria tecnologia que alimenta e está por detrás dessa produção.
Note-se ainda que a produção de energias limpas, além das vantagens ambientais que envolve, poderá vir a ter consequências económicas positivas no nosso país não apenas por poder permitir reduzir a nossa dependência energética face ao exterior, mas também por poder incrementar a nossa capacidade exportadora, contribuindo assim, de uma forma ou de outra, para a melhoria das nossas contas externas.
Mas, para além deste aspeto de ordem específica, porque afetando especificamente o sector da produção de energia, há depois dois outros aspetos, de ordem mais geral ou transversal, e que afetarão uma boa parte das empresas, independentemente da sua dimensão e do setor de atividade em que atuem.
Um desses aspetos de ordem geral ou transversal prende-se com os outputs de produção, ou seja, a produção de produtos (cada vez mais) limpos, verdes ou ecológicos. Na área do têxtil, por exemplo, a aplicação dos princípios da economia circular (por exemplo, tecidos feitos a partir de plásticos ou microplásticos). A nível dos serviços, saliente-se o desenvolvimento das formas de ecoturismo. Com menos relevância no nosso país, mas muito importante noutros, ressalta a produção de veículos elétricos.
Relacionada com a produção de bens finais considerados limpos está, por sua vez, a produção de bens intermédios, por exemplo, a produção de componentes desses outros bens de consumo final. É o caso paradigmático da produção de semicondutores, um bem, aliás, cuja produção releva, quer no âmbito da transição climática quer no da transição digital, e que por isso está na base, em boa medida, da atual disrupção das cadeias de abastecimento. Como veremos também, o papel das PME enquanto produtoras e fornecedoras destes e outros bens intermédios, a questão da sua integração nas cadeias de valor, no quadro destas revoluções em curso, é um desafio fundamental.
O outro aspeto de ordem geral, ainda mais transversal e ao qual praticamente nenhuma empresa escapará, é o que respeita aos próprios processos produtivos e aos inputs desses processos. Também estes processos produtivos deverão ser mais limpos e, na medida do possível, contribuir para a almejada descarbonização da economia. É aqui, neste plano, que as empresas irão sentir os custos de transição climática de forma mais evidente, pois estes custos deverão ser incorporados como custos de produção. Por exemplo, no processo de descontinuação ou supressão das energias fósseis, as empresas terão de suportar os custos fiscais crescentes, e não só, associados ao uso dessas fontes energéticas (como, aliás, já está a suceder) e, ao mesmo tempo, terão de suportar os custos mais elevados do uso de energias renováveis que ainda não estarão disponíveis em quantidade suficiente para serem acessíveis. Por exemplo, também, e muito importante no sector da construção ou das obras públicas, o uso de cimento limpo, ou seja, cimento livre de carbono, o qual acarretará certamente, nesta fase de transição, custos acrescidos para as empresas em causa.
Por fim, uma nota para o impacto que a transição ambiental terá no campo da própria gestão das empresas, e das PME em particular. A relação das empresas com os desafios da sustentabilidade é bidirecional: (i) de um lado, elas sofrem da exposição aos riscos resultantes da emergência climática (e.g. catástrofes naturais); (ii) do outro, o facto de as suas ações terem impacto sobre essa mesma sustentabilidade ambiental. Quer numa direção quer noutra, a gestão das empresas (planeamento, orçamento, relato financeiro) estará fortemente condicionada. Na primeira direção, elas devem prevenir a ocorrência desses riscos, quer pela necessária constituição de seguros quer por meio de eventual provisionamento acautelando a sua verificação. Na segunda direção, dir-se-á que o modelo de negócio será cada vez mais objeto de avaliação e de notação, ficando, por exemplo, uma boa parte do seu financiamento dependente do cumprimento dos princípios ESG, Environmental, Social and Governance. É de esperar, na verdade, que cada vez mais as ações com relevância ambiental sejam refletidas também no balanço das empresas, afetando o seu ativo e o seu passivo. Por exemplo, a goodwill das empresas pode ser afetada pela aplicação desses mesmos critérios de imposição ambiental.
É importante por isso que, nesta fase de transição, as PME sejam apoiadas no esforço de descarbonização. Como é sabido, uma parte desse apoio poderá advir, e está previsto que advenha, do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o qual, no âmbito da ‘dimensão climática’, incorpora algumas componentes com relevância especial para as PME, por exemplo, a componente descarbonização da indústria. Por sua vez, no âmbito da própria política de coesão, assume relevância o Mecanismo de Transição Justa que inclui, além do fundo financeiro específico, o renovado Programa InvestEu. Este programa procura mobilizar e atrair capitais públicos e privados, através da ação promocional do Banco Europeu de Investimento e com a previsão de ações e projetos específicos dirigidos a PME.
Mais importante do que o financiamento público, permitia-me na verdade destacar a questão do acesso a financiamento privado e ao eventual desenvolvimento de novas formas alternativas de financiamento, e alternativas, desde logo, ao financiamento bancário convencional. Com efeito, as PME continuam, tal como historicamente, a depender em grande medida desse financiamento através da banca, o que é explicado ou favorecido pela sua estrutura societária relativamente simples, pela sua fragilidade financeira, pela dificuldade natural de aceder ao mercado de capitais e, bem assim, em especial, a dificuldades em aceder a capital de risco e a venture capital, ainda que no caso das tecnológicas essas dificuldades sejam consideravelmente menores.
De resto, a crise pandémica terá tido impactos não despiciendos (ainda que seja cedo para os avaliar integralmente) também no acesso a financiamento por parte das empresas, se não tanto no crédito bancário, desde logo, nas formas de financiamento alternativos: o caso, sobretudo, do leasing e do factoring que terão tido, nos países da OCDE, uma retração significativa, desde logo, no primeiro ano de pandemia e com os primeiros confinamentos. Mais recentemente, em virtude da disrupção das cadeias de abastecimento, é de recear também dificuldades/disrupções no acesso a dívida comercial, seja a montante junto de fornecedores seja a jusante junto de clientes.
Ora, no quadro da transição para uma economia mais sustentável, as PME terão o duplo desafio de conseguir, por um lado, atrair capital ou investimento e, por outro lado, atrair financiamento verde, cumprindo os referidos princípios ESG e assim apresentar uma marca verde. Ao mesmo tempo, põe-se a questão de saber se o mercado de capitais, ele próprio e especialmente aqui em Portugal, estará em condições para dinamizar instrumentos financeiros ‘ecológicos’ – como são as chamadas obrigações verdes (green bonds) – que sejam especialmente adaptados ou vocacionados para as PME. Mas para além do financiamento convencional, seja através da banca seja através do mercado de capitais, as PME podem encontrar hoje soluções não convencionais, que passam pelo desenvolvimento das novas tecnologias – estou a pensar fundamentalmente no recurso às Fintechs e, mais especificamente, a formas de crowdfunding. Aliás, a transição digital gera modalidades ainda mais disruptivas de financiamento, como veremos já a seguir.
3.2. As PME e a transição digital; o acesso a financiamento e novas modalidades ‘tecnológicas’
De facto, também a transição digital será desafiante para a economia portuguesa no seu todo, e em especial para as PME. De notar, contudo, que o impacto da transição digital será diferente consoante se trate de uma grande empresa ou PME, e ainda considerando o sector em que a empresa opera. Há sectores que, pela sua natureza, serão mais propensos a sofrer os efeitos da transição digital (a começar naturalmente pelas empresas tecnológicas), outros em que os efeitos não serão tão relevantes, em certos casos cingidos a tarefas de administração geral, e.g. faturação (o caso, por exemplo, do pequeno comércio ou restauração). Isto dito, pode considerar-se que, à semelhança do que sucede com a transição climática, a transição digital implicará exigências de mudança, quer de ordem mais específica quer de ordem mais geral e transversal (figura 2).
Fonte: Construção própria da autora (2021)
Figura 2 – Desafios da transição digital em três aspetos da atividade das empresas, especialmente das PME.
Começando de novo pelos aspetos de ordem mais específica, ou seja, relevantes para determinado tipo de empresas – no caso, fundamentalmente as empresas tecnológicas –, está em causa a capacidade de produzir novos produtos que sejam eles próprios expressão das revoluções digital, da Inteligência Artificial e da robótica, revoluções que neste momento estão em curso acelerado. Às PME tecnológicas portuguesas, sejam elas start-ups ou não start-ups, colocam-se, neste plano dos outputs da produção, fundamentalmente dois grandes desafios: (i) o primeiro é da invenção da tecnologia e o da garantia de reserva da propriedade da tecnologia – não basta produzir bens tecnológicos, é preciso, cada vez mais, garantir invenção, a propriedade intelectual ou a patente dessa mesma tecnologia; (ii) o segundo desafio prende-se com a, já aqui referida, integração da atividade das PME nas cadeias de valor globais, e com a garantia de que o valor acrescentado por elas gerado seja de facto valor português. Em bom rigor, está em causa a integração das PME tecnológicas e afins nessas cadeias de valor globais, a partir, ao mesmo tempo, do desenvolvimento de ‘clusters’ regionais, que integrem grandes empresas (ou até multinacionais) e as PME como suas fornecedoras.
O caso mais antigo entre nós é o da região de Setúbal, favorecido pela Autoeuropa e pela dinamização do polo industrial envolvente. Mais recentemente, temos o caso da região de Braga, com o exemplo da ligação da Bosch a diversas empresas, pequenas e médias, suas fornecedoras locais, a que se juntou ainda a vertente de conhecimento científico e técnico, através da parceria com a Universidade do Minho. Trata-se, em suma, de exemplos de simbiose profícua entre grandes, médias e pequenas empresas, e que aproveita, em última análise, à riqueza gerada na região e no país, exemplos esses que devem ser, por isso, replicados e reforçados nos próximos anos.
Para além deste aspeto de ordem específica – que especificamente respeita às empresas tecnológicas –, há depois ainda, na transição digital, dois outros aspetos, de ordem geral ou transversal e que afetarão uma boa parte das empresas, independentemente da sua dimensão e do setor de atividade em que atuem.
O primeiro aspeto de ordem geral prende-se, de novo, com os processos produtivos. Considero que a digitalização deve ser encarada pelas PME e pelas empresas em geral como um ‘bom vento de mudança’, ou seja, como fator de incremento da eficiência dos processos produtivos, favorecendo o aumento da produtividade dos fatores de produção. A digitalização, pela desmaterialização que envolve, pode implicar desintermediação, aceleração dos processos produtivos, redução de custos, incluindo custos de transação e de comunicação, mudança nas cadeias de valor, designadamente uma maior facilidade na colocação de bens e serviços junto do consumidor final. Destaco o exemplo paradigmático, muito dinamizado durante os sucessivos confinamentos, das vendas através de plataformas eletrónicas, o chamado e-commerce. A digitalização favorece ainda – aspeto relevante para as PME – a diferenciação de produtos e a própria diversificação.
Permitia-me destacar, a propósito ainda dos impactos nos processos produtivos, o papel estruturante que a transição para a rede 5G terá no nosso país (como noutros), quer pela importância no acesso às comunicações, ou seja, quanto à velocidade e qualidade desse acesso, quer pela sua função instrumental e ‘game-changer’ em relação à chamada internet-das-coisas. Aliás, a tecnologia 5G será um fator propulsor de toda a atividade empresarial, promovendo a conexão e a conectividade, aspeto que é bem-vindo no caso das PMEs, e desde logo, das PME que se localizam nas regiões do interior do país (ou territórios de baixa densidade), onde também as más comunicações têm funcionado historicamente como entrave ao seu desenvolvimento económico.
O outro aspeto de ordem geral ou transversal é o que se prende com a digitalização da própria gestão. Também aqui, ao nível da gestão, incluindo procedimentos contratuais e o relato financeiro, os efeitos da digitalização se farão sentir. Desde logo, uma maior desmaterialização dos processos, implicando menores custos de contexto, até do ponto de vista ambiental.
Depois, de forma ainda mais disruptiva, assistimos já hoje, por exemplo (e só para dar um exemplo), às primeiras tentativas – que podem vir a ter implicações profundas no direito contabilístico aplicável às empresas, seja das grandes seja das PME – da transposição da tecnologia blockchain para o domínio da contabilidade financeira, permitindo a elaboração de demonstrações financeiras em tempo real, evitando-se o desfasamento temporal e a manipulação de contas (Antunes, J.E, (2021), A moeda, Almedina).
Aliás, curiosamente, esta mesma tecnologia blockchain aparece associada também, e em primeira linha, à emissão das novas cripto-moedas ou cripto-ativos, e também estes são hoje apontados como possíveis instrumentos alternativos de financiamento das empresas, desde logo, das que têm maior dificuldades em financiar-se nos mercados de capitais convencionais. Destaco em especial os novos ‘investment tokens’ (ou ‘equity tokens’), um tipo de cripto-moeda com funções de investimento.
Também no quadro da transição digital, é de esperar que as empresas e as PME, em particular, contem com apoios e financiamento públicos. E é, desde logo, no quadro do PRR que estão já previstas as primeiras iniciativas. Destacaria a capacitação digital das empresas, destinada a reforçar, desde logo, as competências digitais dos gestores e colaboradores, e ainda a transição e catalisação digital das empresas (rede nacional de ‘test beds’, o comércio digital, o apoio a novos modelos de negócio e empreendedorismo, os ‘digital innovation hubs’).
Por último, mais não menos importante, o desafio da digitalização toca também à Administração Pública – uma administração pública mais célere, eficiente e eficaz é uma das condições necessárias para o bom funcionamento da economia. Por isso, também esta deve aproveitar a oportunidade do PRR para saber modernizar-se, digitalizar os seus procedimentos (que não apenas digitalizar documentos), desburocratizar e simplificar. Esta simplificação é um passo decisivo para alcançar a redução dos custos fiscais e administrativos que impendem sobre estas empresas, incluindo, desde logo, custos de compliance.
Enfim, para concluir, pode afirmar-se que a recuperação económica no após COVID-19 assentará claramente nos eixos das transições ambiental e digital. A aceleração desses processos de mudança – que são mudanças paradigmáticas e globais – perturba as existentes cadeias de valor global. O exemplo da disrupção associada à produção de semicondutores – uma produção hoje pressionada em simultâneo quer pela transição ambiental quer digital – expõe um conjunto de vulnerabilidades das economias no seu todo, mas também, e desde logo, das respetivas unidades de produção. As PME, integrando cada uma dessas cadeias de produção, estarão, à partida, numa situação de vulnerabilidade acrescida, dado o seu menor poder negocial.
Todavia, as consequências destas disrupções que a pandemia intensificou (se bem que algumas já antes anunciadas num quadro de tensões comerciais anteriores) são, por ora, pouco claras, quer se trate de impactos globais ou particulares. Quanto aos impactos globais, é prematuro, por ora, dizer-se que a globalização dará lugar à relocalização, com redução das cadeias de valor. Ainda que, quer a digitalização (comportando a erosão das vantagens comparativas associadas ao trabalho) quer a emergência climática (favorecendo propostas de decrescimento económico) possam sugerir a redução dessas cadeias de valor, ou seja, uma relocalização do processo produtivo, é prematuro votar-se já à decadência a ideia de globalização e o pressuposto multilateralista em que tem assentado o comércio internacional nas últimas décadas. Quanto aos impactos particulares destas disrupções, no caso impactos sobre as PME, os mesmos são também ainda pouco claros: se para aquelas PME integradas em cadeias de valor longas, a disrupção pode ter significado perda de mercado e menores oportunidades para beneficiar dos ‘spillovers’ que essa presença lhes confere em matéria de acesso a tecnologia e a conhecimento, também é verdade que para as PME locais que possam envolver-se em novas cadeias de valor e em novas relações estratégicas com grandes empresas (incluindo multinacionais), ou que possam vir a assegurar a oferta de alguns segmentos domésticos da cadeia de valor, essa disrupção pode afinal significar novas quotas de mercado e oportunidades quanto aos referidos ‘spillovers’ e acesso a financiamento (desde logo financiamento comercial) que essa nova presença lhes conferirá (OECD (2021). SME and Entrepreneurship Outlook 2021, OECD: Paris).
Os poderes públicos e a política económica têm aqui um papel a desempenhar. Por exemplo, no quadro da política industrial parecem impor-se novas abordagens que envolvam, por um lado, o reforço de ligações de negócio através de políticas de clusters (desde logo, clusters regionais) e, por outro lado, a atração de empresas multinacionais estrangeiras, reforçando o papel estratégico das PME nas cadeias de valor globais, através de um conjunto de políticas de promoção de investimento, de inovação, de desenvolvimento regional, que assegurem às PME domésticas os benefícios do investimento direto estrangeiro e que assegurem a retenção daquelas mesmas grandes empresas ou multinacionais. No caso português, esta nova abordagem da política económica permitirá também ultrapassar algum condicionamento que advém da nossa situação geográfica periférica.
Em suma, as PME portuguesas têm, neste momento, uma oportunidade única para, no quadro da transição ambiental e digital, inovarem nos seus processos produtivos e produtos, diferenciando-se e afirmando-se nas novas cadeias de abastecimento globais, acrescentando valor. A política económica – nas suas diversas vertentes – tem um papel a desempenhar na criação de um ambiente favorável ao robustecimento económico e financeiro das PME. Na definição dessa política, importa ainda não esquecer o inestimável papel que as PME têm e devem continuar a ter na manutenção dos equilíbrios económicos, sociais e territoriais no nosso país.
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* Texto correspondente, com algumas adaptações, a uma apresentação feita no 9º Congresso da Ordem dos Economistas, no dia 23/11/2021. As opiniões expressas são pessoais e não vinculam o CFP.
Presidente do Conselho Superior do Conselho das Finanças Públicas (CFP).