Pode ser tomado como conveniência minha, mas entendi subtrair desta intervenção a pesada realidade consubstanciada na invasão russa da Ucrânia, que no presente tanto nos aflige. A razão pela qual o faço, não reside numa intenção de comodidade, mas antes na pretensão de dar maior horizonte espacial e temporal à questão que me proponho apresentar.*
O tema que me foi sugerido, “Cenários de emprego das Forças Armadas no futuro”, encerra a priori uma dificuldade, que bem devemos qualificar como essencial e que talvez se possa resumir a duas interrogações. Como será o futuro? E quando será o futuro?
O que mais sabemos disso é que a maior constante do nosso tempo é a mudança permanente e rápida.
Do ponto de vista da lógica formal, isto representa um paradoxo. Mas do ponto de vista da realidade é mesmo assim. E a tendência manifesta é para que essa mudança e o seu ritmo se intensifiquem e acelerem.
Podemos daqui concluir que o futuro é substantivamente todos os dias e que isso não é uma noção cronológica. Ainda bem que não me dirijo a nostálgicos e saudosistas, porque muito me custaria dar-lhes esta vertiginosa notícia.
Uma conclusão preliminar é que não há propriamente “rede” e muito menos uma “rede” firme, para o tema que vamos procurar tratar.
Mas há muitas coisas que podemos e, sobretudo, devemos antever. Tal como são identificáveis algumas tendências, aparentemente claras.
Será nesses aspetos que me basearei.
Elegi três parâmetros para a reflexão que me parece possível ser hoje feita em torno do nosso tema.
O primeiro, está ligado às características do atual contexto e, nessa perspetiva, a duas noções basilares: a noção de Poder e a de Soberania.
Lembremo-nos do lema que Luís XIV fez gravar nos seus canhões: ultima ratio regum. Nada mais estruturante e definitivo para a soberania. Hoje e no futuro, as Forças Armadas continuarão a ser estruturantes dos Atores soberanos. Mas o contexto e com ele e por causa dele, as noções absolutamente enquadrantes de Poder e de Soberania mudaram e continuarão a mudar significativamente, conduzindo naturalmente à necessidade de outros e diferentes olhares sobre o instrumento militar.
Há aqui terreno para muito intenso e laborioso debate de ideias e, fatalmente, para especulação.
Mas fiquemos por coisas simples:
– vivemos num tempo de globalização; desde logo, porque as condições tecnológicas permitem que, com vantagem, muitos processos e fluxos políticos, económicos e sociais ocorram à escala do Mundo;
– se já antes havia fortes relações de interdependência, a globalização intensificou-as e a evolução tecnológica vai levá-las ainda mais longe;
– mas também vivemos num tempo de globalização, porque convivemos hoje e conviveremos mais no futuro, com um conjunto de fenómenos insuscetíveis de territorialidade e de soberania no sentido clássico; exemplos inequívocos desses fenómenos são as alterações climáticas, o ambiente, o ciber espaço ou as pandemias, definindo o que poderíamos designar como uma “globalização natural”, tão inerente ela é a esses novos fenómenos;
– também por essa razão se acentuaram neste âmbito as interdependências, induzindo evidentes imperativos de corresponsabilização e de cooperação;
– estes fatores tornam obrigatória uma grande atenção à governação global, ou seja, ao tratamento das questões de natureza global, a que ninguém se pode subtrair, o que nada tem que ver com a ideia um pouco utópica de um Governo Mundial;
– por razões culturais e sociais, as Pessoas estão hoje muito mais no centro da vida coletiva do que alguma vez estiveram, mesmo que essa centralidade esteja muito longe de ser perfeita nos planos político, económico ou social; mas não podemos ignorar ou desvalorizar o peso da opiniões públicas e das dinâmicas que percorrem as redes sociais e a importância, umas vezes positiva, outras negativa, que tudo isso assume;
– a existência das Organizações Internacionais como sedes de interdependência reforçada e de cooperação, a par com um sentimento historicamente ímpar de responsabilidade pública e comum, sem terem naturalmente dinamitado por completo a coerção como expressão do Poder, tornaram mais exequíveis e, portanto, mais correntes, as ideias de influência e até de atratividade, enquanto traduções do Poder;
– a evidente limitação para a auto suficiência, de que ninguém se pode pretender isento, levou à evolução do conceito de Soberania, para admitir fórmulas, ainda que não completamente abrangentes, de soberania partilhada entre Estados; a União Europeia é a esse propósito o paradigma mais manifesto, através de processos de cooperação reforçada, como o Euro e Schengen, ao mesmo tempo que essa ideia está no ar relativamente às Políticas Externa, de Segurança e de Defesa da União, ou, pelo menos, a partes delas.
Actuar em conjunto, do planeamento, à decisão e à própria ação, são regras que crescentemente marcarão o futuro, sendo evidentemente indispensável que se tenha simultaneamente como certo que não serão regras universais e que não deixaremos de ser confrontados com regimes e lideres imprevisíveis, párias e mesmo marcados por alguma sociopatia.
Não preciso de salientar o impacto das transformações que referi nas conceções clássicas relativas às Forças Armadas e nas visões relativas aos cenários do seu eventual emprego.
Daqui se pode extrair como uma conclusão que os modelos do passado não se ajustam plenamente aos requisitos do futuro. Desses modelos podem e devem retirar-se referências éticas e institucionais. E muitos e bons exemplos. Mas deles não se podem esperar modelos organizativos e operacionais adequados aos novos e sempre evolutivos requisitos.
Um segundo parâmetro, muito caro à ação militar, que se alterou substancialmente e que continuará a alterar-se, é o da Estratégia.
É uma alteração em dois planos principais.
Por um lado, na relação entre Política e Estratégia. No fundamental, a Política continuará a ser uma doutrina de fins e a Estratégia uma doutrina de meios. E a Estratégia manter-se-á como subordinada da Política. Mas a diferença está em que, pela natureza prevalecente da conflitualidade contemporânea, a interação entre ambas as atividades é hoje muito mais intensa e mais permanente.
Em síntese, aquilo a que é preciso atender é que deixou de haver dois tempos diferenciados, um, para a ação política, seguido por outro, para a ação estratégica. Os momentos para a ação política e para a ação estratégica são hoje extensamente coincidentes.
No essencial, isso deve-se ao facto da Segurança não ser mais um estado ou uma condição a que se chega e que se garante por via militar, ou fundamentalmente por via militar, mas antes algo que só é alcançável pelo recurso convergente, coerente e coordenado de diversas formas de ação estratégica, com destaque para as diplomática, económica, social, cultural e, naturalmente, militar, todas regidas pelo critério e pela responsabilidade superiores da Política.
A multidimensionalidade é uma condição natural da Segurança contemporânea. Nunca deixou de o ser. Mas nunca foi tão marcada como hoje é e como, muito provavelmente, ainda mais será no futuro.
Isto também define para todos os diferentes intervenientes na multidimensionalidade que passou a caracterizar a ação estratégica, um imperativo de interdisciplinaridade que os torne aptos ao mútuo entendimento. Isto é, todos têm necessidade de conhecer, não os pormenores, mas certamente o essencial do recorte e do modus operandi de uns e outros.
Para as Forças Armadas, como para todos os intervenientes, resultam daqui implicações de cenário de emprego e de formação, em especial, mas não só, dos seus Quadros.
Destas circunstâncias emanou também a segunda alteração para a Estratégia a que quero fazer referência. Todos estudámos, aprendemos e compreendemos a pirâmide da Estratégia que Liddel Hart anteviu, André Beaufre concebeu e Abel Cabral Couto desenvolveu, com método e rigor. Mas, hoje, esse modelo de Estratégia hierarquizada e segmentada ou setorializada, não é mais aplicável.
Hoje e de modo reforçado no futuro, a ação estratégica carece de ser compósita, conjugando em permanência todas as formas de ação e, ao mesmo tempo, de ser conduzida em rede, em linha com a interconectividade da realidade contemporânea.
Associada a tudo isto está o que julgo que seja a característica dominante das guerras futuras que, numa palavra, se pode descrever como híbrida, no sentido em que associarão uma multiplicidade de fatores e variáveis. Das tecnologicamente mais sofisticadas à insurgência, por vezes primitiva. Do militar, ao económico, ao social ou ao cultural.
Com um relevantíssimo dado adicional. Não haverá modelo para as guerras híbridas. Quase por definição, nenhuma guerra híbrida será igual a outra guerra híbrida. O que é o mesmo que afirmar que nenhuma guerra será igual a outra guerra.
Como é difícil, se não inviável, antecipar cenários nestas condições!
Seja-me permitida uma consideração um pouco atrevida, mas que talvez sirva para, simbolicamente, evidenciar uma profunda alteração de paradigma.
Sempre se observou que um problema fundamental era que as Forças Armadas se preparavam à luz da experiência e dos ensinamentos das guerras passadas e só depois, já na ação, face ao que enfrentavam, verificavam o desajustamento, maior ou menor, mas sempre desajustamento.
Talvez agora tenha que ser assumidamente diferente. As Forças Armadas devem ter como certo que os cenários da sua ação futura serão marcadamente diferentes e que é para o inédito, para o inesperado, para o imprevisto e não para o que já experimentaram, que têm que estar preparadas.
A tecnologia, talvez melhor dizendo, a inovação tecnológica, terceiro parâmetro a que me proponho, levanta questões muito importantes. Desde logo, o que poderíamos designar como a diferenciação e a universalidade da sua presença. Do ciber, à robotização, à digitalização extensiva, à automação, à inteligência artificial, ao recurso a sistemas não tripulados e acionáveis à distância, etc.
Não somos capazes de fazer hoje a leitura de até onde se irá neste domínio. Mas temos a obrigação de perceber com clareza que se irá muito longe, cada vez mais longe. E de compreender que ficar para trás, mais do que perder valor, será desaparecer por irrelevância.
No passado, enunciava-se esta questão como tendo apenas implicações no contexto da interoperabilidade. Esse aspeto mantém-se, mas é bom ver para além dele e perceber e antecipar como profundas diferenças neste domínio terão claríssimas implicações nos planos estratégico e político. Por exemplo, tornando inviáveis ou, pelo menos, dispensáveis algumas alianças e parcerias.
No nosso espaço geopolítico, nas Organizações Internacionais de âmbito regional que integramos, nenhum Estado e nenhumas Forças Armadas se poderão subtrair a esse processo.
O que levanta questões sérias no plano do investimento e da aptidão. Sugerindo a necessidade de se fazerem opções.
Entronca aqui a questão muito delicada da especialização militar. É uma questão que, ainda que em grau variável, se coloca com muita nitidez entre Estados Aliados e Parceiros.
Face às nossas manifestas limitações materiais, é particularmente sensível para Portugal e para as nossas Forças Armadas. Como o é para todos os Estados com uma base material de Poder de escala análoga à portuguesa.
No passado e nomeadamente no quadro de responsabilidades que detive, fui sempre, de modo muito empenhado, contra a ideia da especialização militar que muitas vezes vi levantada. Entendia que, para Portugal, não seria possível e em alguns casos não teria completa razão de ser, pretender ter capacidades absolutamente abrangentes no que concerne à ação militar mas, ao mesmo tempo, considerava que “especializar seria subalternizar” e, como tal, algo de absolutamente inaceitável.
Hoje, perante a alteração das condições e a magnitude dos desafios que lhes estão associadas, o meu entendimento tende a ser um pouco diferente.
Continuo a preconizar que as Forças Armadas nacionais mantenham e desenvolvam com elevado padrão tecnológico capacidades gerais com que possam cobrir a “zona central” do espectro da ação militar, mas considero possível que, num quadro de partilha e de harmonização coletiva, da NATO ou da União Europeia, admitam, no interesse comum, maximizar uma ou várias dessas capacidades.
Compreendida dessa forma, especializar não corresponderá a estreitar as nossas capacidades num domínio muito exíguo, por essa via gerando subalternidade, mas antes a desenvolver algumas delas até um patamar de excelência máxima e eventualmente ímpar. E, claro, mantendo todas as outras num bom e ajustado padrão.
Acrescento que, sob essa nova e diferente perceção, esta ideia parece estar a fazer caminho na União Europeia, incluindo nas considerações quanto à designada “Bússola Estratégica”. Mas esperemos pela conclusão e pelas consequências desse exercício.
Há pouco de especificamente português em tudo o que tenho vindo a referir. São questões comuns, nomeadamente aos nossos Aliados e Parceiros.
Considero que decorre daqui uma óbvia vantagem em as debatermos e trabalharmos em conjunto, construindo, quando possível e justificado, soluções e modelos que, sem prejuízo da independência e especificidade a que todos naturalmente aspiram, melhor possam refletir e servir um funcionamento que só raramente não terá um caráter de busca de harmonia e de melhor rendimento coletivos.
Em sentido muito geral, creio que estamos perante requisitos que definem uma abordagem regida por seis critérios essenciais.
Em primeiro lugar, compreendendo que as Instituições são garantes indispensáveis à vida e à perenidade das sociedades e que, pelo seu caráter de estruturantes do Estado e de identitárias da Nação, as Forças Armadas são, nesse quadro, uma das mais relevantes e decisivas.
Em segundo lugar, compreendendo as Forças Armadas como um elemento central das políticas públicas de Segurança e Defesa e cuidando adequadamente do investimento que isso impõe.
Em terceiro lugar, praticando uma articulação positiva, convergente e constante entre direção política e comando militar, reconhecendo uma extensa coincidência de responsabilidades no quadro do Estado, sem prejuízo da direção política se situar num nível mais elevado e responder por um âmbito mais vasto de matérias.
Em quarto lugar, erigindo um modelo militar regido por uma conceção centralizada quanto à organização, ao planeamento e à decisão, mas flexível e aberto à eventualidade de descentralização da ação.
Em quinto lugar, adotando uma atitude rigorosa e exigente na salvaguarda da natureza una da missão e do sistema de forças das Forças Armadas e também quanto à garantia de inteira unidade e coerência entre missão, sistema de forças, políticas de equipamento e avaliação operacional.
Em sexto lugar, promovendo e assegurando uma presença constante e ativa das Forças Armadas no todo diverso da sociedade nacional, sobretudo no plano funcional e abarcando todas as suas capacidades, e também não descurando a realidade geográfica.
Como referi, é difícil antever cenários de emprego futuro das Forças Armadas, mas é razoavelmente possível compreender as circunstâncias futuras determinantes de uma redefinição, provavelmente permanente, do instrumento militar e de antevisão das condições e circunstâncias do seu emprego.
Foi isso que tentei fazer.
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* Intervenção na Secção de Ciências Militares da Sociedade de Geografia de Lisboa, em 16 de março de 2022.
Nasceu em Lisboa, em 7 de fevereiro de 1946, ingressou na Academia Militar em 14 de outubro de 1963 e passou à situação de Reforma em 7 de fevereiro de 2011, perfazendo mais de 47 anos de serviço efetivo nas Forças Armadas.
Foi promovido ao posto de General em 6 de Agosto de 2003, quando assumiu as funções de Chefe do Estado-Maior do Exército, que exerceu até 5 de Dezembro de 2006, data em que assumiu as funções de Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, responsabilidade que deteve até à passagem à Reforma.
Presentemente, é Professor Catedrático Convidado no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e no Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, sendo investigador em ambas as instituições.