Nº 2643 - Abril de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A actual jurisdição militar
Mestre
Carlos Gaspar

1 – Tutela constitucional da Justiça sancionatória militar*

A defesa nacional é tarefa fundamental do Estado, na medida em que lhe cabe garantir a independência nacional, conforme artigo 9.º al. a), da Constituição da República Portuguesa (CRP), “e nesta obrigação expressa, as Forças Armadas são um elemento constitucionalmente endógeno”1 e, assim, há uma espécie de Constituição militar2, que integra um conjunto significativo de normas constitucionais respeitantes às Forças Armadas e à função militar, especificamente no que respeita a valores essenciais como a sua disciplina orgânica e o direito sancionatório militar, penal e disciplinar3.

Conforme ensina ANTÓNIO GASPAR, a consagração dos normativos específicos relativos às bases gerais da disciplina constitucional das Forças Armadas e, especialmente, com enfoque no exercício da justiça penal e disciplinar, verificam-se porquanto a “natureza e o exercício da função militar, enquanto valor estrutural de permanência e continuidade da Nação, participa de valores singulares que têm justificado ao longo de tempo a existência de sistemas sancionatórios próprios, tanto na definição material como nas competências de exercício e aplicação”4.

Ademais, a CRP inclui na reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República a definição das bases gerais da disciplina das Forças Armadas e na reserva relativa de competência deste órgão de soberania o regime geral de punição das infracções disciplinares e crimes militares. Conforme, respectivamente, artigo 164.º alínea d), e 165.º alínea c) e d) da CRP, o Governo não tem competência legislativa quanto às bases gerais da disciplina das Forças Armadas, mas pode legislar, desde que autorizado pelo Parlamento, sobre o regime geral de punição das infracções disciplinares e dos crimes militares, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal.

Na denominada constituição militar há um conjunto significativo de normas atinentes à regulação das bases gerais da disciplina das Forças Armadas, conforme artigos 164.º alínea d), 165.º n.º 1 al. c) e d), 199.º alínea d), 209.º n.º 4, 211.º n.º 3, 213.º, 219.º n.º 3, 266.º, 274.º e 275.º da CRP, outras reflectem-se no direito disciplinar militar, conforme artigos 27.º n.º 3, alínea d), 30.º n.º 4, 32.º, 164.º alínea o), 268.º, 269.º, 270.º e 271.º, e outras, inevitavelmente, relativas à matéria penal militar, conforme artigo 19.º n.º 6, 29.º e 32.º CRP.

 

2 – Da Justiça Penal Militar

Ensina CARLOS ALEXANDRE que “o foro militar foi desde sempre um sistema tendencialmente completo, com leis substantivas, do processo e organização Judiciária próprias, ou seja, com crimes, investigação, processo e tribunais próprios”5.

Relativamente à justiça militar penal, a IV Revisão Constitucional, de 1997, rompeu com a solução que vinha do passado, na medida em que extinguiu os tribunais militares6, em tempo de paz, e integrou tendencialmente a justiça militar no sistema penal comum, atribuiu a jurisdição material penal aos tribunais judiciais, previu formas especiais de assessoria do Ministério Público e adoptou o conceito de crime estritamente militar, conforme artigos 211.º n.º 3 e 219.º n.º 3 da CRP. “No essencial, integrou a justiça militar no sistema jurisdicional comum”7.

Os trabalhos preparatórios da IV Revisão permitem saber que estas matérias, embora não tenham sido absolutamente consensuais, permitiram acordos políticos para a reforma constitucional do modelo penal militar, conforme resulta das actas8: “Com a lei constitucional n.º 1/97, a jurisdição regular dos tribunais militares, passou a excepcional, verificando-se apenas em estado de guerra. Passam, assim a assumir uma dupla configuração excepcional. A CRP, ao proibir a existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes, excepcionou os tribunais militares. Com a revisão constitucional, tornou-se excepcional também o seu funcionamento. A lei constitucional n.º 1/97 também alterou a designação dos crimes, de essencialmente militares para estritamente militares (…) o fim dos tribunais militares em tempo de paz não se traduziu no fim dos juízes militares em tempo de paz e muito menos dos crimes de natureza estritamente militar praticados em tempo de paz (…)”9.

A Lei Constitucional n.º 1/97 extinguiu os tribunais militares em tempo de paz, atribuindo a jurisdição dos crimes militares aos tribunais comuns, conforme artigo 211.º n.º 3 da CRP, que preceitua que “da composição dos tribunais de qualquer instância que julguem crimes de natureza estritamente militar fazem parte um ou mais juízes militares, nos termos da lei”.

A CRP manteve a existência de tribunais militares apenas quando o País se encontre em Estado de Guerra, conforme artigo 213.º da CRP, que dispõe que “durante a vigência do estado de guerra serão constituídos tribunais militares, com competência para o julgamento de crimes de natureza estritamente militar”.

Estabeleceu-se também a criação de assessoria especializada junto do Ministério Público (MP) nos casos de crimes estritamente militares, conforme artigo 219.º n.º 3, da CRP que refere que “a lei estabelece formas especiais de assessoria junto do Ministério Público nos casos dos crimes estritamente militares”.

Ensina ainda CARLOS ALEXANDRE que: “a revisão constitucional de 1997 marcou, assim, uma ruptura e impôs uma reforma no âmbito da organização judiciária e do direito penal e processual militar, que foi concretizada mais tarde com a aprovação do Código de Justiça Militar (CJM), em 2003”10.

GIL PRATA também indica que: “a discussão parlamentar que antecedeu a revisão constitucional de 1997 preocupou-se em analisar o conceito de justiça penal militar e discutiu a manutenção de uma específica jurisdição militar e a manutenção de um específico direito penal militar. Decidiu extingui-la como jurisdição autónoma e não enveredou pela criação de tribunais de competência especializada militar, seja ao nível de 1.º instância seja ao nível dos tribunais superiores (secções especializadas)”11.

Todavia, no que respeita ao direito penal militar, considerou-se que a natureza dos bens jurídicos que deveriam ser tutelados justificava a consideração da especificidade e, nessa medida, ficou consagrado constitucionalmente a intervenção de juízes militares nos tribunais comuns, conforme artigo 211.º n.º 312.

Face à complexidade destas alterações dogmáticas no ordenamento constitucional, os Tribunais Militares permaneceram em funções até 2004, altura em que entrou em vigor a Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro, que aprovou o novo Código de Justiça Militar, a Lei n.º 105/2003, de 10 de dezembro, que adaptou a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais à nova organização e competências13, acompanhadas do Estatuto dos juízes militares e assessores militares do MP, conforme Lei n.º 101/2003, de 15 de novembro14-15.

A consagração constitucional da integração de juízes militares colhe justificação pela abordagem dos crimes de natureza estritamente militar como ilícitos penais especiais, cuja apreciação exige especiais conhecimentos, “não apenas técnicos, mas sobretudo da vivência, das condições particulares da cultura militar e dos valores que subjazem à condição militar, em que os valores da disciplina, a importância do cumprimento de ordens e a obediência hierárquica são essenciais, e cientes dos aspectos operacionais da função militar, das ameaças, riscos e da pressão psicológica inerentes”16.

 

2.1 Crimes militares

Na redacção anterior à IV revisão Constitucional, “de acordo com o artigo 215.º da CRP, a lei penal distinguia entre crimes de natureza militar, factos que violassem algum dever exclusivamente militar ou que ofendessem directamente a disciplina (crimes meramente militares) ou também a segurança (crimes essencialmente militares) e, por outro lado, crimes (acidentalmente) militares em virtude da qualidade de militar do arguido, do lugar ou das circunstâncias em que fossem cometidos”17.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional foi muito relevante na identificação do núcleo essencial do conceito estritamente militar, reiterando: “a constituição exige que o legislador se mantenha no âmbito estritamente castrense, só podendo submeter à jurisdição militar aquelas infracções que afectem inequivocamente interesses de carácter militar e que por isso mesmo hão-de ter com a instituição castrense uma qualquer conexão relevante, quer porque exista um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque esse nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa nacional”18.

A Lei Constitucional n.º 1/97 e o novo CJM de 2003 determinaram, assim, uma alteração profunda no regime sancionatório penal militar, não só pela exigência da qualidade criminal, isto é, da natureza do crime, mas também na quantidade, porquanto a parte especial do CJM de 1977 tinha 153 artigos e a do CJM vigente tem apenas 80 artigos19.

São agora crimes militares apenas os crimes estritamente militares, em que se tutelam interesses militares da Defesa Nacional, isto é, bens jurídicos relacionados com as missões constitucionalmente consagradas da Defesa Nacional e com valores fundamentais das Forças Armadas20. Nos termos do artigo 1.º do CJM, o crime estritamente militar é definido como “o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas”.

A noção define de modo mais restrito o bem jurídico a proteger e reduz o elenco de crimes, “não bastando que o facto típico, ilícito e culposo lese interesses militares, em geral, é necessário que se trate de interesses militares especialmente qualificados, que protegem valores essenciais inerentes à própria natureza da instituição e da função militar”21.

A Revisão Constitucional de 1997, em consonância com o CJM de 2003, na redefinição do conceito de crime estritamente militar foi ao encontro da jurisprudência e a doutrina, isto é, na centralidade da defesa do bem protegido (interesse militar).

FIGUEIREDO DIAS22 clarificou: “tal como sucede com o direito penal comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimação democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico” (…) “o direito militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militar, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão”.

É possível observar que “no regime actual, o crime estritamente militar é caracterizado pela exclusividade do bem militar que esteja em causa e que se reconhece atendendo às funções atribuídas às Forças Armadas pela CRP”23, conforme artigos 273.º, 275.º e 276.º da CRP.

Os interesses militares da defesa são, portanto, os seguintes: “a independência e a integridade nacionais (traição à Pátria, violação de segredo, espionagem, infidelidade no serviço militar), os direitos das pessoas (crimes de guerra, crimes em aboletamento); a missão das Forças Armadas (actos de cobardia, abandono de comando); a segurança das Forças Armadas (abandono de posto, ofensas a sentinela; entrada ou permanência ilegítima em instalações militares); a capacidade militar (deserção, dano, comércio ilícito, extravio, furto e roubo de material de guerra); a autoridade (insubordinação; abuso de autoridade); e o dever militar e o dever marítimo (ultraje à Bandeira Nacional, perda ou abandono de navio), isto é, portanto, bens jurídicos relacionados com os objectivos constitucionalmente consagrados da defesa nacional e com valores fundamentais”24.

 

2.2 Da Justiça Disciplinar Militar

Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 33/2002, de 03-06 de 200225, “a alteração levada a efeito pela Revisão Constitucional operada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, não pode, aliás, neste particular, deixar de ser entendida como querendo significar que foi ultrapassada a separação então existente entre a Administração Pública e as Forças Armadas, que resultava da organização do poder político estabelecido no período de transição posterior a 1976, organização essa que se visou justamente terminar com a 2.º revisão constitucional, com a qual ficou sublinhada a recusa de uma concepção de acordo com o qual as Forças Armadas como que constituíam uma comunidade separada, dotada de ordenamento interno autónomo, ficando, pois, após a dita revisão, consagrado inequivocamente o entendimento segundo o qual só existe uma autêntica lealdade constitucional das Forças Armadas se, sem prejuízo do reconhecimento da sua especificidade, o próprio subsistema jurídico-militar, for leal à Constituição”.

O Direito Disciplinar Militar tem, por isso, “de obedecer aos princípios que regem a actividade dos órgãos e agentes administrativos e às garantias previstas para os administrados”26.

Neste sentido, o direito disciplinar militar enquadra-se no âmbito mais vasto do direito sancionatório público27, valendo o regime previsto no artigo 269.º n.º 3 da CRP, “em processo disciplinar são garantidos ao arguido a sua audiência e defesa”, garantia também prevista no artigo 32.º n.º 10, da CRP.

O Regulamento de Disciplina Militar (RDM) salvaguarda as garantias constitucionais previstas no artigo 32.º n.º 5 da CRP, de “audiência e defesa do arguido”, porquanto “o artigo 77.º do RDM prevê o direito do arguido a escolher defensor e de ser assistido, também em situações excepcionais, como em teatro de operações ou integrado na Unidade naval ou aérea, a navegar ou em voo, e na defesa do principio da imparcialidade da actuação dos órgãos administrativos, porquanto à luz dos artigos 90.º, 97.º, 104.º, 105.º e 106.º do RDM, consagrou-se que a entidade que procede à instrução do processo é distinta da que aplica a sanção disciplinar”28.

Os artigos 121.º e 133.º do RDM, ao preverem que cabe reclamação e ou recurso hierárquico para o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) que aplique sanções disciplinares e impugnação judicial das decisões proferidas pelo CEMGFA ou pelos Chefes de Estado-Maior (CEM) dos Ramos, através do recurso hierárquico necessário, asseverando ANTÓNIO GASPAR que, “consagra a garantia constitucional aos administrados prevista no artigo 268.º, n.º 4 da CRP, no sentido de tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e em razão de garantia específica que é dada ao arguido em processo disciplinar, uma vez que a última instância do direito de defesa em matéria disciplinar é a possibilidade de recurso contencioso dos actos administrativos que se traduzem na aplicação de sanções disciplinares no âmbito da instituição militar”29.

A revisão constitucional de 1997, que extingui os tribunais militares, em tempo de paz, procedeu à revogação da norma que permitia atribuir aos tribunais, que julguem crimes de natureza militar, competência para aplicar medidas disciplinares, conforme anterior artigo 215.º n.º 3 da CRP, “mas dado que as Forças Armadas são parte integrante da Administração Pública, compete aos Tribunais Administrativos o julgamento das impugnações jurisdicionais que tenham por objecto penas disciplinares aplicadas pelos Chefes de Estado-Maior, conforme artigo 212.º n.º 3 da CRP, e artigo 268.º n.º 4 da CRP”30.

Assim, os Tribunais Administrativos passaram com a IV Revisão Constitucional a ser, e são actualmente, “os tribunais competentes para o julgamento dos litígios relativos às questões de impugnação das penas disciplinar militares, quer a título de tutela principal como em termos de tutela cautelar”31.

Em termos de contencioso judiciário, as penas disciplinares militares mostram-se hoje delimitadas em função da pena disciplinar aplicada e compete aos Tribunais Centrais Administrativo em 1.º instância decidir das impugnações das sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas, conforme artigo 6.º da Lei n.º 34/2007, de 13 de agosto32, que estabelece o regime especial dos processos relativos a actos administrativos de aplicação de sanções disciplinares previstas no RDM. Acompanhando CARLOS MEDEIROS DE CARVALHO, “os TCA conhecem, em 1.ª instância, os processos relativos a actos administrativos punitivos de aplicação a militares das penas disciplinares de proibição de saída e das penas mais gravosas, como da suspensão de serviço, da prisão disciplinar, da reforma compulsiva e da reparação de serviço para os militares dos Quadros-Permanentes e da cessação compulsiva para os militares em regime de voluntariado e em regime de contracto”33.

Aos Tribunais Administrativos de Círculo (TAC) cabem a apreciação e julgamento dos processos relativos a actos administrativos disciplinares punitivos com as penas menos gravosas, como a repreensão e repreensão agravada, conforme artigo 44.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 6.º da Lei n.º 34/2007, de 13 de agosto “e bem assim, de outros actos administrativos que se mostram previstos no RDM e ao que abrigo do mesmo forem proferidos, como, por exemplo, actos como os da apreciação de legalidade das decisões dos CEM de cada Ramo que hajam recaído sobre os recursos hierárquicos deduzidos sobre a queixa prevista no artigo 85 do RDM e sobre a decisão liminar que haja determinado o arquivamento da participação ou queixa, conforme artigo 89 n.º 2 do RDM, ou, ainda, as decisões do CEGMFA ou CEM dos respectivos Ramos em termos de medidas cautelares, de suspensão e transferência preventiva, conforme artigo 95 n.º 3 a 5 do RDM”34.

Ensina CARLOS MEDEIROS DE CARVALHO que “quanto aos meios ou formas processuais empregues no contencioso administrativo das penas disciplinares militares, o regime especial previsto na Lei n.º 34/2007, não prevê nenhum meio especifico para a dedução e julgamento dos litígios sujeitos a tal contencioso, pelo que serão aplicados os meios processuais previstos no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), in casu, a título de tutela principal, o recurso à acção administrativa para impugnação dos actos administrativos punitivos tendo por objecto a anulação ou a declaração de nulidade desses actos, conforme artigos 37.º n.º 1 al. a), 50.º a 65.º e 78.º a 95.º, e enquanto forma de processo não urgente, ou, então verificados os requisitos para intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, como meio de tutela urgente, conforme art.ºs 109.º a 111.º, e a título de tutela provisória ou cautelar, o uso dos procedimentos cautelares previstos no artigo 112.º, com especial incidência para o da suspensão de eficácia daqueles actos administrativos”35.

Não obstante o regime especial previsto na Lei n.º 34/2007, “valem, no mais e no essencial, as regras gerais insertas no CPTA quanto a pressupostos em termos de competência, conforme artigo 13.º, quanto ao conhecimento oficioso da competência, artigo 14.º, quanto às consequências de petição em tribunal incompetente, artigo 16.º, quanto à regra geral de competência territorial, quanto à legitimidade processual, activa, conforme artigo 9.º e 55 n.º 1 al. a), do CPTA, cabe ao militar que alegue ser parte na relação material controvertida, e passiva, conforme n.º 2 do artigo 10.º cabendo, no caso, ao Ministério da Defesa Nacional, tal como sustentado pelo Supremo Tribunal Adminisitrativo (STA), no seu acórdão de 10 de maio de 2007, processo 886/06”36.

De referir ainda que “nenhuma particularidade reveste este contencioso no que tange ao regime da personalidade e capacidade judiciárias, conforme artigo 8-A do CPTA, e também em sede de patrocínio judiciário e representação em juízo, mostra-se obrigatória a constituição de mandatário nos termos previstos do Código Processo Civil, podendo as entidades publicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou solicitadoria com funções de apoio jurídico”37.

Quanto à possibilidade de recorrer contenciosamente, os actos de impugnação devem anteceder de eventual reclamação, sempre facultativa e deduzida por escrito, no prazo e 15 dias, não suspendendo o prazo de dedução do recurso hierárquico, conforme artigo 121.º n.º 1 e 3 do RDM, 184 a 186.º e 191.º do CPA, e dependente de recurso hierárquico necessário, “em contraponto com o regime geral previsto no artigo 185 n.º 2 do CPA, a interpor para o CEMGFA ou para os respectivos Chefes de Estado-Maior do Ramo, no prazo de 10 dias, conforme artigo 124.º n.º 1 e 3 do RDM, e a ser decidido em 30 dias, com efeito suspensivo, exceptuando as penas de repreensão e repreensão agravada, conforme artigo 51 n.º 2 do RDM”38.

Cumpre notar, todavia, que não cabe recurso hierárquico, constituindo actos administrativos imediatamente impugnáveis as decisões do CEMGFA e dos respectivos CEM, conforme artigo 50.º e 51.º do CPTA, 125.º n.º 2 e 133.º do RDM.

Em termos de prazo de dedução da acção administrativa versando sobre este contencioso disciplinar militar, vale o regime geral previsto no artigo 58.º do CPTA, pelo que a impugnação de actos nulos tem lugar no prazo de três meses, contando-se este prazo nos termos do artigo 279.º do Código Civil.

Em termos de tramitação processual, conforme artigos 78.º a 93.º do CPTA, das regras de instrução e de produção de prova, conforme artigos 90.º, 91.º e 94.º do CPTA, e dos poderes de pronúncia, de facto e de direito, do julgador, conforme artigo 94.º e 95.º do CPTA, “não se impõem diferenças substanciais face ao que constitui o demais contencioso, apenas impondo-se a intervenção de juízes adjuntos militares, na emissão de parecer sobre a decisão do processo, nos termos do artigo 4, n.º 2 al. c, da Lei 79/2009, e artigo 35 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)”39.

Por fim, ressalta do artigo 2.º da Lei n.º 34/2007 que existe um regime especial quanto à suspensão cautelar de eficácia dos actos administrativos em matéria de disciplina militar, “determinando-se que quando seja deduzida uma providência cautelar peticionando a suspensão de eficácia de um acto administrativo praticado ao abrigo do RDM, em contraponto do exposto no artigo 128.º do CPTA, não haja lugar à proibição automática de executar o acto administrativo”40.

 

Conclusões

1. No que diz respeito à “Constituição militar”, a CRP inclui na reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República a definição das bases gerais da disciplina das Forças Armadas e na reserva relativa de competência deste órgão de soberania o regime geral de punição das infracções disciplinares e crimes estritamente militares.

2. Relativamente à justiça militar penal, a IV Revisão Constitucional, de 1997, rompeu com a solução que vinha do passado, extinguiu os tribunais militares, em tempo de paz, e integrou tendencialmente a justiça militar no sistema penal comum. Em resultado, atribuiu a jurisdição material penal militar, prevista no CJM, aos tribunais judiciais, previu formas especiais de assessoria do Ministério Público e adoptou o conceito de crime estritamente militar.

3. Quanto ao conceito, são agora crimes militares apenas os crimes estritamente militares, em que se tutelam interesses militares da Defesa Nacional, isto é, bens jurídicos relacionados com as missões constitucionalmente consagradas da Defesa Nacional e com valores fundamentais das Forças Armadas.

4. Ultrapassada a separação entre a Administração Pública e as Forças Armadas, designadamente, no decorrer da revisão constitucional de 1982, verifica-se que o direito disciplinar militar tem, por isso, de obedecer aos princípios que regem a actividade dos órgãos e agentes administrativos e às garantias previstas para os administrados.

5. O direito disciplinar militar enquadra-se no âmbito mais vasto do direito sancionatório público, valendo o regime previsto no artigo 269.º n.º 3 da CRP, em processo disciplinar são garantidos ao arguido a sua audiência e defesa, garantia também prevista no artigo 32.º n.º 10, da CRP.

6. Dado que as Forças Armadas são parte integrante da Administração Pública, compete aos Tribunais Administrativos o julgamento das impugnações jurisdicionais que tenham por objecto penas disciplinares aplicadas pelos Chefes de Estado-Maior dos Ramos, conforme artigo 212.º n.º 3 da CRP, e artigo 268.º n.º 4 da CRP.

7. Em termos de contencioso judiciário, as penas disciplinares militares mostram-se hoje delimitadas em função da pena disciplinar aplicada, distribuídos aos Tribunais Centrais Administrativos, em 1.º instância, as impugnações das sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas, conforme artigo 6.º da Lei n.º 34/2007, de 13 de agosto, que estabelece o regime especial dos processos relativos a actos administrativos de aplicação de sanções disciplinares previstas no RDM.

8. Aos Tribunais Administrativos de Círculo cabem a apreciação e julgamento dos processos relativos a actos administrativos disciplinares punitivos com as penas menos gravosas, como a repreensão e repreensão agravada, conforme artigos 44.º do ETAF e 6.º da Lei n.º 34/2007, de 13 de agosto.

 

Referências:

(1) CHABY ESTRELA, Maria, Constituição e Justiça Militar – algumas notas a propósito do novo Regulamento de Disciplinar Militar, in revista JULGAR, p. 11. 2010, em Constituição e Justiça Militar — Algumas notas a propósito do novo Regulamento de Disciplina Militar | Julgar.

(2) Idem, Ibidem, p. 12.

(3) GASPAR, António Henriques A tutela constitucional da justiça militar, Direito militar, Almedina, 2019, p. 22.

(4) Idem, Ibidem, p. 21.

(5) ALEXANDRE, Carlos, A instrução e o julgamento dos crimes estritamente militares, Direito militar, Almedina, 2019, p. 159.

(6) Sobre a extinção dos Tribunais Militares, vide LAGES, JOSÈ DIAS “A extinção dos Tribunais Militares: consequências para o Exército, artigo consultável em: Maj Lages, Extinção dos Tribunais Militares, Consequências para o Exército.pdf.

(7) GASPAR, António Henriques A tutela constitucional da justiça militar, Direito militar, Almedina, 2019, p. 24.

(8) Idem, Ibidem, p. 25.

(9) Idem, Ibidem, p. 25.

(10) ALEXANDRE, Carlos, A instrução e o julgamento dos crimes estritamente militares, Direito militar, Almedina, 2019, p. 161.

(11) GIL PRATA Justiça Militar, a rutura de 2004 in Revista Militar, p. 6, artigo consultável em: A Justiça Militar – organização judiciária militar (revistamilitar.pt).

(12) GASPAR, António Henriques A tutela constitucional da justiça militar, Direito militar, Almedina, 2019, p. 25 e 26.

(13) Consultável em: Lei 105/2003, 2003-12-10 – DRE.

(14) Consultável em: Lei n.º 101/2003, de 15 de Novembro (pgdlisboa.pt).

(15) GASPAR, António Henriques A tutela constitucional da justiça militar, Direito militar, Almedina, 2019, p. 24.

(16) Idem, Ibidem, p. 30.

(17) PRATA, Gil, Justiça Militar, a rutura de 2004 in Revista Militar, p. 7, artigo consultável em: A Justiça Militar – organização judiciária militar (revistamilitar.pt).

(18) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 967/96, de 11 de Julho, artigo consultável em: TC > Jurisprudência >Acordãos> Acórdão 967/1996 (tribunalconstitucional.pt).

(19) ALEXANDRE, Carlos, A instrução e o julgamento dos crimes estritamente militares, Direito militar, Almedina, 2019, p. 165.

(20) GASPAR, António Henriques A tutela constitucional da justiça militar, Direito militar, Almedina, 2019, p. 27.

(21) Idem, Ibidem, p. 27.

(22) No Colóquio Parlamentar promovido pela Comissão da Defesa Nacional, edição da Assembleia da Republica, 1995, p. 25 e 26, Apud Acórdão n.º 217/2001, do Tribunal Constitucional, consultável em: Acórdão 217/2001, 2001-06-21 – DRE.

(23) GASPAR, António Henriques A tutela constitucional da justiça militar, Direito militar, Almedina, 2019, p. 28.

(24) PRATA Gil, justiça Militar, a rutura de 2004 in Revista Militar, p. 12, artigo consultável em: A Justiça Militar – organização judiciária militar (revistamilitar.pt).

(25) Artigo consultável em Acórdão 33/2002/T. Const, 2002-03-06 – DRE.

(26) GASPAR, António Henriques A tutela constitucional da justiça militar, Direito militar, Almedina, 2019, p. 32.

(27) Sobre as várias modalidades do poder sancionatório da Administração, vide AMARAL, DIOGO FREITAS DO, O poder sancionário da Administração Pública, in Estudos comemorativos dos 10 anos da faculdade de direito da Universidade Nova de Lisboa, Vol I, coord. DIOGO FREITAS DO AMARAL, et al., Almedina, p. 218 e ss.

(28) GASPAR, António Henriques A tutela constitucional da justiça militar, Direito militar, Almedina, 2019, p. 32.

(29) GASPAR, António Henriques A tutela constitucional da justiça militar, Direito militar, Almedina, 2019, p. 33.

(30) Idem, Ibidem, p. 33.

(31) MEDEIROS DE CARVALHO, Carlos, Contencioso Administrativo das penas disciplinares militares, Direito militar, Almedina, 2019, p. 127.

(32) Consultavel em: Lei 34/2007, 2007-08-13 – DRE.

(33) MEDEIROS DE CARVALHO, Carlos, Contencioso Administrativo das penas disciplinares militares, Direito militar, Almedina, 2019, p 128.

(34) Idem, Ibidem, p. 131.

(35) Idem, Ibidem, p. 132.

(36) Idem, Ibidem, p. 132.

(37) Idem, Ibidem, p. 132.

(38) COSTA SOUSA DA FÁBRICA, Luís, O direito disciplinar militar – Direito militar, Almedina, 2019, p. 115 e 116.

(39) MEDEIROS DE CARVALHO, Carlos, Contencioso Administrativo das penas disciplinares militares, Direito militar, Almedina, 2019, p. 136

(40) Idem, Ibidem, p. 122.

 

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* O presente artigo está escrito ao abrigo do anterior acordo ortográfico.

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Mestre

Carlos Gaspar

Mestre em Ciências Jurídico-Forenses pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, com a Dissertação final sobre “As restrições constitucionais aplicáveis aos militares das forças armadas e os regimes especiais do direito penal e direito disciplinar militar” (2019-2021).

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by COM Armando Dias Correia