Nº 2643 - Abril de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Competitividade, globalização e lusofonia
Dr.
Vítor Ramalho

Estruturei esta minha intervenção com a consciência de que a economia é um instrumento da política.*

As posições de Olaf Scholz representam uma grande viragem na política externa e o propósito de reforçar a coesão da UE.

É de saudar e encorajar.

É útil, porém, avaliar-se o tardio acordar da UE face às tergiversações que teve e aos erros que cometeu que não podem repetir-se.

Com a implosão da URSS, o conceito de democracia liberal foi universalizado com base no princípio “um homem, um voto”, sem se atender à realidade étnica e cultural diferenciada de cada pais, o que conduziu a guerras, como, na Europa, na ex-Jugoslávia.

Nelson Mandela foi quem o entendeu como ninguém adaptando os mecanismos constitucionais e a legislação promulgada sob a sua influência para que a fase de transição para um governo maioria na África do Sul fosse clara.

Depois das primeiras eleições livres, o cargo de Vice-Presidente, o país deveria ser ocupado – como foi – pelo segundo partido mais votado e De Klerk acabou Vice-Presidente da África do Sul.

E porque todos os partidos com mais de 5% de votos deveriam participar no futuro governo, o INKATA, partido com base maioritária no povo zulu, foi representado no poderoso Ministério do Interior por Mangosuthu Buthelezi, exatamente por ter tido percentagem de votos superior.

Sucede que, neste quadro, a OMC foi enquadrada por uma displicente conceção neoliberal, conduzindo ao hegemónico reconhecimento dos mercados a que o Papa Francisco apelidou de capitalismo selvagem sem valores e princípios.

A deslocalização de empresas para mercados fora de portas, com baixos salários, é um exemplo do modo com a UE não soube agir.

Aliás, com a recente pandemia, a UE sentiu o quanto desarmada estava, inclusive, na produção de bens simples, como máscaras de proteção individual e equipamentos hospitalares.

A intenção – tardia, diga-se –, passou a ser a reindustrialização. Ainda bem!

Portanto, os ideários dos partidos fundadores da UE, democratas cristãos e socialistas, acompanharam a ‘moda’ e secundarizaram-se, pelo que o pragmatismo em toda a linha tornou-se invasor da estratégia.

A propósito, apenas duas breves notas esclarecedoras: O ex-Chanceler alemão socialista Gerhard Schroeder passou a aceitar ser dirigente da empresa russa Gasprom e Merkel, de um partido democrata cristão, impulsionou a construção do gasoduto Nord Stream 2

Os partidos de extrema-direita radicais passaram a ter representações significativas e o distanciamento dos cidadãos dos partidos e da política passou a ter redobrada preocupação.

As tergiversações da UE, obnubilando objetivos, fez-lhe diminuir a voz na influência política que lhe era exigível.

Hoje, sobre a pandemia, surgiu a invasão à Ucrânia.

Esta, ao unir o ocidente, envolveu por parte da UE, uma resposta solidária à integração de milhões de refugiados da guerra, suportando o aumento generalizado dos preços, inclusive, de alimentos.

Ao acordar, pela segunda vez, a UE assumiu uma resposta estratégica. Não há mesmo alternativa.

Se, neste quadro, a UE reforçar a sua defesa, equipando-se para a guerra, forma de a dissuadir, reganhando autonomia, inclusive no setor energético e jogando como um grande player, evidenciará a superioridade das democracias e o contributo à escala planetária será grande e servirá de exemplo.

Importa tocar noutra parte da equação.

Portugal, em 1986, aderiu à UE, surgindo nesta como parceiro privilegiado para as relações com os países ACP1, sendo João de Deus Pinheiro2 nomeado Comissário para as relações com esses países.

A primeira Cimeira UE-África foi realizada sob a presidência de Portugal sendo incontáveis as parecerias bilaterais que dinamizou com países ACP.

A paz, em Bicesse, para Angola e o grito soltado das gargantas do povo português pela independência de Timor-Leste teve eco mundial.

Incontáveis instituições públicas e da sociedade civil foram criadas em Portugal para aprofundamento da cooperação e amizade com os povos lusófonos.

Este objetivo tem vindo a perder dinâmica, afetando o instrumento privilegiado de afirmação externa de Portugal, o que não é questão menor na era da globalização.

Constata a minha experiência neste domínio que há uma queda da sensibilização para as questões da lusofonia, que se traduz, por exemplo, no afastamento de empresas públicas, antes apoiantes de instituições como a que dirijo, não obstante a realização de iniciativas marcantes.

Há que ter consciência que o país, ao vender o capital público de empresas estratégicas ou ao concessioná-las, desde aeroportos até todo o setor energético, incluindo a distribuição, as telecomunicações, os cimentos, não poupando a distribuição postal, todas fortemente lucrativas, para não falar na banca e nos seguros, enfraqueceu os instrumentos económicos para a cooperação.

São as empresas que internacionalizam a economia e não é indiferente as estratégicas terem ou não domínio nacional.

Dos 95% de capital sob domínio nacional que o país tinha há escassos anos na banca, tem, hoje, 8%.

As respostas que a UE e obviamente Portugal têm que dar, numa lógica de coesão e crescimento, implicam uma planificação estratégica com eficácia da administração e com os responsáveis políticos a darem exemplo, cuidando-se das funções soberanas do Estado, da Justiça, alicerce da democracia, à Defesa, com a consciência da afirmação da nossa marca identitária.

Na lógica do tema do painel em que intervenho, deixo o meu contributo, porque me parece ser de ponderar no seguinte:

– Os países lusófonos que fazem fronteira com o mar, por onde transitam mais de 95% dos bens comercializados, encorajam a criação de empresas comuns que os servem e beneficiam sendo realisticamente possível concretizá-las;

– Tendo esses países diásporas que se estendem a todos os continentes, a questão da mobilidade, ou seja, a livre e efetiva circulação de empresários que investem no espaço em que se integram bem como de homens de cultura e investigadores, tem de se assumir como um objetivo político prioritário;

– O facto das suas culturas serem resultado de encontros seculares, tendo forjando uma singularidade única, deve conduzir ao reforço de parcerias que tenham por base as indústrias culturais;

– Os graves riscos do decréscimo populacional de Portugal, porque não será colmatado apenas com respostas de estímulo a uma maior natalidade, tem de conduzir à outorga de protocolos com países lusófonos estruturados para a imigração de cidadãos desses países que respondam às necessidades de Portugal numa lógica de futuro;

– Os riscos do terrorismo sobre navios que transitam no golfo da Guiné ou nas proximidades da Somália, nas costas de África, exige a legitimação de uma resposta, no caso de apoio pela comunidade internacional aos países lusófonos atlânticos, que falam a primeira língua nessa região, com vista à contribuição real para a minoração desses riscos;

– Instituições vocacionadas para a paz, como é o caso da Cruz Vermelha dos países lusófonos, podem e devem, de igual modo, articularem-se para a criação de numa instituição comum que intervenha e apoie os cidadãos vítimas de calamidades naturais ou em resultado de conflitos;

– O facto dos países africanos lusófonos terem como prioridade a diversificação económica numa lógica de autossustentabilidade, justifica que Portugal, face à grande experiência nos setores agrícolas, na pecuária e nas pescas, reforce com eles laços políticos de cooperação nestes domínios;

– Finalmente, os dois países da Ibéria podem e devem ainda aprofundar, no quadro das Cimeiras Ibero-Americanas, a dinamização de uma relação triangular, estendida aos países africanos lusófonos.

Neste novo quadro mundial, a conceção universal e tolerante de estarmos unidos pela língua, reforçará a afirmação de todos.

Não me quero despedir sem deixar uma nota final sobre o presente. Na adolescência registei uma frase de um grande escritor “só quando vi e senti o sangue percebi que era verdade”.

Tropecei nela com a invasão da Ucrânia, face à grotesca violação do direito internacional e ao dantesco sofrimento causado aos ucranianos.

Fica o meu repúdio pela invasão e a minha solidariedade ao povo ucraniano e aos russos que se insurgem contra a guerra.

 

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* Intervenção efetuada no Colóquio da Ordem dos Economistas, sob o tema “Portugal – Objetivo Crescimento”, que teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, no dia 12 de Março de 2022.

1  É uma associação de 79 países da África, Caribe e Pacífico formada para coordenar atividades da Convenção de Lomé de 1975.

2Militante do PSD. Licenciado em Engenharia Química pelo Instituto Superior Técnico. Foi Professor Catedrático. Foi Ministro da Educação e da Ciência e Ministro dos Negócios Estrangeiros, ao longo dos X, XI e XII Governos Constitucionais, tendo sido nomeado como o Segundo Comissário Europeu português junto da UE (1993-2000).

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Dr.

Vítor Ramalho

Secretário-geral da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA).

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