Nº 2644 - Maio de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A travessia aérea Lisboa-Rio de Janeiro

A travessia aérea do Atlântico, decidida e iniciada com meios e recursos escassos, mas garantida pelo saber, pela fôrça de vontade e fé viva dos dois grandes portugueses que a empreenderam, completou-se de forma brilhante, com meios ainda mais deficientes.*

Depois da chegada aos Penedos de S. Pedro, nada mais havia a realizar, no ponto de vista scientífico. A admiração do mundo pelo feito realizado, e o acatamento doss meios técnicos e profissionais pela solução prática dada aos problemas da navegação astronómica aérea, tinham-se manifestado da forma mais significativa.

Mas havia na travessia uma parte política a atender e um ponto de vista de ordem sentimental a considerar, ambos de grande importância, embora sem o valor transcendente e o caracter de duração, que possui o ponto de vista scientífico. Quási chegamos a bem-dizer as causas do contratempo, que levou à amaragem forçada nos Penedos, pois que esta, se, por um lado, não impediu que se completasse a travessia, ofereceu, por outro, a oportunidade de apreciarmos naqueles dois ilustres oficiais qualidades de bravura, persistência e força de vontade em grau máximo, as quais, juntas ao alto valor scientífico, de que tinham já dado provas, fazem que possamos considera-los com a maior justiça dois grandes portugueses, cujos nomes já hoje passaram os umbrais da História da Humanidade.

Para eles vai, não só a nossa mais comovida admiração, mas o mais profundo reconhecimento, porque, exactamente num periodo de abatimento, em que o mundo quási de nós se esquecia, ou apenas nos lembrava para nos julgar mal, êles, com o seu feito, vieram provar que não desapareceram nos portugueses aquele conjunto de qualidades, que os fizeram grandes no passado, dando-nos ao mesmo tempo a justificada esperança em uma época de ressurgimento, de que êles sejam os precursores.

 

Escrevemos ainda sem notícias pormenorizadas da parte mais agitada, mais acidentada da viagem. Mas, uma vez ainda podemos afirmar que a História se repete, porque, guardadas as proporções e a distância de épocas, vemos reviver a lenda do Mar Tenebroso nas fantasias dos que ingenuamente têm exagerado na sua imaginação os acidentes da parte da travessia Penedos-Fernão de Noronha.

A realidade é já por si bastante intensa, contudo, para que precisemos de carregar-lhe as côres.

A viagem de S. Tiago aos Penedos de S. Pedro foi realizada em condições dificílimas, quási desesperadas. Logo às primeiras horas de vôo, se reconheceu que, devido ao consumo de gazolina, bastante superior ao previsto, só uma cuidadosissima navegação, que assegurasse um caminho rigorosamente rectilíneo, sem o menor desvio, permitiria alcançar o ponto de destino. Durante quatro horas discutiram no ar os dois aviadores, por troca de lacónicos bilhetes, se deviam continuar a viagem, ou retroceder. Foram êsses momentos, quatro longas horas, – diz o comandante Sacadura-os mais intensamente vividos da sua existência. Fortaleceu-os na decisão de prosseguirem – para diante, até onde a gazolina der! a absoluta confiança de ambos na navegação segura, nas observações e cálculos amiudados de Gago Coutinho, que permitiram navegar sem afastamento sensível do caminho, que assim foi o mais curto possivel. Por isso, com razão êle afirmou que já. agora lhe não admirava “ir-se pelo ar onde se quisesse, fazendo navegação à moda dos navios.”

Á semelhança do minúsculo navio, que, surpreendido no meio do oceano pelo mau tempo, que lhe reduz a velocidade prevista, chega ao porto de destino varrendo os paiois de carvão, o “Lusitânia” chega aos Penedos com menos de dois litros de gazolina, quando o motor, sentindo já faltar-lhe a alimentação, ameaçava faze-los descer sôbre o mar. A acrescentar à angústia da situação, a transparência da atmosfera era fraca e só à distância de nove milhas lhes foi possivel dar vista dos Penedos.

O que foi a amaragem di-lo o comandante do cruzador “República”, na sua linguagem sóbria de marinheiro:

«Ficára assente que só se arriariam os escaleres do “República” quando êles surgissem no horizonte. Pelo sim, pelo não, mandei-os arriar tres horas antes da calculada para a chegada e, como a noute se fôsse aproximando, preparei os projectores... De repente, vemos despontar o aparelho na linha do horizonte. Que espectáculo lindo! A comoção que a todos nos agitava a bordo, não tento sequer descrever-lha. Era embevecimento, era estupefacção, era estarrecimento. A marcha firme que trazia garantia-nos que vinha na plena posse de todos os seus meios. De súbito, rodou e veio poisar mesmo perto do “República”, sem que, ainda nesse momento, qualquer de nós pressentisse o desastre. Uma vaga mais alta cortara-lhe cerce, como navalha de barba, um dos flutuadores; o aparelho, com a velocidade que levava, ainda hidra-planou um ou dois minutos; depois virou sobre si próprio como um pião e capotou!…

«Momento de horrível anciedade. Compreendi então que, se não fôra a minha previdência, tudo estaria perdido. Não teria havido tempo de lançar os escaleres. felizmente o gazolina do “República” logo se aproximara do «Lusitânia», saltando-lhe para dentro Sacadura enquanto Gago Coutinho, erguendo numa mão o seu astrolábio, e na outra o diário de bordo, não havia maneira de o convencer a salvar-se, sem antes salvar tudo. Não obstante, não só o perigo da mar, propriamente dito, o ameaçava, como ainda o dos tubarões, que abundam naquelas paragens.

“Por fim, resolveu-se a saltar para o gazolina. Era tempo. O aparelho submergia-se por completo».

Estavamos em 18 de Abril, A 26 largou de Lisboa, a bordo do vapor brasileiro “Bagé”, um novo aparelho, o “Fairey 16”, de menor envergadura e inferior raio de acção, com o fim de prosseguir na travessia a partir dos Penedos, o que era muito contingente, porque a zona das calmas a êste tempo tinha avançado para o Norte, e os Penedos encontravam-se já em franco regime do Geral de Sueste. Nos Penedos, onde o “Bagé” chegou a 6 de Maio, aguardava-o o “República”, com os dois aviadores, mas, não consentindo o mar, nem nesse dia, nem no seguinte, que fôsse arriado o aparelho, partiram os dois navios para Fernão de Noronha. Em 8 foi arriado o aparelho, e fizeram-se os vôos de experiência.

A primeira idea foi embarcar o aparelho no “República”, para mais uma vez tentar partir dos Penedos para Fernão de Noronha, continuando a travessia no ponto onde fôra interrompida, visto o aparelho não possuir normalmente raio de acção para ir de Fernão de Noronha aos Penedos, e regressar. Mas em 9 resolve-se tentar a ida e volta, para o que foi colocado no aparelho mais um tanque de gazolina, que com êle seguira de Lisboa, de forma a aumentar o raio de acção o necessário para fazer o duplo percurso (720 milhas).

Experimentado o aparelho, com resultado satisfatório, largou em 11 de Maio às 9 horas, depois de duas tentativas de descolagem, sem resultado, em consequência do excesso da carga de combustivel. Diminuida um pouco a carga, o aparelho descolou então, saindo pouco depois o “República”, segundo caminho e para rendez-vous previamente combinados.

O “República” alcançou o rendez-vous ás 14 horas, esperando que o hidro passasse sôbre êle às 16 e 30, de regresso, o que não sucedeu, e desde essa hora começaram as preocupações, o pressentimento de que alguma cousa grave se passara, pois que, tanto Sacadura, como Coutinho, são muito ponderados é habeis para que, por sua culpa, faltassem a um rendezvous desta importância.

Ao pôr do sol, o “República” lança um rádio geral à navegação. Ás 19 horas o destroyer brasileiro “Pará” saía tambem de Fernão de Noronha, para auxiliar as pesquizas.

O avião chegara aos Penedos com tempo coberto, mas em boas condições, às 13 e 35; inverteu-se o rumo, e quando tudo fazia prever que aquela etape seria percorrida duas vezes felizmente, às 15 e 30 uma interrupção no tubo condutor da gazolina dos tanques para o motor, obrigou a amarar a 170 milhas de Fernão de Noronha.

O mar estava banzeiro, a amaragem fez-se bem, mas os flutuadores, que têm sido o ponto fraco dos aparelhos, começaram a deixar entrar água. Como homens que se não deixam desanimar pela primeira contrariedade, procuraram pôr de novo o motor a funcionar, mas as várias tentativas feitas não deram resultados imediatos. Ao pôr do sol, a observação de estrelas confirmou a posição 1.25 S e 30.54 W, a 170 milhas de Fernão de Noronha.

O que foram essas horas no mar, perante a imobilização teimosa do motor, em paragens pouco frequentadas, com o aparelho a desconjuntar-se pela agitação do mar, e tendo diante si uma longa noute, da qual, com todas as probabilidades, já não veriam o fim, só êles, que as sofreram, no-lo poderão dizer.

Restava-lhes sómente que algum navio, por acaso, encontrasse aquele objecto minúsculo, perdido no oceano. Ás 21 e 30 conseguiram pôr o motor a trabalhar, começando a fazer “taxi” para o Sul, a fim de se meterem na linha Penedos-Fernão de Noronha, de que o vento os desviara. Mas uma hora depois o motor parava, e desaparecia a última esperança de fazer subir o aparelho, ao mesmo tempo que os flutuadores se iam enchendo de água.

Ás 23 e 45 apareceu, enfim, um farol de navio! Gago Coutinho lançou um very-light da sua pistola, do navio responderam com um fogacho; outro very-light, a que respondeu um foguetão. Estavam salvos!

Á meia noute e 35 minutos, o navio, que era o “Paris City” tinha chegado junto do aparelho; arriou uma balieira, e recebeu os aviadores, que não largaram os seus instrumentos. O avião foi amarrado à pôpa do navio. Êste, que tinha recebido o rádio do “República” , encontrava-se aproximadamente sôbre a linha Penedos-Fernão de Noronha; mas, devido a um êrro de posição, julgava encontrar-se fóra dela; e foi quando já se preparava para mudar de rumo, que avistou o sinal de socorro dos aviadores, realizando assim quási milagrosamente o seu salvamento.

Viveram-se horas de ansiedade de um e de outro lado do Atlântico e, sôbretudo, a bordo do “República”, até que êste, às 1 e 55 da madrugada de 12 recebeu o áudio do “Paris City”, dizendo estarem os aviadores salvos a seu bordo, e dando a posição, 1,09 S e 31,10 W.

Navegou o “República” para o local indicado, mas não encontrou o navio, concluindo que a posição do “Paris City” não era bôa. Troca de rádios, e o vapor comunica ver o clarão dos projectores por 38 graus noroeste. O “República” põe ao rumo oposto, indo encontra-lo depois de navegar 19 milhas, pouco depois do nascer do sol. A posição, segundo as observações do “República” era 1,25 S e 30,58 W.

O “República” recebeu do “Paris City” os aviadores e o aparelho. Sacadura meteu-se no gazolina e procurou ainda salvar o avião, que tinha o flutuador de estibordo completamente cheio de água. O peso do aparelho excedia, nestas condições, a carga máxima do pau de carga, que vergou ao esfôrço, ao mesmo tempo que o aparelho começava a desconjuntar-se, ameaçando avariar o leme do navio. Apenas se conseguiu salvar o motor, já avariado, alguns livros e os instrumentos de navegação.

Depois dêstes esforços improfícuos para salvar o aparelho, o “República” largou ao pôr do sol para Fernão de Noronha, onde chegou ao amanhecer de 13.

O Govêrno põe à disposição dos heróicos oficiais um novo hidro-avião, o “Fairey 17”, em tudo semelhante ao “Fairey 16”, “caso vejam possibilidade de concluirem o percurso”. O comandante Sacadura aceita, dizendo que o “Fairey 17” pode servir. Nenhuma contrariedade, nenhum perigo, nenhuma dificuldade vence a sua indómita vontade: a viagem prossegue.

Em 24 parte de Lisboa no cruzador “Carvalho Araujo” o “Fairey 17”, que chega em 3 de Junho a Fernão de Noronha. A partida do avião faz-se de Fernando de Noronha em 5 às 7 e 45, amarando às 12 e 7 no Recife. Começa a parte triunfal da viagem, que já agora se limita, vencidas as maiores dificuldades, a colher os merecidos louros da vitoria do seu esfôrço e do seu saber. Pelas ruas de Pernambuco, em multidão compacta, os descendentes dos heróicos moradores, que ha perto de tres séculos expulsaram os holandeses, reintegrando o território no património português, aclamavam ininterruptamente os aviadores, e das janelas caiam sôbre êles nuvens de flôres.

Em 8 descolam do Recife às 9-05 e vão passando sôbre as povoações mais importantes, que entusiasticamente os . aplaudem, até descerem às 13-40 na Baía de Todos os Santos, nome que nos é sempre grato recordar, ligado à história da nossa colonizaçao, e que evoca em nós a ernprêsa gloriosa da sua restauração, depois de ter sofrido um âno o jugo holandês.

Desembarcaram na cidade de S. Salvador, acompanhados de um cortejo triunfal de embarcações, e em terra fizeram-lhes manifestações de proporções nunca vistas.

Em 13 largaram para a Baía Cabralia às 7 e 35, amarando às 11 e 45 e chegando a Cidade de Porto Seguro às 13 e 30. Quiseram os aviadores prestar a sua homenagem ao que, pela via do mar, ali primeiro tinha ido, visitando o padrão comemorativo da descoberta de Pedro Alvares Cabral, e em 15, logo que o tempo lho consentiu, sairam de Porto Seguro às 7-30, passando pela Baía Cabralia, da qual levantaram às 7 e 50 para amararem em Vitoria às 11·25. Aqui foram entusiasticamente recebidos e homenageados, para em 17 partirem para a etape final da sua viagem apoteótica, às 9 e 40.

O percurso foi demorado, pois que só às 14 e 30 amaravam na Baía do Guanabara. Ventos frescos do sudoeste e nevoeiros tornaram esta etape bastante dificultosa, chegando a haver preocupações a seu respeito. As informações meteorológicas indicavam que não deviam partir, e assim lho comunicou o “República”; mas a impaciência de chegar era grande e, dispostos a arrostar contra tudo, buscaram o Rio de Janeiro em condições de tempo tais, que, como disse Sacadura, se não fôssem dois marinheiros, o não teriam demandado. A amaragem fez-se bem, e a recepção na baía e em terra foi indescritivel de entusiasmo. Segue-se uma série interminavel de festas, de homenagens, de apoteoses, feitas com um brilho e um entusiasmo assombrosos, de que só são capazes os brasileiros e os portugueses a quem a distância e a saúdade da Pátria mais exaltam o seu amor por Ela. Todas são bem merecidas e devidas aos dois grandes homens, orgulho da raça portuguesa, e cujo feito deu a Portugal a hora mais gloriosa da sua história contemporânea.

Oxalá o seu esfôrço não seja perdido, antes dele tire o Estado todo o proveito e todos os ensinamentos que pode e deve tirar, e todos nós portugueses os queiramos imitar no esfôrço, na fé, no espirito de sacrifício e no amor pátrio, já que o não podemos fazer na grandiosidade do feito.

A Revista Militar, como orgão da família militar portuguesa, compartilhando do entusiasmo da nação e da colónia lusitana no Brasil, saúda calorosamente os dois heróicos aviadores, legítimas glórias de Portugal, honra do seu corpo de oficiais, e penhor seguro da confiança que o país pode depositar no saber, na capacidade de acção e no amor pátrio dos seus oficiais.

 

Lisboa, 19 de Junho de 1922.

 

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* Revista Militar n.º 6/7, junho/julho de 1922, pp. 297-304.

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