Nº 2644 - Maio de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Cinquentenário da I Travessia Aérea do Atlântico-Sul. Por Gago Coutinho e Sacadura Cabral (1922-1972)

Eu quero agradecer ao distinto camarada, Sr. General Amaro Romão, insigne Comandante da Academia Militar, o empenho que mostrou pela minha vinda a esta Academia proferir uma conferência, convite que muito me desvanece. E se a minha prolongada actividade no tratamento dos assuntos referentes a Gago Coutinho, Sacadura Cabral e à sua viagem famosa, me esgotou pràticamente a possibilidade de apresentar aspectos novos, tantas têm sido as minhas intervenções sobre a matéria, desde a Assembleia Nacional às mais modestas tribunas, o certo é também que me não cansa exaltar um feito que, além de ser um dos grandes da nossa história, é uma contínua fonte de inspiração para a juventude.* **

Por isso até lhe agradeço mais esta excelente oportunidade que me concede, dirigindo-me àqueles que recolheram a honrosa missão de ser alguém na vida e servir a sua Pátria, para apresentar e recordar um acontecimento e dois homens, dois marinheiros-aviadores, dois militares, que fizeram renascer, num período muito conturbado da vida nacional, o orgulho de ser Português.

É muito provável que, graças à natural cultura patriótica dos meus ouvintes e também à divulgação que nas últimas semanas tem sido feita da famosa expedição aérea, fosse aqui dispensada qualquer narrativa. No entanto, seria, pelo contrário, lamentável que pudesse, por minha omissão, deixar de ser cumprida a missão de que me íncumbiram.

De resto, vale mais o acontecimento em si do que quaisquer comentários.

 

*

 

A travessia aérea do Atlântico de Lisboa ao Rio de Janeiro, realizada em 1922 pelo capitão-tenente piloto-aviador Artur de Sacadura Freire Cabral e capitão-de-mar-e-guerra Carlos Viegas Gago Coutinho, que só por si e naquele tempo poderia ter sido um acto de assinalada coragem, teve porém outros méritos que a distinguiram e a fizeram sobressair sobre todas as outras.

Foi a primeira travessia aérea do Atlântico da Europa para a América.

Foi a primeira travessia aérea do Atlântico de Oriente para Ocidente.

Foi a primeira travessia aérea do Atlântico Sul.

E foi a consagração da navegação aérea astronómica transatlântica, primeiramente feita por portugueses e com aparelhos e métodos inventados por portugueses.

Como se vê, ganharam-se para Portugal algumas prioridades.

Na verdade, até àquela data, as viagens aéreas mais famosas, realizadas logo após o fim da guerra de 1914-1918, tinham sido as dos franceses que atravessaram o Mediterrâneo, dos americanos que vieram da costa leste da América para Lisboa e dos ingleses da Terra Nova para a Irlanda. Em nenhuma delas se fez navegação astronómica. Nem era preciso. Da França ao Norte de África, além da distância ser relativamente curta, não há possibilidade de um avião se perder, por erro de rumo. Os ingleses – Alcock e Brown – largaram-se da Terra Nova e foram aterrar num campo igno: ado da Irlanda. Mas se tivessem falhado a Irlanda iriam l)ater à Grà-Bretanha ou, em último caso, à imensa costa da Europa. E os americanos, esses fizeram as coisas à larga, à maneira americana. 36 navios, escalados ele 60 em 60 milhas, balizaram o caminho até os Açores e daqui a Lisboa. Os aviões tinham, além disso, T. S. F. que lhes permitia manter o contacto com os navios. Mas dos três aviões que largaram da América só um, o NC4, do Captain Read, chegou a Lisboa. Isto passava-se em 1919.

Ora tudo isto entusiasmava o temperamento fogoso, ousado, inovador de Sacadura Cabral.

Ele era um jovem aviador-militar, formado em França, e acabava de conseguir criar entre nós a Aviação Naval. Estava, naturalmente, ansioso por poder realizar qualquer proeza.

Formou então o projecto de atravessar o Atlântico, de leste para oeste, o que nunca ninguém tinha feito; e de Portugal ao Brasil, o que seria ainda de maior projecção, dada a retumbância que teria na comunidade portuguesa do Brasil e o efeito benéfico que produziria no estreitamento das relações de amizade luso-brasileira.

Para isso tentou inclusivamente associar a aviação brasileira no empreendimento, o que não conseguiu.

Depois de ter assegurado o apoio dos ministros da Marinha, pensou arranjar um aparelho apropriado para a travessia directa da costa africana – de Dacar ou da Guiné para a costa brasileira. Mas era preciso dispor de um avião que tivesse autonomia para percorrer uma distância de 1650 milhas, o que, à velocidade daquele tempo, exigia 24 horas. Ora nem a escassez das dotações de que dispunha, nem outras limitações consentiam essa solução. Foi logo posta de parte. Como solução imaginou primeiro a partida de Cabo Verde, o que já encurtava a distância, e depois a utilização das Ilhas de Fernando de Noronha, para chegada. Mesmo assim, haveria que fazer um percurso de 1250 milhas sobre o mar, o que levaria 18 horas, durante as quais o avião estaria sujeito a arrastamentos devidos ao vento, imperfeições de governo e outros desvios, Nessas condições, encontrar pràticamente urna ilha e de pequenas dimensões tornava-se um problema, um problema novo que era preciso resolver. Ora para isso impunha-se fazer navegação astronómica rigorosa.

De modo que Sacadura Cabral pensa em alguém capaz de o ajudar. E vem-lhe à ideia desafiar o Capitão-de-mar-e-guerra Gago Coutinho, que ele conhecia bem, pois tinha servido com ele na missão geodésica de Moçambique. Sabia bem a força de ânimo de Gago Coutinho, que era um andarilho incansável e um observador do maior engenho, sempre aperfeiçoando e até inventando aparelhos e métodos de cálculo. Duma fertilidade de imaginação espantosa. Eram, de mais a mais, muito amigos.

Gago Coutinho rejubilou com a ideia, com esta nova aventura. E começaram então os estudos e depois as experiências de novos aparelhos e métodos de navegação, voando nos arredores de Lisboa. Primeiro, estudam e constroem um aparelho capaz de determinar os desvios causados pela deriva do avião, pelo vento e erros de governo. Utilizam para o efeito bóias de fumo, lançadas sobre o mar, e um aparelho que baptizaram de «Corrector de rumos Coutinho-Sacadura». A questão do abatimento estava assim resolvida.

Depois atiram-se à navegação astronómica. Era preciso poder tirar as alturas do sol – dos astros – acima das nuvens, pois haveria o risco de nem sempre haver horizonte de mar visível e, mesmo que o houvesse, não se conhecer rigorosamente a altura do avião acima do mar. E foi isso que o génio de Gago Coutinho conseguiu resolver com a adaptação ao sextante de um nível de bolha de ar cujo raio de curvatura era igual à distância do olho do observador à imagem. Esta foi a principal descoberta. O chamado «astrolábio de precisão».

Depois, foi completada por um original sistema de cálculos pré-preparados, que permitia que uma recta de posição fosse traçada passados escassos 3 minutos sobre a observação do astro. Assim se ia de encontro às exigências motivadas pela velocidade dos aviões.

Com todos estes estudos realizados, resolvem então proceder a uma experiência autêntica, um ensaio de navegação longa sobre o mar. Preparam uma viagem de Lisboa ao Funchal, a bordo dum hidroavião. Para lá partiram em Março de 1921, Sacadura Cabral como piloto e comandante, o 2.º tenente pil. av. Ortins de Bettencourt como 2.º piloto, Gago Coutinho como observador e como mecânico o chefe dos mecânicos da Aviação Naval, Roger Soubiran. A viagem foi um sucesso. Experimentaram aparelhos e métodos. Como no caminho encontraram um navio mercante, perguntaram-lhe depois, à sua chegada ao Funchal, a sua posição no momento da passagem. Era perfeitamente exacta. Gago Coutinho ainda contestou, por lhe parecer errada a do navio – não a sua! – errada em 5 milhas a contar do Bugio. Mas o navio contava a distância a partir de Cascais. Estava tudo certo. Exacto.

Esse avião teve um desastre, em Porto Santo, ao levantar de regresso a Lisboa. Mas a experiência estava feita.

Projectam então a viagem ao Brasil para o ano seguinte, no ano do Centenário da Independência. Era um presente que queriam oferecer ao Brasil, abrindo-lhe os caminhos dos ares, numa réplica do descobrimento feito por Pedro Alvares Cabral em 1500.

E para esse efeito largam de Lisboa, do Centro da Aviação Marítima, junto à Torre de Belém, na manhã de 30 de Março de 1922. O avião tinha sido baptizado com o nome de Lusitânia.

Depois de 8,30 horas de viagem, sem quaisquer incidentes, chegam às Canárias, descendo no porto de La Luz, em Las Palmas. A navegação fora perfeita, assim como o funcionamento do motor. Ali foram assistidos pelo N. H. Cinco de Outubro, onde se encontravam mecânicos para cuidar do motor. Porque durante o percurso não tiveram qualquer apoio ou referência.

No dia 2 de Abril, o avião voou até à Baía do Gando, na mesma ilha Grã-Canária, para dali mais fàcilmente levantar vôo, por ter mais espaço livre. Essa tentativa de descolagem foi feita no dia seguinte, mas sem resultado, por excesso de peso. Sempre o mesmo drama do raio de acção. E logo então foi decidido reduzir o combustível e alterar o ponto do destino: em vez da Praia iriam para S. Vicente de Cabo Verde, para encurtar caminho.

Partiram do Gando em 5 de Abril, tendo amarado em S. Vicente de Cabo Verde com dez horas e quarenta minutos de vôo, sem outras contrariedades que não fossem pequenas avarias nos instrumentos, fàcilmente remediáveis. A navegação foi perfeita e o tempo, no ar, estava bom. No entanto, no mar via-se grossa carneirada, o que fez Sacadura dizer que se tivessem que descer, por qualquer avaria, «nem a alma se nos aproveitava»! E era assim mesmo, porque estavam completamente isolados e nem um pedido de socorro poderiam fazer.

O que estava inteiramente demonstrado era a sua indomável temeridade a sua perfeita competência para a navegação aérea astronómica.

Restava, no entanto, a demonstração total, espectacular de todas essas possibilidades. Até aqui sempre haveria a eventualidade de recorrer, numa emergência, às referências dos arquipélagos, nas suas várias ilhas, e até à própria costa africana. De Cabo Verde para diante é que nenhum desses recursos existia. Ou navegavam rigorosamente ou se perdiam. Porque nem continentes, nem navios, nem cordões de ilhas havia para os ajudar.

Ora nessa altura, e perante os inesperados e acrescidos consumos verificados, já tinham chegado à conclusão de que nem sequer conseguiriam alcançar Fernando de Noronha, havendo que poisar num ponto intermédio, para reabastecimento. E, em vez do mar aberto, encaram descer junto do Penedo de S. Pedro, uns rochedos esfrangalhados, com 200 metros de comprimento e a altura máxima de 18. Do tamanho dum navio. A tirada para o Penedo de S. Pedro viria, portanto, consagrar definitivamente o feito. Como acto de coragem e como afirmação científica.

De S. Vicente mudam-se para S. Tiago no dia 17 de Abril, depois de devidamente assistidos pelos mecânicos. Para encurtar a distância. Uma viagem simples de pouco mais de duas horas. E na baía da Praia se preparam para a grande aventura.

No histórico dia 18 de Abril, pelas 5 horas e 55 minutos, Sacadura Cabral consegue deslocar, numa terceira tentativa, já quase desesperado. Para tanto foi preciso aproveitar a passagem dum aguaceiro e o vento que levantou! Um quarto de hora depois perdem a terra de vista. E duas horas passadas, ao verificar que a gasolina contida nos flutuadores está esgotada, reconhecem que o combustível não deve chegar para a travessia! As corridas que fizeram para levantar na Praia e ainda a evaporação causada, durante a noite, pelas elevadas temperaturas que havia, deveriam ter contribuído para essa situação. Trocadas impressões entre os dois aviadores, através do famoso «caderno de recados», acabam por prosseguir. Sacadura Cabral diz no seu relatório: «A situação não se apresenta agradável mas decidimos continuar para ver o que faz o vento».

Por aqui já se vê bem a têmpera destes autênticos heróis, a sua vontade de vencer. «Para ver o que faz o vento»!

Horas depois, e perante o excesso de consumo de gasolina, tornam a apreciar a situação, chegando à conclusão de que para alcançarem o Penedo precisariam de caminhar a uma velocidade de 80 nós, quando pelos cálculos só têm conseguido andar a 72. Como dizia Sacadura Cabral: «O lógico, o prudente seria voltar para trás, mas a má impressão produzida se assim fizéssemos, certamente seria enorme». E acrescenta: «Confesso que, para mim, foi este voo o bocado mais amargo da viagem aérea Lisboa-Rio, porque durante nove horas e meia vivi sempre na incerteza de ter ou não gasolina suficiente para chegar ao término. Se assim acontecesse e tivéssemos de poisar no mar, longe dos Penedos, aqueles que não nos conhecessem suporiam sempre que tínhamos partido com gasolina mais que suficiente mas que, tendo-nos perdido, tínhamos terminado por poisar ao acaso em qualquer ponto do Oceano e assim ficaria por demonstrar aquilo que pretendíamos provar, isto é, que a navegação aérea é susceptível da mesma precisão que a navegação marítima!»

Mas eles não podem admitir que a viagem se não faça. Agarrar-se-iam a todas as esperanças. Trocam mensagens, mas vão andando sempre. É o próprio Gago Coutinho que escreve no célebre «caderno de recados»: «Se seguirmos talvez cheguemos, se o vento refrescar». «Leves gastamos menos».

Sem perder um motivo de esperança. Tudo lhe serve. «Leves gastamos menos». «Talvez cheguemos se o vento refrescar», «Vamos perfeitamente na linha». «Vento à popa». «Estão por cá bons horizontes». Enfim, tudo admirável!

E Sacadura Cabral resume no seu relatório: «Desde que partimos de Lisboa tínhamos metido a vida em despesa e nestas condições o melhor era ir até onde a gasolina desse!»

No que eles não pensavam era no risco de vida. O serviço à sua Pátria era a única coisa que para eles contava.

Até que Gago Coutinho pôde finalmente escrever:

– O fumo! Vejo as pedras a 6 milhas!

Era o Penedo de S. Pedro e junto dele, pairando, a fumegar, o cruzador República.

Estava consumada a epopeia.

O Lusitânia, ao amarar, no mar aberto, tocou com um dos flutuadores na crista duma vaga que o partiu, capotando em seguida.

As embarcações do República, que estavam no mar preparadas para assistir o avião, retiraram os aviadores e seus instrumentos. Os cadernos de cálculos, o corrector de rumos, o astrolábio de precisão (o sextante modificado), uma preciosa edição de «Os Lusíadas» e uma garrafa de vinho do Porto!

Não foi possível salvar o aparelho, do qual só resta um flutuador. Mas o essencial da viagem estava realizado.

Depois de 11 horas e 20 minutos de voo sobre o mar solitário, sem telegrafia sem fios, – um pequeno posto equivaleria a hora e meia de gasolina! – sem qualquer navio ou ponto de referência, tinham rigorosamente alcançado – com quarenta grupos de alturas do sol observadas – um minúsculo rochedo no meio do oceano, numa admirável demonstração de coragem, de ciência e de patriotismo.

Podia ficar por ali a grande expedição. Era alguma coisa de novo e de grande na História da Aviação.

No entanto, o Governo decidiu continuar a viagem, a pedido dos aviadores. Um novo avião foi enviado para o Penedo, a bordo do paquete brasileiro Bagé. Era também um Fairey, tipo 16, monomotor, Também lhe tinham sido adaptados tanques nos flutuadores. Sempre a mesma escassez de raio de acção. Não foi possível desembarcá-lo junto ao Penedo, devido à forte ondulação. Foi levado e desembarcado na ilha de Fernando de Noronha.

Nesta ilha brasileira, deu assistência ao avião e aviadores o cruzador República. Estava também ali fundeado o destroyer brasileiro Pará.

No dia 11 de Maio, pelas 9 h da manhã, o hidroavião, depois de duas tentativas falhadas, levantou voo em direcção ao Penedo, para dali reatar a viagem interrompida. O avião ia muito sobrecarregado com gasolina e até levava algumas latas para deitar nos tanques, à medida que estes se esvaziassem!

Tudo correu muito bem na sua viagem até ao Penedo de S. Pedro, que foi avistado às 13.30 h. Mas duas horas depois, no regresso a Fernando de Noronha, o motor começou a falhar e tiveram que descer no mar, mas sem danificar grandemente os flutuadores.

A avaria, se assim se lhe pode chamar, deveria ter resultado de deficiência no sistema de alimentação do motor, dada a complexidade dos tanques e reservatórios de abastecimento. Tentam ainda levantar voo mas não conseguem. Resignam-se, portanto, a esperar. Primeiro deitam-se sobre os flutuadores. Depois, como estes vão pouco a pouco mergulhando, sobem para cima do motor. Sacadura Cabral, impassível, vai fumando cigarros. Gago Coutinho deitando as contas à vida. E em volta deles rondavam tubarões.

Assim chegou a noite. Eles sabiam que o cruzador República e o destroyer Pará não os vendo chegar a Fernando de Noronha haviam de iniciar as buscas sobre a rota previamente combinada. E assim sucedeu. Mas o República tinha também enviado um aviso a toda a navegação dando notícia do desaparecimento do avião sobre a linha Penedo-Fernando de Noronha. O aviso era irradiado de vez em quando.

Ora, foi justamente no momento em que ele era recebido a bordo do navio mercante inglês Paris City, em viagem de Cardiff para o Rio de Janeiro, que o capitão do navio avistou, pelas 22 h, um facho de sinais. Para lá se dirigiu, verificando que era, de facto, o avião português. Dá-se aqui então um curioso episódio. Gago Coutinho sobe as escadas de portaló do Paris City armado da sua pistola de sinais, como um pirata. Procura logo informar-se, na casa de pilotagem, de qual a posição do navio. E verifica que estava errada! O capitão Tamlyn não queria acreditar que uns aviadores perdidos no mar lhe pudessem corrigir a sua posição. Mas eles eram também marinheiros e não estavam perdidos.

Com a chegada do República, pelas 06.30 h, verifica-se que Gago Coutinho tinha razão. A posição do Paris City estava errada, felizmente errada, pois doutra maneira não estariam naquela linha, tão perto dos aviadores.

O hidroavião também se não pôde salvar, podendo apenas dele retirar-se o motor.

Voltam então para Fernando de Noronha à espera de ordens. E elas vêm com novo avião – o último Fairey de que a Aviação Naval dispunha – trazido a bordo do cruzador Carvalho Araújo, no dia 2 de Junho.

Em 5 de Junho largam para o Recife, onde chegam depois de quatro horas e meia de voo. O entusiasmo não poria ser maior, entre os portugueses e os brasileiros. Um destroyer brasileiro deu uma salva de tiros reais, apesar de se encontrar dentro do porto artificial, contra todas as regras!

No dia 8 levantam para a Baía e a 13 para Porto Seguro. Aqui deram-lhes também salvas com os velhos canhões de bronze carregados de pedra e metralha.

Em 15 partem de Porto Seguro para Vitória. Finalmente, no dia 17 de Junho largam para o Rio de Janeiro onde chegam pelas 14.30 h. Pousam junto da llha das Enxadas, onde estava instalada a Aviação Marítima, içando a bandeira brasileira com uma salva de 21 tiros dada com a pistola de sinais! Este último e feliz avião chamava-se Santa Cruz.

Logo a seguir, na Avenida Rio Branco, em cortejo triunfal, recebem a ovação calorosa de pràticamente toda a população do Rio de Janeiro, que ali se concentrou para os vitoriar.

 

*

 

Sacadura Cabral e Gago Coutinho foram alvo de todas as homenagens: promovidos, doutorados em Universidades, recebidos na Assembleia Nacional e na Sorbonne. Nas igrejas repicaram os sinos, exaltados em nomes de ruas e em monumentos.

Fora este feito heróico um dos maiores serviços prestados à aproximação luso-brasileira. Era uma excelente introdução à chegada do Presidente da República Portuguesa, Dr. António José de Almeida, que em Setembro iria ao Brasil participar na celebração do 1.º centenário da independência do Brasil. O nome de Portugal projectava-se cada vez mais no mundo.

Poucos anos depois, em 1927, os aviadores militares portugueses Sarmento de Beires e Jorge de Castilho efectuaram a primeira travessia aérea nocturna do Atlântico, da Guiné para Fernando de Noronha, com navegação astronómica. Era mais uma consagração, mais uma prioridade para Portugal.

Estes foram alguns dos resultados dos êxitos, dos verdadeiros triunfos alcançados através do grande feito. Mas para lá chegar, quanta luta houve que travar, quanta inveja houve que desprezar, quanto derrotismo houve que vencer! E quanta maledicência houve que suportar depois.

E é aqui, justamente, que reside outra grande lição para todos, e para os novos em especial. Sobretudo os militares. Os que têm a honra, a prerrogativa, de prestar à sua Pátria serviços que não têm preço, que se não podem pagar. Os que não têm horários, nem patrões, nem recompensas materiais. Mas que servem até ao limite das suas forças, que podem caminhar de cabeça levantada e que merecem o respeito e a gratidão dos seus compatriotas.

Dos derrotistas, o seu número não tem conta através da História. Mas a todos levaram de vencida, deixando-os no esquecimento, as espadas vitoriosas de Afonso Henriques, Nun’Alvares e D. João r. Ressurgem depois, é certo, como a erva daninha e venenosa, parece que para estimular as grandes virtudes, simbolizados no Velho do Restelo, incarnando uma suposta prudência, o culto da mediocridade. Lá os vemos ao longo da História, tentando paralizar a sua evolução, delapidando a obra grandiosa de Pombal, entravando a nossa participação na I Grande Guerra, enfraquecendo agora a defesa do Ultramar. A par deles os detractores ou incapazes, difamando Albuquerque e Vasco da Gama, enxovalhando Mousinho, menosprezando os que se batem em África.

Mas afinal o que resta, o que fica, de todas essas míseras campanhas de alienação e de difamação? Alguém se lembra dos nomes dos míseros detractores?

Quando da gloriosa chegada ao Penedo de S. Pedro parece que não faltaram as vozes sinistras que procuraram ensombrar os nomes dos heróis. É o que se depreende da pronta, decidida e digna atitude do jovem tenente aviador Pinheiro Corrêa, expressa numa carta enviada ao Diário de Lisboa no dia 19 de Abril, o dia seguinte ao da perda do Lusitânia. Nela refuta, repele qualquer dito invejoso ou malévolo que possa atingir o valor do feito já realizado. E afirma corajosa e honradamente: «A travessia está feita. Quem, pela primeira vez no Mundo, consegue descolar de uma ilha e ir sem um pequeno desvio, com uma precisão matemática, amarar a 920 milhas junto de um pequeno rochedo perdido no oceano, não necessita de defesa nem ouve o coaxar das rãs que enxameiam por esses pântanos nacionais e estrangeiros... »

E depois de narrar os acidentes frequentes nas amaragens, rebate energicamente «que na aviação de terra exista qualquer rivalidade contra os seus camaradas do mar». E acaba por comparar os tratamentos dados a duas aventuras da aviação, a de Hawker e Grieve recebidos em Buckingham e a de Brito Pais e Sarmento de Beires castigados disciplinarmente.

Para terminar desassombradamente: «Portugal dita, desde ontem, leis ao Mundo em navegação aérea».

Admirável desassombro e coragem duma juventude que ainda se não perdeu! Honra lhe seja a esse paladino dos ideais generosos, ele mesmo um pioneiro da nossa Aviação.

Não. O coaxar das rãs não conta. O que ficou, o que conta, é tudo o que somos. Uma Nação independente, engrandecida, que orgulhosamente afirma a sua presença no mundo, a sua razão de ser. Que não se limitou a percorrer a História para fabricar chitas ou fazer negócios. Outros serviços, e dos mais assinalados, lhe deve a Humanidade.

O que ficou foi uma obra incomparável e os nomes heróicos que a balizam e de que todos nós nos orgulhamos até aos dias de hoje, de Vasco da Gama a Albuquerque, de Mousinho a Azevedo Coutinho, de Gomes da Costa a Cerqueira, de Carvalho Araújo a Pereira de Eça, de Gago Coutinho a Jorge de Castilho, de Serpa Pinto a Sacadura Cabral, de João Roby a Oliveira e Carmo.

Estes os nomes que sustentam a própria Pátria e a erguem bem acima das sombras em que os seus detractores a quiseram soterrar.

Pois a empresa heróica de 1922 não foi isenta de entraves e de cepticismo.

Mas a todos se sobrelevou o apoio que lhe deram três ilustres ministros, primeiro Macedo Pinto, depois Pais Gomes e sobretudo Victor Hugo de Azevedo Coutinho, sob a égide do qual se realizaram as experiências e o voo triunfal.

Um senador e um deputado, logo no início do raiá – como então se chamava – não resistiram à tentação de o entravar, o primeiro condenando a despesa, dada a penúria dos cofres; o segundo estranhando que o Governo se associasse a uma simples aventura! Mas as suas vozes foram literalmente abafadas, sem o mais pequeno eco. E o próprio presidente da Câmara, o Dr. Rodrigo Rodrigues, não resistiu em lhe responder, porventura até contra as normas regimentais:

– Se não fosse a aventura do Gama não estava V. Ex.ª aí sentado!

E era assim mesmo. É curioso que Gago Coutinho havia de mais tarde, ao verberar atitudes semelhantes, dos incapazes, dos invejosos, que acobertam as suas inferioridades como velhos do Restelo, escrever também, referindo-se aos Descobrimentos: «Se não tivéssemos feito essa epopeia, desaparecida
a razão de ser de um Portugal europeu… quando muito estaríamos agora, ao calor de fogueiras, explicando ao povo – em língua árabe, espanhola ou francesa – como tinham os nossos avós sido banidos do outro lado do Estreito, da saudosa Península Hispânica, por não terem compreendido a imensa vantagem de passar com as suas caravelas além do Cabo Bojador».

São palavras iluminadas. Mas a Nação inteira, a que passou além do Bojador, festejou os seus heróis.

Pois apesar dessa verdadeira apoteose, de exaltação em que participaram todos 0’S Portugueses perante aquele mágico despertar de novas energias e capacidades, apesar do público e notório conhecimento que houve da projecção internacional que o feito trouxe para o nosso País, as invejas, a mediocridade, o derrotismo não desapareceram. Sempre medrando na sombra.

E assim, quando Sacadura Cabral, que parecia por todos venerado, pretendeu realizar uma viagem de circum-navegação aérea, jogando mais uma vez a sua vida para exaltar a sua Pátria, não conseguiu arranjar fundos para tanto. E pouco depois, desgostoso ainda pela pouca atenção dada aos seus pedidos para o desenvolvimento da aviação naval, que ele tinha criado, chegou a pedir a sua demissão de Oficial da Armada. Nã0’ sabemos o que lhe estaria reservado se a morte o não tivesse levado quando regressava de Inglaterra pilotando um dos aviões com os quais preparava a viagem à índia pela rota de Vasco da Gama. Mas teve a sorte de morrer no seu posto, como um herói, levado por um pelouro, no fragor duma batalha.

Gago Coutinho voltou-se para as suas velhas paixões, os estudos geográficos, a que a idade havia de introduzir o sabor da História. Depois de ter sido o maior geógrafo português de todos os tempos, de ter demarcado 2000 quilómetros de fronteiras e registado muitos milhares de quilómetros de itinerários, em África e em Timor, levantado geodèsicamente ilhas, numa actividade portentosa ao serviço das províncias ultramarinas, Gago Coutinho repetia, na escala que suas forças permitiam, isto é, na investigação histórica, a actividade geográfica que o apaixonava. Mas sempre na luta, sem um desfalecimento. Ataca intemeratamente o maior camonianista de todos os tempos (como ele próprio reconhecia), o Dr. José Maria Rodrigues, para lhe mostrar como era errada a interpretação que dera à descrição da rota de Vasco da Gama narrada por Camões. Ataca e vence. A sua inteligência penetrante, servida por uma experiência única de navegação à vela, tinha esclarecido definitivamente esse problema.

Ataca as teorias do acaso nas descobertas. E prognostica – não poderia fazer mais à mingua de documentos – a prioridade portuguesa nos descobrimentos da América, da Austrália e outros mais.

Acabou os seus dias debruçado sobre um estirador, no desvendar das rotas das caravelas. Na véspera da sua morte, desenhava umas velas para a capa duma nova edição de Os Lusíadas para a Escola Naval. Assim terminava os seus dias, ao serviço do Mar, o filho do escrivão da nau Vasco da Gama

 

*

 

São estes gloriosos exemplos que eu tive muita satisfação em lhes mostrar, em recordar. São estes os exemplos para todos nós. Aqueles que temos a honra de vestir uma farda de militar, aqueles que sentimos o imperativo de fazer alguma coisa para glória da nossa Pátria e para bem da Humanidade. E nós temos neste momento o privilégio de empregar todas as nossas capacidades na defesa duma grande causa nacional, da integridade da nossa Pátria, ameaçada no Ultramar, a verdadeira razão de ser da própria independência.

A nossa Pátria foi feliz por ter, em dado período da sua vida, uma grande missão a cumprir, os Descobrimentos. E é sobretudo desse período e doutro que se lhe seguiu, o povoamento do Brasil, que nos vem a maior força que sustenta o nosso orgulho de ser Português. O resto da nossa história, das fábricas e dos negócios, pouco têm contado para nós.

Agarrámos pelos cabelos, numa ânsia de renovada vitalidade, a gloriosa travessia aérea do Atlântico Sul.

Agora resta-nos a África, engrandecer a África portuguesa. É uma obra digna das melhores tradições portuguesas, uma obra para ser realizada já não apenas com os Portugueses da Europa mas numa comunhão de esforços e de sacrifícios de toda a Nação Portuguesa. É o último ideal dum povo, a sublimação dum sonho de mais de quinhentos anos. Saberemos ser dignos das nossas responsabilidades históricas e não enjeitaremos o futuro da nossa Pátria.

 

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* Conferência proferida na Academia Militar.

** Contra-Almirante Manuel M. Sarmento Rodrigues, Revista Militar n.º 6, junho de 1972, pp. 270-286.

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