A Grande Aventura, Sacadura Cabral e Gago Coutinho na Primeira Travessia do Atlântico Sul
Mário Correia
Edição Oficina do Livro, abril de 2022
Mário Correia licenciado em História, foi aviador, conservador do Museu do Ar e coautor e autor de diversas obras sobre as viagens aéreas e biografias dos aviadores portugueses. Isto, para além de um reconhecido trabalho desenvolvido na área museológica.
Ativo e dotado de grande capacidade de trabalho, apresenta-nos agora a “Grande Aventura”, vivida por Sacadura Cabral e Gago Coutinho, naquela que foi a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, no momento em que se comemoram os cem anos desse feito.
Que constituía, na altura, um grande objetivo patriótico, visando unir portugueses e brasileiros, ultrapassar os traumas herdados da I G. Guerra, da pandemia de 1918/1919 e da instabilidade política da I República. Mas envolvia, também, uma componente científica significativa (pág. 174):
“Provar que, tal como num navio, também a navegação aérea podia ser segura e rigorosa, objetivo que se cumpriu na chegada ao Rio de Janeiro”.
Conforme prefácio do professor António Horta Fernandes, as criações de G. Coutinho, o sextante com bolha de nível melhorada e o astrolábio de precisão, revelaram-se fundamentais para as futuras expedições aéreas. Mário Correia, para além da descrição da viagem, ritmada, tecnicamente apurada, porque baseada nas fontes, descreve também o contexto político e social e o palpitar da dinâmica dos grandes debates estratégicos e militares daquela época.
Trata-se, portanto, de uma obra importante para o estudo da nossa História dos anos vinte e trinta do século passado, período de transição tecnológica e de afirmação da aviação, mas também de confrontação entre a democracia e os totalitarismos e autoritarismos que começavam a ganhar terreno.
Relevante, é ainda transcrever as palavras escritas do autor, que nos revela as suas principais fontes (pág. 28):
– “Os relatórios da viagem de cada um dos aviadores;
– A conferência apresentada por S. Cabral na Sociedade de Geografia, em 1921, sobre o voo à Madeira, durante o qual foram testados os métodos que seriam usados, na navegação aérea, no ano seguinte, no voo ao Brasil;
– Os jornais e outras publicações da época”.
Passamos agora a percorrer a estrutura deste livro de Mário Correia que está dividido em nove capítulos, que se distinguem pelas várias etapas temporais, contextos históricos e lugares onde ocorreram os acontecimentos.
No primeiro Capítulo, “A Aventura do Atlântico Sul”, para além de uma introdutória descrição de viagens aéreas anteriores, apresenta o projeto de S. Cabral para a travessia do Atlântico Sul, que é contada da seguinte forma (pág. 50):
“A ideia de voar para o Brasil nasceu no meu espírito quando os americanos, depois da travessia aérea do Atlântico Norte, chegaram a Lisboa em 1919 e eu comecei a pensar que seria pena não serem os portugueses os primeiros a voarem até à América do Sul, visto que haviam sido os primeiros a lá irem por mar”.
Menos conhecidas são as tentativas, com o apoio do governo português, encetadas sem êxito, no sentido de envolver a aviação e a marinha brasileira neste audacioso projeto. Pois, na mente de S. Cabral, o voo deveria contar com um avião de cada nacionalidade, operados por tripulações mistas, contando com o apoio de navios da Armada dos dois países.
O Capítulo II, “Cabral e Coutinho, uma Velha Amizade” descreve os trabalhos que juntos desenvolveram nos levantamentos hidrográficos e geodésicos, para a demarcação da fronteira de Moçambique, com as regiões vizinhas. Trabalho exigente pela precisão e rigor nas observações astronómicas, onde o sextante desempenhava um papel central. Depois, regressado em 1914, S. Cabral parte para França, onde se qualifica como piloto e também como instrutor de voo.
A terceira parte, “A Navegação para o Voo ao Brasil”, relata os encontros entre estes nossos heróis, ambos solteiros, no café Leão D’Ouro e na Casa do Alentejo, dos quais nasceu a ideia (pág. 67):
“Da criação de um instrumento a que deram o nome de Corretor de Rumos Coutinho-Sacadura, um calculador que assentava nas observações visuais do valor da deriva provocada pelo vento, a partir da visualização de boias de fumo lançadas à água, com duas medições diferentes desfasadas 45º.”
Corretor de rumos (Museu do Ar)
Os Capítulos IV e VI, “A Escolha do Hidroavião” e “Na Fábrica do Hidroavião” narram a escolha do tipo de motor, que haveria de ser o Rolls-Royce Eagle, por razões de fiabilidade. E as necessárias características da aeronave, com capacidade de carga máxima de 2 000kgs. Mas que, considerando o combustível, óleo, água para o radiador e instrumentos, não deveria ultrapassar os 3 500kgs à descolagem. Foi, por isso, escolhida a fábrica da Fairey e construído o exclusivo modelo Fairey III D Mk II, que o fabricante denominou de Transatlantic.
No Capítulo V, “O Voo de Teste de Navegação à Madeira”, o autor relata o voo de março de 1921, em que os aviadores testaram a eficácia e precisão dos métodos de navegação que conceberam para o voo ao Brasil. Usando o corretor de rumos e o sextante transformado por G. Coutinho, os quais deram boas provas, de tal forma que, ao fim de sete horas de voo e com toda a precisão, foi encontrada a ilha.
O Capítulo VII, “Voando sobre o Atlântico Sul”, narra a grande aventura, que decorre de 30 de março de 1922 a 17 de junho desse mesmo ano. Com passagem por Las Palmas, Gando, São Vicente, São Tiago, Penedos, Fernando de Noronha, Recife, Baía, Porto Seguro, Vitória e chegada ao Rio de Janeiro, após percorridos 8 239 quilómetros, em 62 horas e 26 minutos de voo, à média de 130km/hora. Com percalços vários, duas aeronaves perdidas, uma amaragem de emergência e posterior resgate pelo navio Paris City, uma proeza épica com inúmeras dificuldades e contrariedades, levada a cabo por dois românticos dotados de sangue-frio e com destemor pela vida.
Depois, foi o regresso a Portugal, com chegada a 26 de outubro, dia que foi decretado feriado nacional, a que se seguiram incontáveis homenagens e comemorações.
Sextante de marinha adaptado à navegação aérea (Museu do Ar)
Redigida numa linguagem académica, mas a todos acessível, mesmo quando trata de questões técnicas, nunca olvidando o empenho e determinação destes dois homens que tiveram de superar as maiores dificuldades para realizar o seu sonho.
Finalmente, não resistimos à tentação de transcrever um excerto do texto inserido na contracapa e que julgamos ser um excelente resumo de toda a obra:
“De uma forma inovadora, Gago Coutinho tinha adaptado o famoso sextante a viagens aéreas, permitindo à dupla de pioneiros voar com precisão; Sacadura Cabral dedicara especial atenção à escolha do modelo de hidroavião e do motor, pois era imperativo ter em conta muitas variáveis, tais como as condições meteorológicas, os locais onde teriam de realizar escalas ou o consumo de combustível”.
Criteriosamente apresentado, num volume de 199 páginas, com capa reproduzindo as fotografias dos aviadores, ilustrado por diversas imagens da época, fruto de uma aturada pesquisa e comprovando os especializados conhecimentos do autor, fica esta obra à disposição dos leitores interessados, constituindo um valioso contributo para a História da Aviação.
A Revista Militar agradece a oferta do livro “A Grande Aventura, Sacadura Cabral e Gago Coutinho na Primeira Travessia do Atlântico Sul” e felicita a Editora Oficina do Livro que o publicou e o autor e investigador Mário Correia, que o escreveu.
Major-general Manuel de Campos Almeida
Vogal da Direção da Revista Militar
Vogal Efetivo da Direção da Revista Militar.