Nº 2645/2646 - Junho/Julho de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Globalização e Governação Mundial. O diagnóstico de Santo Agostinho
Embaixador
António Manuel de Mendonça Martins da Cruz

1. A Organização Mundial de Saúde (OMS), agência especializada das Nações Unidas, declarou em Março de 2020 que o vírus COVID-19 conduzira a uma pandemia global.

A dinâmica da globalização levou a que este fenómeno se refletisse de forma rápida na opinião pública mundial. Que se sentiu afectada e de certo modo consciente dos riscos.

Ao contrário, por exemplo, da pandemia de 1918, conhecida como a “gripe espanhola”, de efeitos muito mais graves já que provocou a morte de mais de 50 milhões de pessoas. Mas o impacto foi menor, ou mais ignorado, porque a globalização não atingira a escala que tem hoje.

A actual pandemia, como fenómeno global, chegou no momento em que alguns questionavam a própria globalização. Provavelmente como consequência da crise financeira de 2008-2010 que teve efeitos devastadores, embora diferenciados, na Europa e na América do Norte.

Depois de mais de ano e meio, e após diversas tentativas para prever qual seria o new normal internacional, ainda hoje se hesita entre três hipóteses:

• Se a pandemia acelerou as tendências que já se anteviam no mundo;

• Se haverá novas configurações e novos desafios na cena internacional;

• Ou se, afinal, o novo normal será a continuação do anterior estado do mundo com as necessárias adaptações.

Que, neste último caso, teriam ocorrido mesmo sem a pandemia que apenas veio apressar acontecimentos e fragilidades a nível internacional. E exigir medidas mais rápidas.

A resposta a estas questões, embora não afecte com tanta gravidade as potencias que marcam o ritmo daqueles acontecimentos, como os Estados Unidos ou a China, é importante para a União Europeia, com um peso político inferior à sua expressão económica.

E é ainda mais importante para países de dimensão menos saliente, como Portugal. Que as mais das vezes reage em política internacional a situações com que é confrontado. E que raras ocasiões tem a oportunidade ou condições para agir por iniciativa própria em situações globais. A política externa tem menos variantes do que o vírus.

 

2. Apesar da pandemia não ter acabado, e da percepção das opiniões publicas e dos decision makers ser assimétrica quanto aos tempos desse fim, já podem tirar-se algumas conclusões do que tem sucedido na gestão da crise no plano internacional. Que decorrem aliás do perfil da pandemia, do atraso das respostas (políticas, económicas e sanitárias) e da impreparação da generalidade dos decisores sanitários e políticos. Até por se tratar de uma situação nova e inesperada, sem referências ou fórmulas de solução. Era difícil a forward guidance.

Para os Governos, os componentes da crise confluíram na ameaça aos serviços de saúde. Que conduziriam a medidas para evitar o colapso desses sistemas: reduzir a transmissão do vírus restringindo a mobilidade. Teve como consequência a depressão económica. Houve que construir novas capacidades e descobrir novos recursos. Na generalidade dos países sucedeu o que agora se chama o game-changer. Cuja sequência é sempre incerta. Enquanto as situações políticas, a engenharia social e as respostas económicas não estiverem estabilizadas.

Mas com consequências globais e geo-políticas, além de fraturas internas. Que viriam a depender, e ainda dependem, da capacidade de cada país construir soluções. Esta fragmentação de políticas nacionais, mais visível para nós na Europa, foi o reflexo da incapacidade de propostas internacionais válidas ou exequíveis.

A rapidez da vacinação é indicada pela generalidade dos decisores como essencial para acelerar o fim da crise. Ou, pelo menos, a redução dos efeitos económicos e sociais da pandemia. Permitindo passar às fases de recuperação.

Curiosamente – até agora – só 4 países investiram e iniciaram a produção de vacinas: Estados Unidos, Reino Unido, China e Rússia. A ausência da União Europeia e dos seus membros obrigou a Comissão Europeia a negociar (por vezes bem, raramente mal, quase sempre assim-assim) com laboratórios produtores de vacinas de dois Estados ocidentais. O que não evitou dificuldades na distribuição dentro da própria Europa. Apesar da saúde não estar nos Tratados da UE, e ser matéria inter-governamental e não comunitária, os Estados-membros da nossa dimensão fizeram bem em delegar na Comissão o processo inicial de compra e distribuição das vacinas.

As desigualdades não se evitaram dentro da União. Mas as assimetrias foram muito maiores a nível global. Sobretudo, se olharmos para África ou para a América Latina. A fase de diplomacia digital em que entrámos não ajudou a compensar essas diferenças. A inexistência da comunidade internacional, não como conceito, mas no sentido operacional, viria a agravar a situação.

A ausência das Nações Unidas, as hesitações da OMS, a ineficácia do GAVI e do COVAX em fazer chegar vacinas aos países do sul que mais as necessitam, foram paradigmáticas. As respostas não estavam nem estão à altura das circunstâncias e dos objectivos. O que pode conduzir a mudanças nos patamares da distribuição e exercício do poder à escala global. E até a situações de conflito, por enquanto evitadas.

Não temos nenhuma garantia que esta será a última pandemia que a humanidade irá defrontar. Antes pelo contrário.

 

3. Em paralelo, esta falha dos sistemas multilaterais coincide com uma competição mais densa entre potencias globais (Estados Unidos, China) e regionais (União Europeia, Rússia).

Sem a pandemia, provavelmente Trump não teria perdido a re-eleição nos Estados Unidos. O novo presidente americano, na fase inicial da sua administração, tornou mais duro o diálogo com a China. Tentando obter dos europeus senão simpatia, pelo menos neutralidade positiva para essa contenda. Pesem embora os entendimentos que se antecipam entre americanos e chineses.

Terá a pandemia provocado estas políticas para com a China agora delineadas na Casa Branca ou no State Department? Provavelmente, não. As divergências são estratégicas do ponto de vista americano. Fundamentalmente, impedir o fim da hegemonia americana. E para tanto confirmar a China como rival sistémico, na esteira das decisões de Trump. Certamente nos planos político e militar. Numa perspectiva económica, a China provavelmente ultrapassará os Estados Unidos como primeira potência antes do final desta década. Se, claro, não houver alterações significativas no enquadramento mundial. Mas, se isso suceder, Washington tem a noção que a responsabilidade é sua. A China continua a percorrer os caminhos que traçou. A procura de aliados pelos americanos antecipa também a diluição de incapacidades próprias.

Curiosamente, a recente versão económica da globalização nasceu com o desvio para a China e alguns países asiáticos de produção industrial dos Estados Unidos e da Europa. Facilitando o consumo nos mercados ocidentais a preços acessíveis. E a pandemia não veio alterar essa realidade. A precipitação e o entusiasmo europeus na recente reivindicação de uma “autonomia estratégica” e na necessidade de alterar as chain supply, as cadeias de abastecimento, parecem ter-se esvaído na burocracia de Bruxelas. A bolha de Bruxelas parece, como sempre, mais interessada em elaborar regulamentos do que em inovações estratégicas. E os governos europeus foram dando-se conta que dependem da China não apenas quanto aos chips para a sua indústria, como para manter preços modestos para consumo das suas populações. Impossíveis de conseguir com produções europeias agravadas no preço final pelos sistemas fiscais e de segurança social.

Tudo isto torna difícil para europeus manter a equidistância entre Estados Unidos e China. E assegura que a “velha” globalização se irá manter. Os obstáculos virão provavelmente da China, que com o novo conceito de “economia circular” irá ver progredir o consumo interno e, a curto prazo, os preços. A par com o aumento exponencial do shipping, dos custos de transporte marítimo.

 

4. A pandemia foi responsável pela maior reversão económica das últimas décadas. Mais grave, porque global, do que a crise financeira de 2008-2010. Com evidentes consequências políticas não apenas a nível dos países, mas no plano global. E agravando as assimetrias entre países e regiões.

Vejamos o exemplo das vacinações: os países desenvolvidos tinham, em Junho deste ano, administrado 73 vacinas por cada 100 pessoas; países de rendimento médio 43 doses; países de rendimento médio-baixo 12 doses e países em desenvolvimento 3 doses por 100 habitantes (United Nations, Department of Economics and Social Affairs, Economic Analysis, July 2021, Briefing nº 151).

As desigualdades agravaram-se. A recuperação económica, que depende das políticas nacionais e das reestruturações, mas também de decisões internacionais ou das potencias globais ou regionais, será igualmente a diversas velocidades.

A pandemia afectou a economia a nível global. Creio que é ainda cedo para sabermos quais as soluções e principalmente o timing da recuperação. Que dependeria de duas realidades: o controle da pandemia e o acesso generalizado à vacinação. Também por isso, os organismos internacionais (FMI, BM, OCDE) antecipam que a recuperação será mais rápida nos países desenvolvidos do que nos Estados com menos recursos. Que os Estados Unidos já estão a recuperar mais rapidamente do que os países-membros da União Europeia, incluindo Alemanha e França. Que o Reino Unido será mais rápido do que a UE. E principalmente que a China terá uma velocidade de recuperação superior a todos os outros países. Como sucedeu noutras épocas da história, o crescimento parece inseparável da volatilidade. A noção que se irá abrir um novo ciclo está condicionada pelo tempo que levará encerrar a fase intermédia que a pandemia representa e pela performance que as condições encontradas na altura irão permitir. Só a China e os Estado Unidos procuram escapar a estes condicionalismos e marcar pautas que todos os ouros, incluindo europeus, irão seguir. Se for assim, vamos caminhar por novas fórmulas de globalização. Mais orientadas. Como as que Portugal impôs na primeira metade do século XVI quando era a única potência a trazer as matérias-primas orientais que os mercados do centro europeu ambicionavam.

 

5. A recuperação terá riscos. Económicos, sociais e políticos. Relativos às dívidas das empresas, com destaque para as PME. Ao endividamento das famílias, somado à dúvida de quando os consumidores encontrarão ritmos de despesas anteriores à pandemia. E no plano global, a inflação e a redução de compra de dívida pelos bancos centrais são também riscos que o mundo irá deparar provavelmente a mais curto do que médio prazo. Por outro lado, o regresso do turismo a níveis de 2019 não será viável antes de 2023. O que assume particular importância para os países do sul da Europa, incluindo Portugal. Para os quais o turismo representa entre 12 a 15% do PIB anual.

Outro risco que pode atrasar a abertura das economias e a recuperação será a manutenção do confinamento e novas dificuldades nas vacinas. Terá efeito no que já se chama “o regresso à normalidade”.

A pandemia, a nível global, acrescentou outros riscos: reduziu o esforço de décadas a diminuir o nível de pobreza nos países do sul; agravou a insegurança económica e política desses países; acentuou também as diferenças entre os próprios países dos continentes do sul aumentando o nível de possível conflitualidade. Estas fragilidades serão sinónimo de uma recuperação mais demorada. Sublinhando divergências e assimetrias que terão diversas consequências. Exigindo esforços acrescidos de ajuda ao desenvolvimento. Aumentando as migrações para a Europa e os Estados Unidos. Adiando investimentos. Acrescendo a dependência de matérias-primas. Diminuindo exportações com valor acrescentado. Incrementando os preços dos alimentos.

A nível global, estes factores poderão contribuir para novos patamares de riscos de segurança ou de eventuais conflitos localizados. Nesta matéria, parece importante saber distinguir a realidade e as utopias. Muitas aparecem nestes tempos de pandemia. Mas justamente estes tempos podem favorecer decisões que conduzem a riscos acrescidos. Daí a importância de soluções multilaterais, locais ou regionais, que antecipem ou procurem resolver estas situações.

 

6. Quais serão afinal as consequências a nível global da pandemia provocada pela COVID-19? Partimos de uma constatação hoje aceite pela generalidade dos actores internacionais, governos e decisores privados:a pandemia deixa-nos um mundo mais desigual e mais pobre.

Desigualdades internas, com consequências sociais a curto prazo. Desigualdade entre os países por razões económicas provocadas pelo acesso assimétrico a vacinas e a mercados.

A nível nacional, cada país procurará encontrar soluções, olhando para fora e solicitando as ajudas possíveis. Que provavelmente serão condicionadas, como sucederá em Portugal com a chamada “bazuca” (FRR).

Nas democracias, a manutenção dos executivos irá depender do sucesso da recuperação económica e social. Nos regimes iliberais, do controle que as classes dirigentes exerçam.

A nível global, as soluções serão sempre demoradas. Porque os governos tiveram de tomar decisões que afectaram o” status quo ante”, a situação anterior.

Parece que enfrentamos, em política, o chamado “Solow paradox” definido por Robert Solow, em 1987, para situações económicas. Dando-se conta que há um atraso entre inovação e a adopção dessa inovação pelas empresas, e outro atraso entre a adopção e o impacto económico da inovação, Solow definiu o paradoxo da produtividade nesta fórmula: “Pode-se saber a idade de um computador em qualquer momento mas sobretudo nas estatísticas de produtividade” (James Manyika e Michael Spence, A Better Boom, How to Capture the Pandemic’s Productivity Potencial, Foreign Affairs, July – August 2021).

Este paradoxo, esta décalage, irá notar-se na recuperação.

Faltando referências de um mundo futuro, as opiniões públicas e até a larga maioria dos governos terão como termo de comparação o que existia antes e não as novas tendências. Que geralmente ignoram ou desconhecem. Ou que necessitam do tempo e impulsos que só as sociedades e os países mais desenvolvidos poderão dispor. Primeiro, nos seus próprios países. Depois, impondo-os aos restantes Estados. Como, por exemplo, o combate contra as alterações climáticas ou a digitalização. Que não serão as principais preocupações do Nepal, do Mali ou da Nicarágua. Mas que irão condicionar as próximas votações na Alemanha, na Bélgica ou no Canadá.

Durante a pandemia sucederam várias alterações ao sistema de governação com repercussões globais. As fronteiras regressaram. Não apenas para os europeus no espaço Schengen, mas estiveram encerradas ou condicionadas no resto do mundo. Com imediatas repercussões económicas directas ou indirectas no turismo, nas viagens de negócios, na diplomacia, no decision making público e privado.

 

7. A pandemia veio alterar, interrompendo ou acelerando, um novo desenho de globalização. Este game-changer pode explicar-se comparando a União Europeia com a China. Enquanto o Império do Meio soube transformar a crise em oportunidade e será o primeiro pois a recuperar a economia e a encurtar o tempo para se tornar na primeira potência económica mundial, a União Europeia não conseguiu desenhar soluções comuns até para as questões mais simples, como a documentação a apresentar à entrada dos restaurantes. Diluiu-se em políticas e regulamentos alterando porventura a sua imagem na percepção des europeus e não-europeus. Facto que aparentemente a burocracia de Bruxelas (ainda) não realizou. Continuando a propor futurologia em vez de procurar recuperar credibilidade.

Haverá alternativas à União Europeia? Não creio. Sobretudo, para países como Portugal. Apesar das divergências possíveis em momentos de crise como a actual. A Europa consolidou a nossa democracia e o nosso desenvolvimento. E, se a partir de 2000, o nosso crescimento económico diverge do europeu, não é certamente por culpa de Bruxelas. Que tem mantido programas e fundos compatibilizando-os com os sucessivos alargamentos da União. Com os quais Portugal concordou.

O actual momento europeu e até indícios de alguma fragmentação correspondem ao phasing out de Merkel, ao reajustamento após o Brexit, à percepção de algum desnorte francês (“a morte cerebral da NATO”), à crise inesperada da pandemia para a própria Comissão Europeia.

A consolidação dos futuros interlocutores no eixo Berlim-Paris, novos horizontes globais, a responsabilidade de respostas adequadas, a experiência administrativa irão animar o largo espectro de instituições europeias a procurar caminhos que os europeus querem e aspiram. E que o mundo aguarda.

As vacinas e os seus timings, foram outro dos factores que vieram alterar a distribuição do poder e as divergências de cooperação na cena internacional. A saúde global passou a ser um dos pilares da segurança. (La geopolítica de la salud, Eduardo Soler i Lecha, CIDOB, Barcelona Center for International Affairs, 07/2021).

Mas as assimetrias foram uma dinâmica negativa na alteração da situação.

Outro factor menos falado, mas com forte presença anárquica nas redes sociais, liga-se a medidas de governação iliberais ou autocráticas que as democracias ocidentais e países like minded tomaram. Muitas vezes sem se aperceberem das consequências. Para controlar o vírus decretaram-se confinamentos, fecharam-se unilateralmente fronteiras, impuseram-se medidas de controle social, centralizou-se o poder com leis de emergência. Numa palavra, ordenaram-se procedimentos e medidas por vezes redutores do conceito de liberdade. Que as democracias condenam em relação a regimes que não consideram democráticos. Numa fórmula mais simples, o exemplo da China foi, neste caso, seguido por europeus e, menos, por americanos. Mas que simultaneamente impunham sanções à China por políticas quase semelhantes, embora menos expressivas, às que iam praticando.

Ou, por exemplo, com a acrescida intervenção dos Estados na economia, as chamadas medidas anti-cíclicas: com o acelerar da compra de dívida; o novo Fundo europeu com a Comissão a ir aos mercados (que sabem que a Alemanha é membro da UE e avançam sem receio com capital); restrições nas exportações, por exemplo, de vacinas ou material sanitário; maior controle dos mercados e dos movimentos financeiros; políticas de imposição quanto às alterações climáticas, aproveitando a margem de manobra que a pandemia ofereceu aos governos.

Em relação aos Estados Unidos, e passados os primeiros meses da administração Biden, pode perguntar-se se a nível internacional os objectivos de Washington são outros para superar os efeitos da pandemia nas suas políticas externa e interna. É tema que nos interessa como europeus, como não-americanos. Principalmente, as políticas económicas dada a importância do dólar e do sistema financeiro americano.

No plano interno, a actual administração viria a acelerar e redimensionar as soluções anteriores por tornar a recuperação económica mais eficiente. E na visão externa, as políticas e os objectivos não divergem muito do que era feito. A diferença é que agora “a narrativa Biden” prossegue um estilo diplomático mais tradicional e um discurso que soa mais moderado. As grandes diferenças, até agora, são o conforto dos aliados da NATO, sem retirar exigências de gastos na defesa na linha de Obama e Trump, e o regresso a soluções climáticas multilaterais.

A pandemia não veio acrescentar focos de insegurança por si mesma. As tensões criadas nos últimos meses no Mediterrâneo, no Médio-Oriente, no Sahel, na Arménia, no Afeganistão, nos mares do sul da China não estão relacionadas com o vírus. Teriam sucedido com ou sem pandemia. Tal como o terrorismo islâmico no norte de Moçambique ou os motins na África do Sul.

Ou seja, os efeitos geo-políticos da pandemia, que existem, não foram determinantes para as principais alterações e dinâmicas verificadas.

 

8. A nível global, a pandemia não foi um imunossupressor das soluções multilaterais e da governação e cooperação internacionais. Nem sequer dos equilíbrios do poder ou da tração ascendente das potências globais. Veio certamente modificar circunstâncias e regras. Mas provavelmente regressaremos a dinâmicas anteriores. Excepto em relação a políticas adoptadas que lhes aumentaram margens de poder. Os governos raramente aceitam a revisão das suas decisões nessas circunstâncias.

A governação mundial é um mito a que a máquina das Nações Unidas aspira. Mas é irrealizável. Os equilíbrios de poder entre os países, e muitas vezes o jogo de soma zero nestes equilíbrios, não deixaram de ser a matriz pela qual o mundo continuará a pautar-se.

Um país como Portugal, membro da União Europeia, mas pobre, pequeno e periférico, continuará a seguir as decisões ali tomadas. Que, por sua vez, dependem da vontade ou dos impulsos do eixo Berlim-Paris nas questões relevantes. Ao retirar Londres da equação, o Brexit foi desfavorável a países como o nosso. Temos uma capacidade limitada de influência, e continuaremos a tentar levar para as mesas de Bruxelas – e das grandes capitais – o possível peso de uma política externa global para um país da nossa dimensão. É um dos nossos activos também na União Europeia.

E os portugueses no meio disto tudo?

Bombardeados desde o início da pandemia com informação por vezes contraditória, por vezes desencontrada, para os portugueses o que parece estar em causa são expectativas em relação ao futuro. E como uma das economias mais abertas da Europa, a realização de expectativas depende de decisões internas e externas. It takes two to tango.

Provavelmente os portugueses irão rever-se no que já dizia Santo Agostinho no século V: ”o temor abomina o insólito e o inesperado, e procura garantir segurança.”

 

Notas finais - Pandemia e Ucrânia

1. Esta análise foi escrita em Setembro de 2021,no quadro da minha participação no Gabinete de Diplomacia da Saúde da Ordem dos Médicos, e por iniciativa e convite do Sr. Dr. Francisco Pavão, coordenador daquele Gabinete. Foi publicada no livro “Diplomacia e Saúde Global”, distribuído em Julho de 2022, numa edição conjunta da APAH-Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, das Edições Almedina, da Ordem dos Médicos e do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (Capítulo “Reflexões Pós-pandemia”, com o título “Globalização e Governação Mundial – O Diagnóstico de Santo Agostinho”, páginas 21 a 32).

Nos 10 meses que passaram desde então creio que:

– as considerações feitas sobre os efeitos da pandemia não perderam actualidade, embora possam ter conduzido a uma percepção do acentuar de algumas circunstâncias e ao correspondente abrandamento de outras;

– como sempre sucede com o passar do tempo e a um regresso a análises que procuravam delinear consequências mais imediatas;

– as razões invocadas a montante continuariam a ter a actualidade então esperada;

– a jusante, a pandemia reflecte-se e projecta-se ainda na geopolítica, na economia, nas fracturas sociais, nas diferenças entre países, na procura de equilíbrios entre poderes, aproveitando as margens e as incertezas da covid;

– hesitações no plano sanitário, dúvidas sobre as variantes, diferentes projeções geográficas e vacinas por vezes ineficazes continuam a fazer parte do quotidiano que se encontra também no plano internacional;

– entretanto, o conflito na Ucrânia viria a retirar a pandemia dos focos da actualidade e das preocupações dos governos;

– mas, sobretudo, e para o que aqui interessa, veio acentuar, por vezes a reordenar, outras vezes a precisar, tendências já implementadas na globalização e em diversas visões de governação mundial.

 

2. A situação actual é assim tributária, em simultâneo, da pandemia com novos surtos e variantes, e da guerra na Ucrânia. Desde finais de Fevereiro com continuadas operações militares russas e ucranianas e a implicação de países ocidentais e “like minded” em múltiplos planos.

E com respostas assimétricas consoante as geografias, a intensidade sanitária, as posições face ao horizonte bélico.

Enquanto na Europa e na América do Norte os confinamentos e as restrições à mobilidade iam desaparecendo, a política de “covid zero” da China levou a encerramentos temporários de grandes cidades (Shanghai, Beijing, Shenzhen), e mesmo de Macau. Os países do Sul (África, América Latina, alguns da Ásia) continuaram com as deficiências conhecidas nas tentativas de eliminar o vírus. Com repercussões, principalmente económicas e sociais, também diferentes.

O conflito no leste europeu iria igualmente conduzir a diferenciações nas opções políticas e a acelerar movimentos que a pandemia continuava a provocar. Acentuou as reversões iniciadas com a covid.

No plano económico, a inflação e a dependência energética vieram agravar a situação com a utilização da energia como arma política de pressão, como sucede, por vezes, desde 1973. A par com a produtividade, a subida das taxas de juros pelas principais instituições (FED, BCE, BoE), o termo da compra de dívida pública (“quantitative easing”) sem uma definição clara de possíveis excepções, a paridade euro-dólar, as restrições logísticas e das cadências das cadeias de abastecimento globais, a crise alimentar que afecta, sobretudo, o Médio Oriente e a África. Sem excluir os custos com os refugiados, o apoio financeiro aos diferentes orçamentos ucranianos, as expectativas do custo da putativa reconstrução daquele país e da sua adesão à União Europeia. E o efeito “boomerang“ das sucessivas sanções decretadas contra a Rússia, que afectam indiscriminadamente.

Embora não se antecipe, nem se exclua, uma recessão, as previsões anunciam quedas de indicadores económicos para o próximo ano. E o adiamento dos “green deals”, do empenho no combate às alterações climáticas.

 

3. As consequências, nas esferas política e social, são contemporâneas com a crise económica: aumenta a diferenciação social, a resposta dos eleitores tende a castigar os executivos em funções.

A turbulência geopolítica desfavorece os países do Sul, que numa percentagem significativa se abstiveram de tomar posição no conflito ucraniano nas votações nas Nações Unidas.

Mas afecta também a Europa. O desenho de estratégias europeias é ultrapassado pelas excepções. Com o protagonismo da Comissão Europeia por vezes a exceder os Tratados, o eixo Berlim-Paris afectado por razões internas nos dois países, o centro e o leste europeus a procurar fazer prevalecer os seus interesses imediatos e estratégicos. Acentua-se alguma fragmentação na União Europeia.

Noutro registo, a clara opção pela Aliança Atlântica como consequência do conflito poderá conduzir a maior realismo nos diversos ângulos de uma indefinida autonomia estratégica europeia. E ainda em alguma contenção nos projectos de uma defesa europeia independente, com contornos pré-definidos por alguns Estados. Contornos, porventura, desfavoráveis a nações que são europeias e atlânticas como Portugal.

A recuperação política e económica da pandemia e do conflito dependerá das suas evoluções e dos traços que deixarem.

Há quem defenda que a pandemia poderá vir a ser, com o tempo, uma endemia. Um novo normal.

A situação na Ucrânia, com as operações em curso sem um final hoje previsível, poderá conduzir a diferentes cenários (soluções militares, acordos de paz, congelamento, status quo ante). Mas, para além de cessar-fogos e possíveis acordos sobre estatutos de diferentes territórios ucranianos, serão as futuras linhas da segurança europeia (uma nova OSCE?) que irão contribuir para a amplitude estratégica, política e económica da recuperação.

Ou conduzir a novas circunstâncias. Sem tempos nem formatos ainda determinados.

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2022-12-01
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Embaixador

António Manuel de Mendonça Martins da Cruz

Foi Ministro dos Negócios Estrangeiros em 2002 e 2003 e Assessor diplomático do Primeiro-Ministro Cavaco Silva durante dez anos (entre 1985 e 1994). Foi ainda Embaixador de Portugal na OTAN e na União Europeia Ocidental, em Bruxelas, e Embaixador de Portugal, em Madrid.

É Embaixador de Portugal, desde 1995.

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by COM Armando Dias Correia