A invasão da Ucrânia, na visão estratégica da Rússia, era suposta estar concluída em três a quatro dias, contudo, vai no seu quarto mês sem um fim à vista. A situação é complexa, a Rússia, após a incapacidade da tomada de Kiev, supostamente o seu “End State”, efetuou uma mudança do objetivo estratégico, para um objetivo mais limitado, na tentativa de tomada de posse da região de Dombas, incluindo as províncias de Donetsk e Luhansk.
No princípio de junho, de acordo com as informações disponíveis nos campos de batalha, o conflito atingiu um impasse. As informações sobre o desenrolar da guerra são ainda escassas, contudo, já é possível ter uma ideia mais explícita como, ao nível operacional e tático, as operações estão a decorrer. Este artigo debruça-se fundamentalmente sobre o desenvolvimento das operações aéreas, das informações, aqui tratados como “Intelligence” e das comunicações dos dois contendores. A análise é feita numa perspetiva inicial e redutora da realidade da guerra aérea, baseada em informações de revistas especializadas e pela minha longa experiência no planeamento de operações aéreas. A história completa e detalhada deste conflito terá logicamente de ser feita mais tarde.
A narrativa e os argumentos da Rússia, nomeadamente do presidente Vladimir Putin, sobre a fundação da Ucrânia, ao afirmar que a Ucrânia e a Rússia sempre foram “um e o mesmo”, são falsos argumentos não fundamentados em dados históricos. Putin não foi pioneiro na manipulação da história da Rússia e da Ucrânia, no século XVII, as batalhas entre as forças russas e os cossacos ucranianos, sobre o destino de Kiev, deram origem a um dos textos mais influenciadores da história da Rússia Imperial pré-moderna. Foi o primeiro livro publicado sobre a História da RUS, em 1669, num lugar quase místico “Cave Monastery”, sobre a supervisão de Innokentiy Gizel, o superior do mosteiro. Este texto foi efetivamente a fundação do mito, ainda hoje aceite como a origem da nação russa a partir da “Kiev Rus”.
Embora a Ucrânia só seja independe há 31 anos, tem, contudo, uma história muito rica que remonta muitos séculos atrás. Aquilo que hoje conhecemos como a Ucrânia foi palco da narrativa de impérios que governaram o território durante séculos.
A história da Ucrânia começou com Volodymyr, um líder, quase envolto numa lenda, que vem desde a idade média. Volodymyr era descendente de cavaleiros nórdicos e mercadores da Escandinávia, filho de Sviatoslav, o governador de Kiev Rus, referido na história como o último Viking. Volodymyr foi o fundador do primeiro proto-estado na zona de Kiev, nos fins do século X. Embora um estado fraco, constituía um largo reino, conhecido como “Kiev Rus” e que se estendia à Bielorrússia, parte do Noroeste da atual Rússia e grande parte da Ucrânia, o termo Rus foi introduzido pelos vikings nos séculos X e XI. Volodymyr foi também o responsável por construir as raízes espirituais, convertendo o seu reino à religião Cristã Ortodoxa.
Embora russos e ucranianos concordem na importância de Volodymyr na sua história, contudo, discordam totalmente com o acontecido depois do seu reino se ter desintegrado em vários principados, durante os séculos XI e XII. No século XIII, os territórios da Ucrânia e da Rússia foram tomados pelos Mongóis, no reino de Batu Kan. Pelos relatos históricos da Rússia, a população, e com isso, a verdadeira cultura Rus, fugiu da violência, tendo-se dirigido para nordeste, para Moscovo e Novgorod. Contudo e por outro lado, os ucranianos argumentam que a cultura Rus manteve-se alinhada na Ucrânia e o que aconteceu em Moscovo foi uma tradição distinta e separada. Uma verdade insofismável, já Kiev era uma metrópole ainda Moscovo não passava de uma aldeia.
Com a invasão mongol a desmoronar-se durante o século XIII, o território da atual Ucrânia foi absorvido pelo Ducado da Lituânia e pelo reino da Polónia. O termo Ucrânia só aparece, pela primeira vez, durante o século XVI. A Rússia só entrou na equação da Ucrânia em fins do século XVI. As revoltas do Cossacos ucranianos na zona do rio Dnieper, levou ao enfraquecimento do reino da Polonia-Lituânia. Depois de uma longa guerra com a Polónia, a Rússia finalmente anexou a Ucrânia, em 1686. Desde essa altura, a Ucrânia sempre fez parte da Rússia, a partir de 1917, da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) (Plokhy, 2017).
Pelos “Belovezh Accords”, ratificados pelo “Supreme Soviet of the Russian SFSR”, em dezembro de 1991, a URSS deixou legalmente de existir, o que conduziu à independência da Ucrânia.
Em 1991, a Ucrânia herdou o terceiro maior arsenal nuclear do mundo, como resultado do colapso da União Soviética. Com a firme intenção de desnuclearizar a Ucrânia foi assinado em Budapest, em dezembro de 1994, pelos Estados Unidos da América (EUA), a Federação Russa e o Reino Unido, o “Memorandum on Security Assurances in connection with Ukraine’s accession to the Treaty on the Non-Proliferation of Nuclear Weapons“.
Os pontos 1 e 2 do memorando eram bem elucidativos das garantias dadas à Ucrânia em troca da desnuclearização.
Ponto 1. “... os EUA, a Federação Russa e o Reino Unido, reafirmam o seu compromisso para com a Ucrânia, de acordo com os princípios do “CSCE Final Act”, de respeitar a independência e a soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia...”.
Ponto 2. “... os EUA, a Federação Russa e o Reino Unido, reafirmam a sua obrigação de se abster da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política da Ucrânia, e nenhum do seu armamento será alguma vez empregue contra a Ucrânia, exceto em defesa própria ou caso contrário, de acordo com a Carta das Nações Unidas...”.
Em 1997, é assinado um tratado entre a Federação Russa e a Ucrânia, o “Treaty on Friendship, Cooperation, and Partnership”, onde era fixado o princípio da parceria, o reconhecimento da inviolabilidade das fronteiras existentes e o respeito pela integridade territorial.
Nos fins de 2021, a Rússia reúne um exército de cerca de 190 mil homens junto as fronteiras sul e leste da Ucrânia, depois de um período muito tenso a Rússia começa a grande invasão do território ucraniano, no dia 24 de fevereiro de 2022, em três eixos principais, pelo norte, em direção de Kiev, no leste, na zona de Dombas, e no sul. Contrariamente ao que era expectável, as forças militares ucranianas, ao fim de mais de três meses de combates, continuam a resistir de forma notável e corajosa perante a esmagadora capacidade das forças militares russas.
A aplicação do Poder Militar ao longo dos últimos 100 anos pode ser classificado em três fases fundamentais: A Guerra de Apoio-Industrial e uma Guerra Económica (II Guerra Mundial – WW2). A Guerra de Apoio-Comando e uma Guerra de Controlo (Iraque “Desert Storm”); A Guerra Assimétrica:
– A Guerra de Apoio-Industrial é caraterizada pelo emprego intensivo e massificado de ataques terrestres e aéreos contra os centros industriais e respetiva população do inimigo, enquanto centros de gravidade.
– A Guerra de Apoio-Comando e Controlo procura a paralisia estratégica, através de ataques diretos aos sistemas de comando e controlo do inimigo.
A Rússia, depois de um período muito conturbado, no pós dissolução da URSS, elaborou, em 2013, um documento sobre a nova doutrina, que ficou conhecido pela “Doutrina Gerasimov”, do General Valery Gerasimov. A doutrina assenta no desenvolvimento das táticas do tempo da era soviética, misturadas com o novo pensamento militar sobre a guerra total. O documento refere que as regras da guerra tinham mudado, os meios não exclusivamente militares assumem uma nova importância, em muitos casos podem suplantar o emprego e a eficiência do poder militar, contudo, acrescentava que todas estas medidas seriam completadas pelos meios militares. O documento elabora sobre a necessidade de uma mais intensa cooperação entre os militares a comunidade científica e era bem notório o reconhecimento da inferioridade tecnológica militar da Rússia em relação aos países ocidentais.
Na sua essência, esta doutrina seria um novo tipo de guerra híbrida, contudo, teremos de ser cuidadosos, pois a Rússia tem um pensamento estratégico e operacional diferente do ocidente, para eles o termo “híbrido” refere-se aos meios e não aos princípios, objetivos e mesmo a natureza da guerra. Ao contrário do pensamento dos americanos, que chamam este novo tipo de guerra a “next generation warfare”, identificada como “fourth generation warfare”, sendo caraterizada na sua essência, por ser mais fluída, descentralizada e assimétrica. Contudo, a realidade veio demonstrar que as guerras convencionais continuam a existir de facto, como é o caso guerra da Ucrânia, e que, com o desenvolvimento da tecnologia assiste-se cada vez mais a uma utilização intensa de armas guiadas de alta precisão.
Ao fim de mais de três meses de conflito, apesar de equipamento militar mais sofisticado e múltiplas vantagens “no papel”, a Rússia falhou estrategicamente, operacionalmente e taticamente na Ucrânia. O seu avanço foi neutralizado e travado por assunções de planeamento defeituosos, um TEMPO operacional (TEMPO aqui definido pela razão de avanço e ritmos das operações militares ao longo do tempo, com respeito ao inimigo) pouco realístico, péssima logística, proteção da força insuficiente e uma liderança pobre. Constata-se também que a invasão da Rússia na Ucrânia foi a mais descarada e ilegal guerra conduzida por um estado soberano contra outro estado soberano e independente, desde a WW2. A guerra foi iniciada por uma invasão, em clara e evidente violação das obrigações expressas na Carta das Nações Unidas (NU), que, no seu artigo 2, proíbe o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer estado soberano. A URSS foi um dos membros fundadores das NU, em 1945. Há uma avassaladora evidência que as forças militares russas estão cometendo, quase diariamente, crimes de guerra. Estes crimes de guerra estão em evidente violação das normas expressas na Convenção de Genebra e nos seus Protocolos Adicionais, nomeadamente ataques contra as populações indefesas, ataques contra hospitais e escolas e pela utilização da força desproporcionada. A URSS e a Rússia, de acordo com os “Belovezh Accords”, é signatária da Convenção, desde 1960.
Embora com o desenvolvimento de novos conceitos doutrinários, estratégicos e operacionais, na forma e no método da condução da guerra, pelos indícios conhecidos até ao momento, parece que as forças russas combatem com doutrina e conceitos operacionais não muito diferentes daqueles empregues durante a WW2 e a segunda metade do século XX, fundamentalmente conduzem uma “Guerra de Apoio-Industrial”. Continuam a empregar formações terrestres massificadas sem uma correta utilização do seu Poder Aéreo. Continuam a utilizar em larga escala armamento de não precisão, que provocam danos indiscriminados nas populações. A maioria dos seus sistemas de armas estão obsoletos e não dispõem de modernas tecnologias, isto resulta provavelmente na falta de músculo financeiro para a pesquisa e desenvolvimento, nomeadamente nos aspetos tecnológicos, os quais a Rússia não domina. Há registos que a Rússia não dispõe de stock de armas de precisão suficiente para a guerra, nomeadamente bombas guiadas, mísseis e mísseis de cruzeiro, acabando maioritariamente pelo emprego de munições não guiadas. Notícias não confirmadas afirmam que a Rússia terá consumido, nos três meses iniciais da guerra, entre 60% a 70% do seu arsenal de armamento de precisão, esta evidente falta de munições de precisão forçou a Força Aérea Russa à utilização intensiva de “dumb bombs” (bombas não guiadas), por definição, menos precisas e mais atreitas a danos colaterais.
Um dos mais importantes desenvolvimentos da história da guerra no século XX foi indubitavelmente o aparecimento do armamento de precisão, o novo tipo de arma que que pode ser apontada e dirigida contra um simples alvo, dependendo de guiamento externo ou no seu próprio sistema de guiamento, podendo ser lançadas de aeronaves, de navios, submarinos e veículos terrestres, ou mesmo por soldados individualmente (Hallion, 1995). Durante a Operação aliada “Allied Force” no Kosovo, em 1999, foram largadas cerca de 28 mil toneladas de bombas, das quais 50% foram de armamento de precisão (Cruz, 2019). Em 2003, na Operação “Operation Irak Freedom”, cerca de 68% do armamento largado foi de precisão (Tirpak, 2003). As guerras da última geração mostraram inequivocamente que as munições de precisão transformaram radicalmente a noção de gerir as campanhas militares, nomeadamente as campanhas aéreas. A Rússia não aprendeu as lições dos modernos conflitos.
Pelo contrário, as forças militares da NATO e dos EUA, há muito que evoluíram para uma Guerra de Apoio-Comando e Controlo, através da utilização de modernos sistemas de armas, dotados de sofisticada tecnologia. O armamento é na sua maioria de precisão, mais dispendioso, mas muito mais efetivo e com menores danos colaterais, nomeadamente sobre as populações civis.
Em 2014, durante a invasão da Crimeia, as forças russas praticamente não encontraram resistência das forças ucranianas, estas eram, à altura, forças mal treinadas e onde grassava a corrupção. Ao decidir a invasão da Ucrânia em 2022, a Rússia assumiu erradamente que as forças ucranianas não apresentariam qualquer resistência, puro engano. As forças militares ucranianas, com uma enorme coragem e profissionalismo, conseguiram deter o avanço dos russos, quando estes se aperceberam que os seus objetivos não iriam ser como inicialmente previstos, as suas forças estavam dispersas numa área considerável e em muitos casos com graves problemas logísticos.
Por uma defeituosa análise estratégica, a Rússia descobriu que, ao contrário do assumido, as forças militares ucranianas tinham sofrido uma enorme transformação nos últimos oito anos, graças a uma reorganização e grandes reformas e, talvez o mais importante, biliões de US $ da assistência de segurança do ocidente. Neste período de tempo, as forças armadas da Ucrânia cresceram de cerca de 6 mil homens, prontos para combate, para cerca de 150 mil. (Bronk, 2022).
O planeamento estratégico e operacional da Rússia para a invasão da Ucrânia foi um completo fracasso. Mas, talvez o maior descalabro tenho sido a sua Força Aérea. Uma campanha aérea completamente desconexa, sem objetivos definidos e uma total falta de coordenação com as forças terrestres. Como escrito anteriormente, a Rússia continua a basear as suas operações no emprego de forças terrestres massificadas sem o apoio do seu Poder Aéreo.
A moderna doutrina da NATO e dos EUA, baseada no conceito da “Guerra de Apoio-Comando e Controlo”, doutrina fundamentada nos pensamentos dos americanos John Boyd e Jonh Warden, aponta para numa fase inicial do conflito, a necessidade de uma campanha aérea com o claro objetivo de neutralizar e incapacitar o sistema de defesa aérea do inimigo, através de ataques aos meios aéreos e suas infraestruturas, radares e centros de comando e controlo, criando uma situação aérea favorável para diminuir as ameaças aéreas contra as forças invasoras. Nada disto foi planeado ou executado pela Força Aérea Russa, passados quase quatro meses desde o início da guerra, embora a Força Aérea Ucraniana esteja de alguma forma enfraquecida, continua, no entanto, a constituir uma forte ameaça ao avanço das forças terrestres russas. A Rússia é, por tradição, um Poder Terrestre que dispõe reservas massivas de soldados ao seu dispor, filosoficamente não existe um pensamento para o emprego do Poder Aéreo de forma criativa e inovadora. A Rússia nunca compreendeu o emprego do Poder Aéreo para lá do apoio às suas forças terrestres. Como afirmou o general americano David Deptula “... como resultado, a Rússia em todas as guerras, nunca concebeu o planeamento de uma campanha aérea estratégica...” (O´Brien, Stringer, 2022). A Rússia não aprendeu, ou não esteve interessada, nas lições do emprego do Poder Aéreo nos últimos conflitos, nomeadamente na Operação “Desert Storm”, no Iraque, em 1990 (Cruz, 2019).
A história recente demonstra que, nas guerras modernas, o Poder Aéreo é decisivo, mas muito difícil de ser exercido efetivamente. A aviação militar é dependente de um enorme conjunto de tecnologias que necessitam de pessoal altamente treinado para manter operacionais toda a gama de aviões, respetivos equipamentos e sensores, assim como outros meios aéreos de apoio, assemelhando-se a um ecossistema militar: aviões radar para fornecer comando e controlo, caças para a proteção e patrulhamento dos céus sobre as áreas de operação, aviões reabastecedores, aviões de guerra-eletrónica para a supressão das defesas inimigas, aviões para recolha de informações, e logicamente aviões de ataque para localizar e destruir as forças inimigas. Todo este conjunto de aeronaves de operações combinadas, é uma espécie de ballet coreografado, que necessita de intensos treinos para ser aprendido e compreendido. Mas, efetivamente, se conduzidos corretamente, permitem o controlo do ar, tornando a vida das forças terrestres muito mais fácil.
Infelizmente para os russos e felizmente para os ucranianos, a suposta modernização recente das forças aéreas russas, embora a intenção fosse a conduta de operações combinadas, acabou por se verificar que não passavam de “show off”. Os russos desperdiçaram dinheiro e esforços, fundamentalmente em ineficiência e corrupção. Verifica-se que, apesar da modernização a Força Aérea Russa, continua a sofrer com uma logística defeituosa de e uma falta de treino realístico e regular dos seus pilotos. Acima de tudo, o sistema autocrático vigente, tanto político como nos escalões militares mais elevados, não confiam nos oficiais dos escalões intermédios e mais baixos, não permitindo um processo de decisão inovador e flexível, tão natural para as forças aéreas da NATO (O´Brien, Stringer, 2022).
Uma das maiores surpresas da fase inicial da invasão foi a incapacidade da “Russian Aerospace Forces – VKS “ (Força Aérea Russa), nomeadamente da sua aviação de caça e de bombardeamento, em estabelecer um superioridade aérea, ou projetar significativo apoio aéreo para as forças terrestres. Nos primeiros dias da guerra, depois do ataque inicial russo com mísseis de cruzeiro e mísseis balísticos, seria expectável um ataque em grande escala de operações aéreas, contudo, isso não se materializou. Numa primeira análise, tal, talvez tenha resultado de dificuldades em desconflituar as operações aéreas com as baterias SAM (surface air missiles), uma falta de munições de precisão e um número limitado de pilotos com experiência em ataques em apoio das forças terrestres. Estas limitações resultam, em parte, do baixo número de horas disponíveis para o treino desses mesmos pilotos. Contudo, mesmo sendo esses fatores verdadeiros e relevantes, não são suficientes para explicar o comportamento anémico da VKS. É notório, devido à inexistência de doutrina conjunta, à falta de coordenação, treino e uma enorme desconfiança das forças terrestres na sua Força Aérea, uma total incapacidade da VKS de operar em ambientes conjuntos e de elevada complexidade.
A maioria dos pilotos russos voa cerca de 100 horas por ano e, em muitos casos, menos do que isso, não dispõem de simuladores para treinar e praticar táticas avançadas em ambientes complexos. É bem evidente que a as horas voadas pelos pilotos russos são significativamente menos valiosas na preparação de operações aéreas complexas, quando comparadas com o treino dos pilotos da NATO (Bronk, 2022).
A operação da Força Aérea Russa é fortemente dificultada pela obsolescência das suas aeronaves, dos seus sensores e dos seus sistemas de armas. Na maioria das vezes, os pilotos têm grande dificuldade em localizar e atacar rapidamente os alvos no terreno, é frequente que os mísseis lançados pelos russos falham os alvos. As missões dos aviões russos são limitadas, normalmente em parelhas e muitas das vezes apenas uma aeronave, quase sempre de noite para minimizar a ameaça dos “manpads” ucranianos.
Embora a Força Aérea Ucraniana esteja debilitada, continua a ser uma formidável ameaça para a aviação tática russa, em parte devido ao tremendo influxo de mísseis antiaéreos portáteis (manpads), “stinger” e “starstreak”, fornecidos pelos aliados, nomeadamente americanos e britânicos. Estes tipos de armamento são efetivamente “game changers”, aqui visto como um sistema de armas que pode radicalmente mudar o curso da guerra. As nações aliadas têm vindo a fornecer à Ucrânia modernos sistemas de armas, tecnologicamente muito sofisticadas, que vão ter um efeito no decurso do conflito, como são o caso dos já citados “stingers” e “starstreak” e os drones “switchblade”. É importante referir que as Forças Armadas Russas não aprenderam com os seus próprios erros, nomeadamente no conflito do Afeganistão, entre 1979 e 1989, onde os mísseis “stinger” provocaram baixas massivas entre a aviação tática soviética. Curiosamente, o mesmo tipo de míssil, agora numa versão muito mais sofisticada, que tantas baixas causou há cerca de trinta anos atrás.
Este conflito tem assistido, talvez pela primeira vez numa guerra convencional, à utilização de drones, aqui tratados pela sigla técnica de UAV – Unmanned Aerial Vehicle (veículo aéreo não tripulado), por ambos os contendores. As operações com os UAV não divergem muito daquelas executadas por aeronaves tripuladas. Incluem plataformas aéreas, pilotos e operadores disciplinados e profissionalmente competentes, necessitam de manutenção e apoio logístico. Em ambos os sistemas, o treino intenso é fator fundamental para o sucesso das operações. Uma das principais diferenças e vantagens sobre as aeronaves tripuladas reside na capacidade dos UAV operarem em cenários de alto risco, sem colocarem em perigo a vida dos tripulantes. Pelas suas capacidades específicas, os UAV tem sido fundamentalmente empregues em missões de vigilância nos conflitos assimétricos (Cruz, 2019).
Na Guerra da Ucrânia, estes UAV têm sido empregues maioritariamente nas missões de reconhecimento em proveito das forças terrestres e com algum sucesso. As forças ucranianas têm vindo a empregar alguns UAV na missão de ataque com os chamados UCAV – Unmanned Combat Aerial Vehicle, nomeadamente o UAV turco “Bayraktar TB2”, este UAV pode ser equipado com 4 mísseis MAM-C/L com guiamento laser. A efetividade destes UVA na sua missão de ataque é relativamente pouco efetiva, devido à pequena carga explosiva do míssil. Os americanos forneceram à Ucrânia cerca de 700 mini drones “switchblade”, altamente sofisticados. Os “switchblade” também conhecidos por Kamikaze, são drones suícidas, totalmente autónomos, capazes de perseguir os alvos e depois atacá-los. A utilização de UAV nos conflitos convencionais é uma nova realidade a ter em conta em conflitos futuros. (Brosbst, Bowman, 2022).
No início de março, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskyy, apelou para a implementação de uma “No-Fly Zone” (zona de exclusão aérea) sobre a Ucrânia. Era compreensível as razões de tais intenções perante as ameaças a que as forças ucranianas e populações estavam sujeitas, particularmente da aviação tática russa.
A definição de uma “No-Fly Zone” é técnica e um pouco complexa, não é simplesmente dizer ou afirmar que vamos implementá-la, é efetivamente muito mais. Tem que haver a vontade de utilizar a “força” contra quem a violar. Outro aspeto muito importante, no caso em apreço, ao implantar uma “No-Fly Zone” sobre a parte Leste da Ucrânia, e se aviões de uma coligação ou da NATO fossem impor que ela não fosse violada, então teriam que ser destruídos todas aqueles que a tentassem violar ou pôr em risco os aviões que a estavam a aplicar. Para tal, poderia haver a necessidade de atacar alvos dentro do território russo, com as consequências gravosas que isso pudesse significar (Mackinnon, 2022).
Depois, para implementação de uma “No-Fly Zone” sobre a Ucrânia, em princípio, deveria ser necessário um mandato da Nações Unidas através de uma UNSCR (Resolução do Conselho de Segurança), como aconteceu em crises anteriores. Como exemplo, a UNSCR 688 de 1991, onde foi autorizada a implementação de “No-Fly Zone” sobre o Norte do Iraque (Operação “Provide Confort”); a UNSCR 786 em 1992, onde foi autorizada a implementação de “No-Fly Zone” sobre a Bosnia-Herzegovina (Operação “Deny Flight”). Muito dificilmente este mandato seria autorizado pela Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde a Rússia tem direito de veto. A maioria dos países aliados recusou, e bem, tal hipótese, por poder ser um risco elevado para a escalada do conflito e pela quase impossibilidade da aprovação de um mandato pelas NU.
Antes do começo da invasão pelas Rússia, os EUA, o Reino Unido e alguns países europeus, forneceram “intelligence” sobre a provável invasão russa, permitindo às forças ucranianas preparar e treinar atempadamente a sua defesa.
Poderá inferir-se que os serviços de “intelligence” russos apoiaram a visão de Vladimir Putin sobre a Ucrânia, como um estado pronto para ser absorvido. Como resultado das notórias falhas de informação e análise, o presidente russo, em abril, despediu mais de 150 oficiais do “Federal Security Service”, incluindo o seu chefe o general Sergei Beseda.
Por outro lado, a segurança das comunicações militares russas parece ser também um enorme falhanço, na previsível e esperada curta campanha. Notícias confirmam que as comunicações no campo de batalha funcionam deficientemente, ou mesmo não funcionam, nomeadamente aquelas tecnologicamente mais sofisticadas, particularmente os rádios criptografados. Como resolução, os russos tiveram de recorrer a soluções transitórias como a utilização de rádios não criptografados ou a telefones celulares comerciais, facilitando a interseção das comunicações pelos serviços uraniamos.
As falhas das comunicações russas permitiram aos ucranianos uma enorme vantagem através da detecção e localização das emissões rádio da RuAF (Russian Armed Forces), e assim encontrar, designar e atacar essas forças, cineticamente, isto é, com armamento convencional, ou eletronicamente.
O uso seletivo do Poder Aéreo ucraniano e a generalizada integração de ”intelligence” e informações de reconhecimento ao nível tático têm sido a chave para a capacidade para deter uma força invasora numericamente superior. A posterior análise histórica do conflito irá certamente demonstrar o sucesso das forças de defesa ucranianos em contraste com as falhas das forças russas. Estou certo que este conflito, nos aspectos de “intelligence”, irá ser uma fonte de lições apreendidas para os serviços de “intelligence” ocidentais.
Os serviços de informação americanos têm sido de enorme ajuda, fornecendo rapidamente, e muitas das vezes em tempo real, a detecção e localização das forças militares russas, através de reconhecimento por satélite, incluindo satélites comerciais e pela utilização de voos de reconhecimento, com sensores altamente sofisticados, voando nas fronteiras da Polónia e da Roménia com a Ucrânia.
Tem acontecido com alguma frequência, durante os ataques da aviação russa a bases ucranianas, verificam que os aviões da Força Aérea Ucraniana já lá não estão, em tempo, avisados dos ataques aéreo, pelos serviços de informação americanos (Abdalla 2022).
A Rússia não dispõe de uma indústria tecnológica forte. Durante a invasão da Ucrânia tem-se verificado que a maioria dos sistemas de armas envolvidos na guerra são maioritariamente obsoletos e a sua manutenção é deficiente. Com milhares de veículos militares, helicópteros e aviões destruídos pelas forças ucranianas, uma das principais questões dos planeadores militares russos é como irão produzir novos equipamentos ou mesmo adquirir peças sobressalentes, quando as sanções impostas impedem a importação de peças necessárias, nomeadamente semicondutores, microeletrônica e chips, equipamentos que a Rússia não dispõe nem tem capacidade tecnológica para os produzir. Reportes de especialista estrangeiros demonstram que a maioria dos equipamentos mais modernos utilizados nesta guerra estão fortemente dependentes da importação destes componentes do estrangeiro, nomeadamente dos EUA, do Reino Unido, Alemanha, França, Holanda, Japão, Israel, China e da Formosa. Este nível de dependência provavelmente significa que a capacidade da Rússia aprovisionar mísseis e outras sistemas de armas mais sofisticados, empregues ou destruídos no conflito, serão fortemente reduzidos no curto prazo e, em muitos casos, efetivamente impossível.
No início da invasão, a Rússia utilizou em larga escala os seus mísseis de longo alcance mais modernos, os mísseis de cruzeiro “Kalibr” e os SRBM “Iskander-M”. Entretanto, os serviços de informação americanos reportam que os russos diminuíram consideravelmente o emprego deste tipo de mísseis em favor de gerações de mísseis com tecnologia analógica, isto demonstra que estão a ficar “curtos” em termos dos modernos, sistemas de armas com guiamento de precisão. Apenas como exemplo, o míssil de cruzeiro “Kalibr”, fabricado pela empresa russa “Novator”, tem no seu sistema de guiamento cerca de 70% de componentes importados (Johnson, 2022).
Pode parecer caricato ou mesmo anedótico, informações da “intelligence” ucraniana confirmam que foram encontrados em sistemas de armas russos, destruídos ou abandonados, chips utilizados em frigoríficos e máquinas de lavar loiça, como forma de resolução da efetiva falta de componentes eletrónicos, resultado das sanções.
O mundo não é justo, a história é um contínuo de guerras, intercaladas com períodos de paz, mais ou menos longos. Com a guerra num impasse operacional, será a hora para a diplomacia entrar no “terreno” e acabar com esta orgia de violência, de crimes de guerra horrendos e, em alguns casos, a roçar o genocídio. Os caminhos da paz são sinuosos e difíceis, são sempre objeto de cedências e concessões, mas a paz é sempre menos dolorosa do que a guerra.
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Foi professor no Instituto de Altos Estudos da Força Aérea, chefiou a Divisão de Planeamento Estratégico Militar no Estado-Maior General das Forças Armadas.