1. Introdução
O tema que me foi proposto tratar - “As Forças Armadas como instrumento da acção do Estado” - é, quanto a nós, algo que não necessita de fundamentação, já que elas são um atributo da própria soberania. De facto, quando as Forças Armadas são apenas simbólicas ou ineficazes, ou quando não detêm o monopólio da força, dificilmente podem ser utilizadas na acção do Estado, como foi evidente este ano no Líbano e em Timor-Leste que, por isso, são Estados com soberanias altamente limitadas, e que necessitam do apoio de forças militares internacionais para sobreviver.
Por esta razão - a indispensabilidade das Forças Armadas para o Estado - não farei a argumentação da sua defesa, ainda que esta continue a ser necessária para rebater a ideia desejável, mas utópica e negada diariamente pela evidência, de após a desagregação do Bloco de Leste ter desaparecido a ameaça da guerra, ainda que se pudesse pensar que era o fim da Grande Guerra Mundial. Infelizmente, nem mesmo este cenário pode ser liminarmente afastado.
Optei, sim, por lembrar duas intervenções militares das quais fui testemunha e, até certo ponto, participante - a intervenção de Portugal na Bósnia-Herzegovina, no âmbito da NATO, e a intervenção em Timor-Leste, no quadro das Nações Unidas - e delas procurar extrair alguns ensinamentos e despertar algumas reflexões.
Detendo as Forças Armadas o monopólio da violência organizada no interior do Estado, elas justificam-se naquilo para que existem e são treinadas, que é a sua capacidade para combater. E não é descabido sublinhar esta afirmação, porque há pouco tempo ouvimos uma destacada figura da política nacional dizer que as Forças Armadas, hoje, não são para fazer a guerra mas para fazer a paz. Esta frase é, no mínimo, ambígua, porque as Forças Armadas na sua acção dissuasora ou numa atitude defensiva sempre foram uma força voltada claramente para a paz, e porque as operações de apoio à paz (OAP), hoje tão vulgares, exigem que as forças militares internacionais possam ter que fazer a guerra. Aliás, é a sua capacidade para combater que lhes dá a credibilidade de que necessitam para agir. Os cravos nos canos das espingardas são apenas símbolos fugazes de certos momentos de não-violência armada, como aquele que nos descreve Lamartine sobre a Revolução de 1848 em França, e aquele a que assistimos em 25 de Abril de 1974 em Portugal.
Mas, se é o combate que justifica a existência das Forças Armadas, elas não se esgotam aí, porque, tendo estrutura e organização; hierarquia e capacidade de comando; meios operacionais e prontidão; patriotismo e espírito de servir - podem cumprir muitas outras missões. Assim, ao pensarmos nas Forças Armadas como instrumento da acção do Estado, apesar da finalidade múltipla e variada das missões que lhe podem ser atribuídas, nunca podemos esquecer a sua participação ímpar na segurança e defesa da unidade política.
Ainda que nas intervenções exteriores das Forças Armadas não seja por vezes muito nítida a fronteira entre quando estão a participar na defesa (basta recordar que uma qualquer actuação eficaz dá credibilidade à sua acção dissuasora, que já é defesa) e quando estão em apoio da política externa do Estado sem aquele propósito, os dois casos que escolhi (Bósnia e Timor-Leste) são diferentes. O primeiro, mais ligado à defesa, não só pela proximidade geográfica, mas também pelo interesse nacional manifestado nessa participação e por ter sido utilizada a organização de defesa aliada de que fazemos parte. O segundo, mais ligado à história da colonização e da descolonização, e determinado mais pelo coração do que pelo interesse. Por esta diferença, também, pareceu-me curioso lembrar e confrontar estas duas intervenções recentes das nossas Forças Armadas.
2. Intervenção nos Balcãs
Com a morte de Tito, a perda de influência do Partido Comunista, a persistência de acentuados nacionalismos, a tendência centrípeta da Sérvia e as tensões antigas, a quimérica nação jugoslava desvaneceu-se (se é que chegou a existir) e emergiram as diferenças religiosas e as velhas tensões e disputas, com toda a violência a elas associadas e que até então tinham estado contidas. O ódio, a confrontação, a guerra e a extrema violência que as partes beligerantes demonstraram, para além da surpresa resultante de tudo isto suceder na Europa no final do Séc XX, indicavam que só um aparelho militar exterior e “musculado” poderia conseguir fazer parar as hostilidades e iniciar uma pacificação. Com efeito, esta intervenção da NATO nos Balcãs só aconteceu depois da demonstração da incapacidade dos “capacetes azuis” em controlar o conflito, tendo-se chegado ao ponto de estes assistirem, sem possibilidade de intervir por manifesta falta de força, a acções de genocídio. Esta situação levou a ONU a pedir o apoio de que precisava para cumprir o preceito (se não a filosofia) da Carta, de procurar conseguir a paz mundial, à única organização multinacional de defesa com credibilidade. Por outro lado, estando a NATO, após a implosão da URSS e o desaparecimento do Bloco de Leste, numa crise de identificação dos seus fins e interesses, este pedido das Nações Unidas dava expressão ao conceito que se ia desenhando de se dever agir mais cedo e mais longe nos conflitos emergentes, por forma a limitá-los e evitar que, alastrando-se, atingissem as nações aliadas. Não podemos esquecer que foram as tensões naquela área geográfica que, por um efeito de dominó, arrastaram as nações europeias para a Primeira Guerra Mundial e para os seus 10 milhões de mortos.
No caso vertente, respondendo afirmativamente ao pedido da ONU, as nações europeias ficavam do mesmo lado (apesar das diferenças logo verificadas quando do reconhecimento dos Estados em que a Jugoslávia se fraccionou); servia-se o propósito de obter a paz no continente europeu; aumentava a coesão dos membros da NATO, já que o “magic glue”, que fora a ameaça do Pacto de Varsóvia, desaparecera; esboçava-se, na prática, um novo conceito estratégico; e demonstrava-se a vantagem em preservar o capital de força, vontade e procedimentos que a Aiança conseguira obter ao longo de 45 anos de existência.
Numa intervenção da NATO, Portugal teria, pois, que estar presente, e as suas Forças Armadas, como instrumento da acção do Estado, deveriam participar na força que viesse a ser levantada. Apesar de entendermos quem nesta altura lembrou que só deveríamos participar se tal servisse os nossos interesses e não apenas para satisfazer grandes princípios ou solidariedades (é determinante para a decisão de intervir que o interesse nacional o justifique plenamente), a manifestação de solidariedade nesta intervenção era também a garantia do interesse nacional da nossa segurança e defesa, pois só cooperando com os aliados poderemos esperar o apoio destes quando dele necessitarmos.
Depois de se ter conseguido um difícil acordo entre as partes beligerantes, por forma a criar um quadro que permitisse a actuação da força, a nível político houve longas e difíceis conversações no Conselho da NATO, para definir o tipo de intervenção, a participação de forças exteriores à Aliança, as normas de empenhamento, e para obter a concordância com o plano militar que ia sendo elaborado. A nível militar, definiu-se a estrutura da força necessária para o cumprimento da missão previsível, ponderou-se a utilização da estrutura de comando já existente e manteve-se, a nível do SACEUR (o Comandante Supremo), um diálogo permanente com o Conselho. É conveniente lembrar que, apesar das diversas crises e problemas pelos quais a Aliança passara ao longo da sua já longa existência, esta era a sua primeira intervenção militar com forças no terreno.
Nas reuniões sobre a geração de forças que sucederam no SHAPE (Quartel-General), em Mons (Bélgica), os vários países, de acordo com os seus interesses, capacidades e disponibilidades, preencheram “à la carte” o quadro das unidades e formações consideradas necessárias, e procuraram as melhores soluções para a sua subordinação. Deste modo, foi construída a estrutura da força, incorporada a participação de países exteriores à Aliança, como a própria Rússia, e feito o plano para a sua actuação. Como se sabe, a acção da NATO conseguiu fazer parar os combates, mas não impediu o aparecimento de novos surtos de violência fora da Bósnia-Herzegovina e que obrigaram a novas intervenções. Além disso, porque as tensões antigas e as feridas recentes, resultantes dos ódios desencadeados e das atrocidades cometidas, não se esquecem facilmente, após a intervenção tornou-se necessária uma acção de estabilização, que ainda está em curso, situação que exige, dos Estados participantes com forças, um esforço militar e financeiro significativo e continuado.
3. Intervenção em Timor-Leste
Recordemos agora a intervenção militar em Timor-Leste. Depois de um longo período de quase total esquecimento da (quando não conivência relativamente à) ocupação indonésia em Timor Oriental, por parte da comunidade internacional, em que a posição da diplomacia portuguesa de não aceitação do status quo foi progressivamente obtendo menor audição e apoio, um jornalista deu a conhecer ao mundo imagens dramáticas obtidas no cemitério de Santa Cruz. A nível internacional, esta reportagem lançou interrogações sobre a legitimidade da ocupação indonésia e perturbou as consciências; a nível nacional, as imagens e o som que reproduzia, além do tiroteio, as orações da população rezando em português, causaram uma profunda emoção. Ainda que Portugal, desde 1975, nunca tivesse aceite a ocupação indonésia, a nossa diplomacia só agora encontrava um campo fértil para conseguir apoios para “a autodeterminação e independência do território”, princípio que desde 1974 sempre preconizara e que a Constituição da República consagrou de forma expressa.
A evolução da política internacional em relação a Timor-Leste, a consciência que a Indonésia adquiriu de que os tempos eram outros, as acções de destruição e intimidação das milícias pró-Indonésia e a atenção da comunicação social sobre os acontecimentos que ali ocorriam, fizeram alterar a posição dos EUA e da Austrália, e a acção mais empenhada levada a cabo nas Nações Unidas conduziu, como sabemos, a uma intervenção militar internacional.
Para além da posição oficial portuguesa, a opinião pública nacional era nitidamente favorável a uma intervenção militar. Esta posição, entrosada até com algumas pulsões belicosas, era em meu entender resultante da consciência existente sobre a forma como decorrera a descolonização, que, conforme disse Melo Antunes numa entrevista à televisão, pouco tempo antes de morrer, foi uma tragédia. De facto, não tendo Portugal, na altura, força e vontade para dar voz às populações dos territórios ultramarinos, por forma a que elas se pronunciassem sobre o seu futuro, em África entregou-se o poder aos movimentos com maior iniciativa, mais força, ou que colhiam maior simpatia na direcção política da altura. Deixámos, assim, uma ainda crónica instabilidade na Guiné, um conflito latente em Moçambique e uma longa e terrível guerra em Angola. Em Timor-Leste, depois de uma luta fratricida entre as facções políticas, a Indonésia invadiu, ocupou e anexou o território. De facto, o “legado do Império” dificilmente poderia ser pior.
Tendo o povo português, passados vinte e tal anos, noção de tudo isto, se agora se resolvesse de uma forma clara e justa o problema de Timor-Leste, podendo a população escolher o seu próprio destino, mesmo tratando-se de uma excepção em relação aos restantes territórios do antigo Ultramar, este facto seria como um urso de peluche que nos daria umas noites mais tranquilas. Apesar do enorme custo e da dificuldade que é apoiar logisticamente uma força militar a tão longa distância, Portugal esteve honrosamente presente, com um importante efectivo, na Força das Nações Unidas que procurou a pacificação do território e permitiu que se chegasse à independência.
Na segunda visita que fiz ao nosso contingente ali destacado, o General que comandava as forças da UNTAET, no final do briefing que me foi apresentado sobre a situação, perguntou-me quais eram as principais diferenças entre o momento actual (2001) e o de 1975, que ele sabia que eu ali vivera. Respondi-lhe abordando três aspectos: a situação internacional, as forças militares em presença e o ambiente em Timor-Leste.
Quanto aos dois primeiros pontos, a situação actual (2001) era completamente diferente da de 1975. Em 1975 Portugal vivia uma revolução com toda a instabilidade inerente e, em relação ao Ultramar, toda a atenção estava voltada para Angola, que iria ascender à independência em 11 de Novembro; estávamos então num mundo bipolar e para os Estados Unidos a revolução portuguesa e os movimentos “triunfantes” no Ultramar eram de inspiração comunista; a Indonésia era para os EUA um bastião anti-comunista na área, cujo valor aumentara com a retirada americana do Vietname; a Austrália, sempre receosa do potencial humano da Indonésia e tendo já a noção da importância do petróleo que começava a explorar em Timor-Leste, praticava uma política de boa vizinhança com a Indonésia, a ponto de ter calado a morte de cinco jornalistas australianos em Balibó, devido ao fogo das tropas indonésias, porque a Indonésia dizia não ter entrado em Timor-Leste; a UDT, depois da tentativa de tomar o poder em 11 de Agosto, acção em que era apoiada pela Indonésia, foi expulsa do território de Timor Oriental, então dominada pela Fretilin, que sustentava uma ideologia marxista; o Presidente dos EUA, em visita a Jakarta no início de Dezembro, “deu luz verde” à invasão, que veio a suceder no dia 7 desse mesmo mês. Em 2001 estamos num mundo quase unipolar; a opinião pública dos E.U.A. e a comunidade internacional são favoráveis à autodeterminação de Timor-Leste; a Indonésia foi obrigada a redefinir a sua política; e a Austrália continua interessada no petróleo de Timor-Leste.
Quanto à situação das forças em presença, referi apenas que hoje (2001), quando os indonésios já se tinham retirado do território, procuravam explorar em seu favor o problema dos refugiados no Cupão e haviam diminuído o apoio às milícias pró-Indonésia; quando havia ainda elementos timorenses armados (restos da guerrilha), mas estes aceitavam e desejavam a intervenção internacional - a UNTAET dispunha de cerca de 8 000 homens. Em Agosto de 1975, vivendo-se uma guerra civil entre a UDT e a Fretilin, que tinham em seu poder todo o armamento da PSP e da maior parte das unidades militares (porque, sendo estas de recrutamento local, tinham sucessivamente aderido aos dois movimentos), a Administração Portuguesa dispunha de uma vintena de militares do comando e de dois pelotões de pára-quedistas - cerca de 1% do efectivo de que as Nações Unidas agora dispunham.
Quanto ao ambiente em Timor, ao contrário da situação internacional e das forças em presença, não havia diferenças muito significativas entre o actual e o de 1975. Naquela altura os timorenses estavam divididos, mais do que ideologicamente, pelos seus regionalismos, por antigas tensões e querelas, por uma hierarquia de difícil percepção para quem não nasceu em Timor-Leste e porque a revolução de 1974 aumentara a distância entre o “mau-bere” (rural, rude, pobre, simples, inculto) e uma pseudo-elite que digeriu mal e avidamente as ideias revolucionárias e que tentava, sem preparação nem fundamento, a sua transposição para Timor-Leste. Actualmente (2001), apesar de ter surgido alguma acalmia em relação à exaltação ideológica, os antagonismos, as tensões e a propensão genética ou cultural para a violência continuam a existir e deverão manter-se no futuro. Logo, no ambiente interno timorense, as alterações são somente superficiais e, não obstante a momentânea concórdia resultante da vitória da guerrilha e da chefia unificadora e apaziguadora de Xanana Gusmão, eu não vislumbrava uma pacificação fácil e rápida.
Como sabemos, a intervenção internacional teve sucesso, mas a retirada prematura da Força das Nações Unidas fez reemergir as cisões, os descontentamentos, as ambições, as velhas tensões e a violência. E esta situação parece não dever vir a alterar-se significativamente num futuro próximo.
4. Considerações Finais
Para terminar esta intervenção, apresento algumas considerações sobre notas que julgo importantes; outras sobre a decisão de intervir; e, para finalizar, lembro um caso histórico:
a. Notas importantes
As Forças Armadas são um importante instrumento da acção do Estado e, no caso português, tem sido cada vez mais frequente a sua intervenção nas operações de apoio à paz. Desde a década de 90 até hoje, o Exército (que fornece o grosso do contingente para estas intervenções) actuou do Saara a Timor, de Angola aos Balcãs, de Moçambique ao Afeganistão, em 15 teatros de operações, com cerca de 20 000 militares.
Por razões idiossincráticas, das quais se sublinha a elevada capacidade de adaptação a diversas circunstâncias, o desembaraço e a “plasticidade amorável” (como lhe chamou Jaime Cortesão), que permite contactar e lidar facilmente com outros povos, e, devido à boa preparação dos quadros militares, as unidades portuguesas têm mostrado particular aptidão e eficácia para este tipo de missões.
A frequência e a constância das intervenções militares portuguesas e a capacidade operacional demonstrada no desempenho dessas missões é uma afirmação da presença do País na cena internacional e do valor das suas Forças Armadas, elementos que representam um capital de prestígio para Portugal, dão valor à sua voz e permitem-lhe ter uma maior influência na cena internacional.
A já longa história das operações de apoio à paz e as intervenções recentes têm ensinado que no actual estado de relação de forças a nível mundial, quase unipolar, se houver iniciativa ou concordância da única superpotência, é fácil iniciar operações deste tipo, mesmo em situações complexas. Mas também nos indica que é extraordinariamente difícil avaliar quando estão preenchidas as condições que permitam o seu termo.
O diferente empenhamento militar de Portugal em Timor, em 1975 e 25 anos mais tarde, dá-nos uma indicação da importância da situação interna do País e da situação internacional nas decisões de utilizar as Forças Armadas como instrumento da política geral do Estado (em 1975 não se conseguiu um batalhão para Timor!).
A já longa experiência nas OAP diz-nos que existe frequentemente um gap de segurança, por ausência ou fraqueza das forças policiais. Quanto a nós, as tarefas policiais não devem ser assumidas pelas Forças Armadas, como por vezes tem sido feito, porque isso corrói a imagem de poder de coerção decisivo, que é a sua imagem de marca, por ser aquilo que lhes dá credibilidade e poder dissuasório.
Numa época em que a independência e a soberania dos Estados foram substuídas por uma progressiva interdependência e soberanias limitadas (pelo direito, por cedências, etc.) mas em que as Forças Armadas continuam a ser um instrumento fundamental da acção do Estado, devemos reflectir sobre o valor e as implicações das intervenções militares no exterior e sobre a liberdade de acção do poder político quando estas sucedam em quadros de cooperação alargados.
Pela frequência das intervenções das Forças Armadas em OAP e pelas suas características, deve ter-se em consideração que:
As Forças Armadas não podem ser uma organização que apenas esteja apta a realizar operações de baixa intensidade de violência. As Forças Armadas têm que estar aptas a combater em conflitos de alta intensidade, porque é isto que lhes dá credibilidade para agir sem utilizar a violência e permite, se e quando necessário, utilizar a violência máxima.
As OAP são normalmente de longa duração, porque a pacificação das partes em conflito é sempre difícil e morosa (por vezes leva gerações).
Sendo relativamente fácil e prestigiante participar nessas operações, é geralmente mais difícil sair delas sem que isso possa ser interpretado, por sua vez, negativamente.
As OAP sucedem em patamares de violência variáveis no tempo, pelo que o estudo sobre a decisão de participar deve ponderar convenientemente a possibilidade de escalada ou de alteração do ambiente operacional e os custos humanos, materiais e financeiros inerentes a essas mudanças.
As intervenções devem recolher o consenso político e o apoio da opinião pública nacional, o que obriga a informar e esclarecer o público, devendo haver um particular cuidado com aquelas acções de “custos” mais elevados e de maior duração.
b. A decisão de intervir
Conhecidos que são, de um modo geral, as vantagens e os inconvenientes de participar com as Forças Armadas em operações fora do território nacional, em apoio da política do Estado, a inerente decisão deve, entre outros elementos, dar particular atenção aos seguintes:
Essa participação deve ser claramente do interesse nacional, para que não sejamos arrastados para operações que, podendo ser de muito interesse para outros países, nos dizem vagamente respeito.
Estando particularmente atentos ao nosso interesse, ter em conta que somos um país da União Europeia, somos membros da NATO, somos parte da CPLP.
Dever agir-se no quadro do direito internacional e com mandato expresso da ONU.
Fazer uma cuidadosa avaliação das vantagens de participar (interesse nacional envolvido; prestígio a obter; linha política a preservar; solidariedade manifestada; experiência adquirida; etc.) versus os inconvenientes (empenhamento de forças; custos humanos, materiais e financeiros; hostilidade de outros países; desgaste da opinião pública, etc.)
Os factores determinantes que devam apoiar a decisão de participar ou não, e as suas previsíveis consequências (positivas ou negativas), devem ser olhadas mais no longo do que no curto prazo.
c. Um caso histórico
Finalmente, e ainda intimamente ligado à decisão de intervir, lembro este caso histórico de intervenção no exterior, porque continuam válidas as dúvidas que D. João I levantou e sobre as quais pediu conselho quando a impetuosidade dos Infantes D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique os levou a propor a aventura de Ceuta, da qual Zurara nos deixou uma narração pormenorizada na Crónica da Tomada de Ceuta. Antecedendo estas dúvidas e como assunto fundamental, o Rei perguntava se era serviço de Deus realizar tal empresa. “E esta dúvida é lógica e actual, pois um exame prévio, com este ou um intuito semelhante, evitaria muitas acções que ferem o Direito, a Moral e a Ética”1. Tendo-lhe o Conselho dito que era serviço de Deus, D. João I levantou mais cinco questões.
A primeira referia-se à capacidade económica do Reino para suportar esse encargo, por se tratar de uma empresa dispendiosa.
A segunda era sobre o poder naval existente, pois seriam precisos muitos navios para levar gente, “armas e fardagens e outras bitualhas [...] porque não sabemos quanto tempo estaremos sobre aquela cidade”. Ou seja, a capacidade de transporte para a força e o seu apoio logístico.
A terceira era sobre a disponibilidade em homens, sem que fosse afectada a segurança do próprio Reino (hoje poder-se-ia acrescentar àquela preocupação a do aparecimento de outras intervenções que merecessem uma prioridade mais elevada).
A quarta pergunta era saber se seria realmente vantajoso para o País realizar tal empresa. Isto é, avaliar se era claramente do interesse nacional realizar essa acção militar.
Finalmente, caso tivesse sucesso a empresa, se haveria possibilidade de a manter e defender, que mais não é do que uma sábia preocupação com os days after, a capacidade de realizar aquilo que se vai seguir, o tempo que vai durar, os custos humanos, materiais e financeiros que ainda estão para vir.
E porque, como disse Zurara, algumas “das dúvidas ficariam aquela vez sem determinação”, mais tarde, como refere o Infante Dom Pedro na sua célebre Carta de Bruge, constatou-se que Ceuta era um “sumidoiro de homens”. E este, juntamente com o custo financeiro e o desgaste da força e da vontade, é um assunto que, hoje como ontem, deve ser cuidadosamente ponderado.
___________
* Conferência proferida em 26 de Outubro de 2006 na Sociedade de Geografia de Lisboa, no Ciclo de Conferências “Portugal e as Relações Internacionais”, organizado pelo Instituto Diplomático/MNE e pela Comissão de Relações Internacionais daquela Sociedade.
** Presidente da Assembleia-Geral da Revista Militar.
____________
1 O Pensamento Estratégico Nacional. Lisboa: Edição Cosmos, IDN, 2006, p. 27.