Nº 2651 - Dezembro de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Editorial
General
José Luiz Pinto Ramalho

Editorial


Na última Edição do ano da Revista Militar, justifica-se que se analise o facto mais relevante em termos de Segurança e Defesa com que, na Europa, estamos confrontados. O decorrer das ações militares na Ucrânia, ao longo de quase dez meses (início a 24 de fevereiro deste ano), permite uma reflexão sobre os acontecimentos mais significativos que têm marcado o conflito, mas também sobre a influência que os mesmos têm vindo a revelar, quer no comportamento de outras potências quer no posicionamento das Grandes Organizações Internacionais, sobre o mesmo acontecimento.

Um primeiro facto a salientar prende-se com a resistência da Ucrânia como país, a par do desempenho operacional das suas Forças Armadas, perante a invasão pela Rússia. Relativamente a esta, a forma desastrada e incompetente como as ações militares iniciais foram conduzidas, revelando uma perspetiva de cenário errado, por deficiente informação estratégica, falhas de planeamento, de Unidade de Comando e de Coordenação Operacional, entre as várias Forças Militares empregues; esta situação levou à saída da região de Kiev e de todo o norte do país e à concentração das operações militares nas regiões do Dombass, de Zaporizhzhya e de Kherson.

Um segundo facto relevante prende-se com a maior catástrofe humanitária na Europa, desde a II GM, traduzida no número de populações ucranianas, refugiadas no exterior da Ucrânia e deslocadas no interior da mesma, que atinge cerca de 13 milhões, especialmente mulheres, crianças e idosos e que se poderá agravar no auge do inverno, fruto dos bombardeamentos russos às infraestruturas de eletricidade, água e aquecimento, que têm deixado cerca de 10 milhões de habitantes sem acesso a esses bens (650 000 Lares, em Kiev).

Paralelamente, fontes internacionais apontam para um número de baixas (mortos e feridos), para ambos os lados na ordem de um total cumulativo de 200 000 militares, para além de um valor muito elevado, ainda indeterminado, de baixas civis. A violência da guerra, as destruições, a volatilidade das ocupações militares territoriais têm trazido também o conhecimento de um elevado número de situações, passíveis de serem consideradas crimes de guerra, que se encontram sob investigação.

Outra realidade é a disrupção das cadeias de abastecimento alimentar (em particular, cereais e fertilizantes) e de energia (gás e petróleo), atenuadas, quer pelos sempre frágeis acordos de exportação de cereais, num caso, quer pela diversificação de fontes, noutro, mas sempre com implicações na escassez, nos preços e no aumento da inflação, que continua a afetar, a Europa e os EUA; é uma situação que tem provocado uma fragmentação política e económica, que tem posto em causa a “globalização”, tal como a conhecíamos e temos vivido até ao início do conflito em curso. Tornou-se igualmente evidente a fragilidade da Europa em termos energéticos, quer quanto à diversificação das fontes de abastecimento quer quanto a uma política de reservas ou de conexões que permitam uma circulação da energia.

A Europa está confrontada com três grandes questões no domínio da energia, tendo em conta a decisão pelo corte com o aprovisionamento a partir da Rússia. A primeira, em 2023, não poderá contar com o gás e petróleo russos para reconstituir as reservas deste ano, com vista a evitar racionamentos na distribuição,  tendo de competir no mercado, no próximo ano, com compradores asiáticos; a segunda, tem de adaptar a sua produção industrial a uma política de redução de consumos de energia ou, definitivamente, aceitar a produção desta, a partir de centrais nucleares; a terceira, sensibilizar os consumidores particulares para uma prática diária de poupança de energia (cerca de 10 % como pretendia a Comissão da UE), o que até agora não tem funcionado.

Estamos perante uma crise energética, com clara influência no Mundo, em geral, e na Europa, em particular, na economia global, mas que também tem feito “marcar passo” a transição energética e a resposta coordenada às alterações climáticas, pondo em risco os objetivos da descarbonização global e em que as decisões do COP 27, voltaram a ser uma deceção.

Existe também uma clara perceção de que uma “Nova Ordem Internacional” (NOI) está em construção, marcada pela rutura e pela constituição de Blocos, por uma desconfiança em relação à Rússia e pela interrogação quanto à forma como se relacionar com a mesma no futuro, face à atitude do Ocidente Alargado de a isolar do ponto de vista político. Uma desconfiança que irá motivar um rearmamento das potências, designadamente, em termos nacionais, dos países na vizinhança da Rússia, mas também no quadro da OTAN, relativamente aos vários países membros, em que a Alemanha e a Polónia são os primeiros exemplos. Nessa NOI, o reconhecimento de que a mesma será marcada pelo posicionamento de duas grandes potências mundiais – os EUA e a China.

Embora a guerra na Ucrânia/Rússia seja o mais urgente acontecimento que perturba e ameaça a Paz e a Segurança Internacional e que convive com o desenvolvimentos dessa “Nova Ordem” por definir, mas em que a anterior já dá mostras de não funcionar, perceciona-se que o centro de gravidade do Poder Mundial está a transferir-se para o Indo-Pacífico, onde se encontra a potência emergente e desafiante – a China – e onde se situam dois outros “hot spots” de instabilidade potencial para a Paz e Estabilidade Internacional – Taiwan e o conflito político/militar latente, entre as duas Coreias.

A isto e com a mesma gravidade e potencial de instabilidade, junta-se o Médio Oriente e, em particular, a sempre tensão entre o Irão e Israel. Neste ambiente internacional, as Organizações Internacionais, onde reside o garante do Direito Internacional, têm revelado incapacidade ou passividade de atuação, a par de um certo falhanço da Diplomacia em encontrar ou, no mínimo, propor alternativas político-diplomáticas, que se sobreponham à via militar que tem prevalecido.

Neste conflito existem dois aspetos a salientar, pelos efeitos de âmbito estratégico e tático que têm alcançado: a Estratégia de Comunicação e a Utilização do Espaço em termos militares. No primeiro caso, tem havido grande proatividade por parte da Ucrânia, em particular de Zelensky, que todos os dias está presente nos media. Quanto à utilização do Espaço, os dois contendores têm-no feito, seja com ações no ciberespaço, informação (data e imagens) provenientes de satélites, “data links”, Comunicações, GPS, TIC, Robótica, IA e IOT, mas, particularmente, o acréscimo do número de satélites “Low Earth Orbit”, vocacionados para as comunicações e obtenção de imagens, que se contam por milhares. Parece assim ser evidente que a Segurança da Europa e do Ocidente Alargado, e também a nossa Prosperidade, dependem cada vez mais da nossa capacidade de garantir a segurança e a utilização do Espaço, nos seus múltiplos domínios.

Desde o início do conflito, temos assistido a uma política de sanções à Rússia, de iniciativa dos EUA e da UE, que a China considera unilaterais e à revelia do Direito Internacional, que, certamente, a prazo, terão impacto significativo na economia e na indústria russa, mas que, perversamente, tem tido efeitos negativos na economia europeia e no custo de vida dos cidadãos europeus, a par da perturbação que causou nas diversas cadeias de abastecimento, a nível mundial.

Apesar dos efeitos das sanções, também na economia global, mesmo que seja encontrada a breve trecho uma solução política/diplomática para “Guerra”, enquanto Putin se mantiver no poder, embora algumas possam vir a ser atenuadas, não serão levantadas na totalidade.

Também desde o início, temos assistido ao apoio à Ucrânia, quer em material de guerra quer em termos humanitários e financeiros, permitindo a sua defesa militar perante a Rússia, pelo designado Ocidente Alargado, cabendo o maior desse apoio aos EUA, seguindo-se a UE. Se isso constitui uma inequívoca prova de solidariedade, é também, para a liderança ucraniana, uma dependência e uma falta de liberdade de ação política que não deve ser ignorada, especialmente, se as opiniões públicas europeias e americanas, começarem a acusar algum “cansaço da guerra”.

De referir também que, apesar das tentativas de Zelensky: criação de uma Zona de Interdição Aérea; escolta dos navios transportadores de cereais por uma Força Internacional; comparar os bombardeamentos a Armas de Destruição Maciça; a Força de Segurança Internacional para as centrais nucleares e, por último, a dramatização da queda do míssil em território polaco, a guerra não subiu o patamar da internacionalização e do envolvimento direto, quer da OTAN quer dos EUA.

Estamos numa fase da guerra em que, quer a Rússia quer a Ucrânia, procuram estabilizar, do ponto de vista militar, as frentes de contacto, preferencialmente apoiadas em obstáculos naturais, com valor defensivo – daí os esforços russos em defender na região de Zaporizhzhya e respectiva cidade, procurando chegar ao Rio Deniepre (Bachemut, Avdiivka, Krememchuc e Dnipro). Do lado ucraniano, a intenção é opor-se a este avanço e ao objetivo declarado e, se possível, desencadear uma ação ofensiva destinada a fazer recuar os russos, quebrar a atual continuidade geográfica de Luhasnsk, a Kherson e à Crimeia e atingir o Mar de Azov.

Face às condições climatéricas, as operações terrestres têm sido de baixa envergadura, embora possam subir de intensidade quando os terrenos gelarem e permitirem uma maior transitabilidade. O que temos assistido nas últimas semanas são ações de bombardeamento de infraestruturas de energia e de abastecimento de água ucranianas, por parte da Rússia, de forma sistemática e a todas as cidades mais importantes em todo o país.

Estamos perante uma situação operacional, que configura o conflito aberto entre a Rússia e a Ucrânia, com operações militares convencionais, com carácter limitado no terreno e nos meios militares empregues e, como cenário de evolução mais perigoso, ser considerado o “spill over” do conflito, com a sua internacionalização (envolvimento da OTAN) e evolução para uma guerra generalizada, podendo ascender ao patamar nuclear. Subjacente ao cenário mais provável e em curso, são muito possíveis as ameaças cibernéticas e a possibilidade de acidentes do tipo do que ocorreu em território polaco, com a queda de um míssil, no caso vertente, um míssil AAA S-300 ucraniano.

Todas as guerras terminam por uma de duas opções: a vitória de uma Parte/Coligação sobre a outra ou, pela via negocial. Como não parece provável que se venha a esgotar a via militar, levando à capitulação de uma das partes (não é provável que isso venha a acontecer à Rússia, e que o Ocidente Alargado permita que o mesmo se passe com a Ucrânia), estamos perante um cenário mais provável do fim do conflito, por uma solução político/diplomática. A grande questão é quando e o que poderá acelerar essa opção.

A Rússia tem vindo a tentar quebrar a vontade de prosseguir a guerra, por parte da Ucrânia, através dos bombardeamentos às infraestruturas, como já foi referido, podendo criar uma situação insustentável que leve a acelerar uma negociação se, por exemplo, conseguir uma ação ofensiva que empurre as forças ucranianas para fora do Dombass, que atinja o Rio Deniepre e volte a ameaçar Odessa e Kharkiv. Do lado russo, um desaire decorrente de uma ofensiva ucraniana, que quebre a continuidade territorial entre o Luhansk e a Crimeia, chegando ao Mar de Azov e ao Mar Negro. De acordo com os indícios operacionais atuais, a primeira possibilidade afigura-se mais provável do que a segunda.

O possível processo negocial será difícil e demorado, estarão em cima da mesa eventuais cedências territoriais, podendo, no entanto, iniciar-se pelo estabelecimento de um “cessar fogo”, sem reconhecimento internacional das regiões ocupadas ”de facto”, mas permitindo a salvaguarda das populações e a reconstrução do país. Não será uma negociação a dois (Ucrânia e Rússia), envolverá mais atores internacionais, muito provavelmente a ONU, a OSCE, os EUA, a Turquia e, eventualmente, a OTAN e a UE, podendo conduzir a uma situação que configura o “congelamento do conflito”, obrigando a Rússia a manter elevados efetivos nos territórios agora ocupados para garantir o “status quo”.

É uma solução que configura um conjunto de realidades estratégicas que não desagradará aos EUA e, de certo modo, à China: concretizou-se o enfraquecimento da Rússia, fruto das sanções e embargos, a par de algum isolamento político; quebrou-se a ligação estratégica da Europa com a Rússia (petróleo e gás natural); aumentou-se a dependência energética da Europa, relativamente aos EUA; a Europa enfrenta dificuldades económicas, políticas e militares, que adiam a “autonomia estratégica europeia” e enfraquece a sua competitividade nos mercados internacionais; a “Intranquilidade política e a desconfiança entre Atores” vai materializar o reforço da OTAN e o investimento e o reforço militar, dos Países-membros; tornou-se mais complexa a futura “arquitectura de segurança e defesa europeia”, que não pode ignorar a Rússia e a sua participação e, que, não pode dispensar, também, os EUA.

É também uma solução que permitirá reconstruir a Ucrânia (estima-se em 750 mil milhões de Euros), treinar, reequipar e rearmar as forças armadas ucranianas, situação que agradará também às fileiras industriais do armamento, da produção e comercialização da energia, da construção e fornecimento de equipamentos e, também, às áreas do investimento e do setor financeiro.

Um outro acelerador do processo negocial, embora exterior ao conflito, pode surgir do cansaço da guerra por parte das opiniões públicas europeias e americana, que venham a pôr em causa a dimensão atual do apoio à Ucrânia, quer militar quer humanitário e financeiro. As manifestações anti-guerra e também contra as sanções e embargos de gás e petróleo já estão a acontecer na Alemanha, na República Checa, na Eslováquia, na Áustria e na Itália.

Por último, e sem qualquer carácter de previsibilidade ou probabilidade de ocorrência, pode acontecer uma alteração qualitativa da liderança política de qualquer dos países em conflito, mais moderada ou mais agressiva, que introduza uma alteração radical da atual situação, seja no sentido da sua resolução político-diplomática seja na agudização da conflitualidade das operações militares, exigindo uma nova avaliação dessa conjuntura.

As operações terrestres no período têm sido limitadas, estando a maior atividade operacional a acontecer na região de Bachemut, onde tem havido iniciativa russa e as tropas ucranianas a revelar dificuldades. O ênfase da atividade operacional tem sido os bombardeamentos às infraestruturas ucranianas, como já foi referido. Devendo ser salientado, também, os efeitos da quebra ou instabilidade da energia, em todo o sistema “C4 Warfare” (Comando, Controlo, Comunicações, Computadores, Informações, Vigilância, Reconhecimento, Aquisição de Objetivos, etc.).

A Ucrânia levou a cabo três ataques a duas bases aéreas e a um depósito de combustível, no interior da Rússia, Diaguilevo, na região de Riazan, e à de Engels, na região de Saratov, a centenas de quilómetros da fronteira ucraniana, e o depósito de combustível na região de Kursk. Estima-se que a ação tenha sido efetuada por drones de vigilância soviéticos, datados de 1970, TU-141 Strizh, com um alcance de cerca de 1000 Kms, modificados pelos ucranianos e capazes de transportar uma carga explosiva de 50/100 Kg. Este ataque materializa uma ação operacional muito significativa, do lado ucraniano e, paralelamente, revela fragilidades operacionais russas, difíceis de explicar, a não ser por incompetência ou laxismo.

Salientam-se as declarações de Zelensky ao Financial Times, em que refere as dificuldades que a destruição das infraestruturas tem causado ao país (80% de destruição e as populações mergulhadas na escuridão), mas também o seu pensamento de rejeição de quaisquer negociações, enquanto os russos não retirarem dos territórios ocupados, incluindo a Crimeia, rejeitando também um cessar-fogo por considerar isso um ”congelamento do conflito”.

Paralelamente e de forma algo inesperada, houve a afirmação de Biden, durante os encontros que têm acontecido com Macron, nos EUA, de que estaria disponível para “se encontrar com Putin, se este estiver interessado em acabar com a guerra”. Este pode ser um primeiro sinal de que algo possa estar em marcha, tanto mais que órgãos de Comunicação Social russos indicaram que 55 % da população seria favorável a um processo negocial para acabar com o conflito. Contudo, Putin já respondeu que “a exigência da retirada russa é uma opção pelas posições ucranianas, o que é inaceitável para a Rússia e que o não reconhecimento das regiões ocupadas como território russo complica também o processo negocial”.

No momento atual, a Rússia parece pretender ganhar outras vantagens territoriais, durante o Inverno, que reforcem a sua posição negocial. Estamos no início de um processo que deverá decorrer de forma discreta, entre os “staffs” de Blinken e Lavrov, posteriormente entre estes e, caso tenha condições de sucesso, mais tarde entre os grandes decisores. É positivo também que Macron e Olaf Scholz tenham voltado a falar, longamente, com Putin.

Após o encontro com Biden, as declarações de Macron, relativamente a “uma arquitetura de segurança e defesa europeia”, que acomode as preocupações de segurança dos europeus, da OTAN e da Rússia, foram mal recebidas por Kiev, pelos Países Bálticos e pela Polónia. Continua a ser uma realidade que, na Europa, o “Dilema de Segurança”, tem uma fratura que passa por aqueles países e onde se inclui o Reino Unido, que apostam na derrota e isolamento da Rússia e, um outro grupo, que tem uma visão diferente do relacionamento futuro, liderado pela França e Alemanha, e onde convivem posições pró-russas, como a Hungria e a Sérvia, e mais um conjunto de países que reagem de forma conjuntural. É uma realidade que não ajuda ao fim da guerra, fazendo prever que a posição dos EUA será determinante neste contexto.

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2023-04-19
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José Luiz Pinto Ramalho

Nasceu em Sintra, em 21 de Abril de 1947, e entrou na Academia Militar em 6 de Outubro de 1964. 

Em 17 de Dezembro de 2011, terminou o seu mandato de 3+2 anos como Chefe do Estado-Maior do Exército, passando à situação de Reserva.

Em 21 Abril de 2012 passou à situação de reforma.

Atualmente exerce as funções de Presidente da Direção da Revista Militar e de Presidente da Liga da Multissecular de Amizade Portugal-China.

REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia