Nº 2651 - Dezembro de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Que Políticas para o Serviço Militar em Portugal? (algumas questões que importa responder)
Tenente-general
Joaquim Formeiro Monteiro

Nunca tendo havido lugar, no seio da sociedade portuguesa, o indispensável debate sobre a prestação de Serviço Militar em Portugal, após 25 Abril de 1974, com o rigor e a lucidez que a sua importância exigiria, torna-se urgente, então, uma necessária como aprofundada reflexão sobre uma política pública reconhecidamente relevante para as Forças Armadas (FA) e para o País, num momento particularmente grave para a defesa e segurança europeias.*

Tendo em vista essa reflexão e debate, importa levantar o quadro de pressupostos e de condicionalismos inerentes a esta matéria, no sentido de enquadrar um conjunto de questões, consideradas como determinantes para o efeito.

No âmbito dos pressupostos, de considerar:

– O imperativo constitucional da defesa da República, a cargo das FA, expresso na Constituição da República Portuguesa (CRP) no art.º 275 nº 1;

– A Defesa Nacional como instrumento de garantia dos Elementos do Estado, como sejam, a soberania nacional, a integridade territorial e a segurança das populações;

– O novo quadro de ameaças em presença, no âmbito do actual ambiente geopolítico e de segurança;

– Os compromissos assumidos por Portugal, no quadro das alianças internacionais e cooperativas de que faz parte.

No quadro dos condicionalismos, de relevar:

– A continuada ausência de empenhamento, por parte do poder político, na implementação de políticas coerentes e ajustadas às questões relativas à Defesa Nacional e às FA;

– A progressiva desvalorização da Instituição Militar e do papel das FA, na vida nacional;

– O deficit generalizado, por parte da grande maioria da população, sobre as questões relacionadas com a Defesa Nacional, bem como a respectiva ausência da percepção de ameaças externas;

– O alheamento e indiferença da sociedade civil, em particular das suas elites, sobre as questões inerentes à Defesa Nacional e às FA;

– A desvalorização dos deveres de cidadania e o primado do individual sobre o colectivo, por parte das gerações mais jovens;

– O factor demográfico e a continuada diminuição do universo recrutável.

Do levantamento dos pressupostos e condicionalismos enunciados, decorre um conjunto de questões que importa responder, e para as quais se elaboram algumas considerações:

– O actual modelo de prestação de serviço militar, em regime de voluntariado e de contrato (RV/RC), nas FA tenderá a induzir um tipo de serviço militar para os mais desfavorecidos e os menos habilitados, podendo, deste modo, constituir-se como um factor de uma indesejada discriminação social?

• Sobre esta questão, de referir que da análise aos inquéritos feitos aos jovens cidadãos presentes em sucessivos Dias de Defesa Nacional que ocorreram nos últimos anos, se concluiu que o nível de escolaridade e o rendimento do agregado familiar dos entrevistados variava na razão inversa do interesse, por estes demonstrado, numa eventual prestação de serviço militar voluntário.

• Esta realidade poderá levar que as FA sejam vistas pela sociedade como um mero depositário de jovens sem oportunidade de emprego, com reduzidas qualificações, cujo ideário principal se baseia, simplesmente, em tentar garantir um expediente para a resolução dos seus problemas pessoais imediatos, afastados, assim, de genuínos princípios de cidadania, quando da adesão à prestação de serviço.

– Perante o modelo de serviço militar em vigor, as medidas que têm sido tomadas, visando incrementar a sua atractividade, têm garantido uma resposta adequada às expectativas dos jovens cidadãos que ponderem ingressar nas fileiras?

• Para uma resposta positiva, teria sido necessário a adopção de medidas que pudessem ter contribuído para o prestígio da instituição militar, e que pudessem reflectir a expressão das motivações e incentivos inerentes à valorização pessoal, técnica e profissional dos seus elementos. Sendo, hoje, reconhecido que tais medidas, invariavelmente, têm ficado aquém do seu cumprimento, compreende-se bem como as dificuldades no recrutamento têm sido uma constante, atingindo níveis de particular gravidade nos últimos anos, sendo legítimo concluir que, para os jovens do universo recrutável, o serviço nas FA nunca terá sido uma opção à qual tivessem aderido com significado.

– O presente modelo de prestação de serviço militar voluntário constitui-se como o mais adequado, face à incorporação tecnológica dos equipamentos e sistemas de armas ao serviço nas FA?

• Sendo reconhecido que as FA padecem de um significativo gap tecnológico, por razão da falta de investimento suficiente nos respectivos equipamento e armamento, a suposta mais-valia técnica obtida pelos voluntários na operação desses sistemas tem dado lugar a uma falácia tecnológica relativamente ao modelo de serviço militar de conscrição, que importaria desmistificar, uma vez que fará pouco sentido justificar o presente modelo de prestação de serviço com o argumento de especiais competências para a operabilidade dos equipamentos existentes.

– Um modelo de prestação de um Serviço Militar Nacional geral e universal, a ser levantado, deveria ser considerado, apenas, como um dever ou, igualmente, como um direito de cidadania?

• Sendo, de acordo com o articulado na CRP, a defesa da Pátria um direito e um dever de todos os portugueses, a prestação de um Serviço Militar Nacional poderia induzir que as FA se pudessem constituir como um veículo promotor de democratização e integração e, desta forma, constituírem-se como um valioso elemento agregador da identidade nacional.

– Um modelo de Serviço Militar Nacional seria o mais ajustado para o levantamento de um Sistema de Forças, que pudesse responder a empenhamentos no exterior, para além do emprego prioritário em território nacional?

• Subsiste, actualmente, a ideia de que num Exército de voluntários, a estes ficará garantida uma maior aptidão técnico militar, por via duma maior permanência nas fileiras, comparativamente aos militares conscritos, permitindo, desta forma, assegurar uma melhor prestação em teatros de operações mais complexos e de maior risco.

• Contudo, haverá que reconhecer que o reforço da qualidade da aptidão técnico militar e do consequente desempenho operacional nem sempre está na razão directa da disponibilidade do militar para o combate…

• A qualidade do enquadramento e, fundamentalmente, a consciência dos valores da cidadania e da percepção concreta de estar ao serviço da comunidade e do País são variáveis determinantes para que o militar, independentemente de ser voluntário ou conscrito, possa encontrar as razões suficientes para uma maior disponibilidade para combater.

– A prestação de um Serviço Militar Nacional poderia incluir uma dimensão de serviço cívico, orientada para uma componente não armada?

• É, hoje, reconhecido que os portugueses atribuem uma progressiva relevância às funções não militares que as FA desenvolvem, sendo a hipótese das mesmas se dedicarem, exclusivamente, à preparação para os conflitos armados, considerada com um grau de aceitação relativo. Nesse sentido, num modelo com uma componente armada e outra não armada, seria tendencialmente expectável que esta última pudesse vir a constituir-se como uma opção preferencial sobre a primeira, por parte dos jovens cidadãos, por se percepcionar como uma opção menos exigente e melhor aceite socialmente, podendo, assim, transformar-se na regra e a componente militar armada na excepção.

– O modelo de serviço militar a adoptar deveria ser condicionado pelo quadro das alianças internacionais em que o País se insere, ou deveria ter em consideração, exclusivamente, a defesa e a segurança do espaço territorial nacional, da sua soberania e das respectivas populações?

• É reconhecido que largos sectores da sociedade não têm identificado, de forma evidente, uma relação directa entre as ameaças externas à segurança nacional e a intervenção das FA fora do território, não percepcionando um vínculo suficientemente justificado entre esse empenhamento e os interesses intrinsecamente nacionais.

• Por essa razão, embora o carácter expedicionário da intervenção das FA possa ter incrementado o prestígio do País no exterior, tem-se constatado, no entanto, que essa visão não é transversal no seio da sociedade, quando comparada com o apoio declarado à missão essencial das FA, na defesa da integridade territorial.

• Decorrente desta realidade, a hipótese da prestação de serviço militar assumir um modelo misto, repartido entre o voluntariado e a conscrição, poderia, eventualmente, compatibilizar as repostas às questões colocadas.

– Perante um quadro de interrogações desta natureza, um modelo de serviço militar profissionalizante ou de longa duração, poderia considerar-se como uma opção válida, face à realidade socioeconómica e cultural do País?

• Esta questão tem levantado alguma polémica, com sectores de opinião a defenderem a possibilidade de um significativo aumento do tempo de serviço nas fileiras se poder vir a constituir como um incentivo de especial significado para o recrutamento.

• Contudo, algumas interrogações obrigariam a um especial cuidado na análise desta modalidade, começando por considerar que o conjunto de especialidades militares, com eventual interesse no mercado de trabalho, é reconhecidamente limitado, reduzindo drasticamente as possibilidades da integração laboral, no final do tempo de serviço.

• Deste modo, poderia fazer pouco sentido aumentar a permanência nas fileiras, uma vez que essa situação não melhoraria a ocupação profissional dos militares à saída, indo, por sua vez, comprometer o respectivo desempenho operacional, pelo factor etário associado.

• No final, poder-se-ia estar perante cidadãos demasiado velhos para serem soldados, contudo, demasiado novos para poderem usufruir duma cobertura suficiente, por parte da Segurança Social, configurando, deste modo, uma realidade que obrigaria a uma atenta e cuidadosa ponderação.

– Ainda que a prestação de serviço militar assente num quadro de valores imutáveis e não transaccionáveis, donde se destacam os valores da cidadania e da defesa da Pátria, não seria legítimo avaliar o modelo a levantar, numa óptica de custo e de utilidade?

• É reconhecido que a implementação de modelos baseados no serviço militar voluntário não se tem reflectido em poupanças orçamentais significativas nos países em que que foram adoptados, com custos mais elevados do que os associados aos modelos de conscrição, reconhecidamente mais baixos, noutros países, levando à desmistificação da falácia económica que lhes é atribuída.

• Por outro lado, na avaliação da utilidade do modelo a seguir, dever-se-ia ter em conta as mais-valias resultantes do cultivo de novas capacidades (capital humano), de novas relações humanas (capital social) e de novos códigos de conduta e de comportamento (capital cultural), em favor do universo recrutável, pondo em causa a falácia ocupacional que, não raras vezes, se pretende associar a uma reduzida utilidade de um modelo de prestação serviço militar geral e universal.

– Igualmente, como relevante, para poder responder à necessidade de garantir a disponibilidade de uma Reserva de Recrutamento (RR) que permitisse o crescimento de Forças, quando necessário (em estado de crise ou guerra), impunha-se reflectir sobre qual poderia ser o modelo de prestação de serviço militar mais adequado a esta exigência?

• Sobre esta questão, é amplamente reconhecido que um modelo de prestação de serviço geral e universal, pelo carácter da sua abrangência, seria aquele que melhor poderia assegurar uma RR credível, através do enquadramento legal que pudesse prever a respectiva mobilização, e da vontade política suficiente para a respectiva implementação.

• De assinalar que, neste âmbito, passados cerca de vinte anos sobre o final do Serviço Militar Obrigatório, o mecanismo de convocação e de mobilização da RR nunca foi accionado, ao contrário do que, até então, se verificava, quando o sistema estava consolidado e era testado de forma regular.

• Entretanto, nos últimos anos, têm-se verificado significativas modificações no quadro geopolítico mundial, que tornaram indispensável estabelecer mecanismos capazes de garantir um processo de mobilização eficiente e credível, de forma que o País fosse capaz de assegurar, com a prontidão e exigência devidas, a sua quota-parte no esforço conjunto das Forças reunidas, no âmbito das Alianças em que está comprometido.

– Por último, e acima de tudo, importaria conhecer qual a vontade política do País e a capacidade financeira do Estado para implementar um modelo de prestação de serviço militar, que pudesse dar resposta às necessidades das FA, no quadro das missões que lhes fosse designado?

• A devida sustentação financeira do aparelho militar constitui-se como factor indispensável para o efectivo cumprimento dos objectivos da política de Defesa Nacional, obrigando o Estado a ter na devida conta o quadro global de encargos com as FA, devendo, no entanto, ter em consideração as exigências impostas pelo desenvolvimento económico e social do País.

• Somente, no quadro de uma aprofundada reflexão sobre esta questão, se poderia avaliar sobre qual a capacidade financeira que o País estivesse disponível para encontrar, bem como da vontade política que os seus dirigentes pudessem deter para decidir sobre qual a política de Defesa Nacional a perseguir, qual a organização de FA a assegurar e, não menos importante, sobre qual o modelo de prestação de serviço militar a adoptar.

Entretanto, perante a relevância das questões levantadas e a premência de se encontrarem as respostas mais adequadas para as mesmas, não poderá deixar de se assinalar, contudo, o estranho e sistemático alheamento de sucessivos governos sobre a política a seguir, neste âmbito.

No mesmo sentido, dificilmente, se poderá entender a posição assumida, recentemente, por entidades com as mais elevadas responsabilidades políticas, no âmbito da Defesa Nacional e das FA, ao afirmarem que um modelo de serviço militar de conscrição não caberia, de forma alguma, no quadro das opções a considerar sobre o modelo de serviço militar a perseguir.

Toda esta convicção, no entanto, sem dar a conhecer quais os estudos e trabalhos que a tivessem fundamentado e, sobretudo, sem nunca ter havido a oportunidade de conhecer a opinião dos portugueses sobre esta matéria, através de um indispensável debate público, que nunca existiu, uma vez que o poder político, de forma reiterada, nunca teve a coragem de o proporcionar.

Assim, como alguém já terá afirmado, com tantas certezas, raramente se poderão ter dúvidas…

 

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* O artigo foi escrito em consonância com o anterior acordo ortográfico, não autorizando, o autor, a respectiva transição para o novo acordo.

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by COM Armando Dias Correia