A implosão da União Soviética, em 1991, marcou a emergência de Estados litorais independentes na região do Mar Negro – Bulgária, Geórgia, Roménia, Rússia e Ucrânia. Desde então, o núcleo central daquela região passou a englobar aqueles cinco Estados ribeirinhos. Alguns autores – como Charles King (2008), Neil Melvin (2018), Alexandra Kuimova ou Siemon Wezeman (2018) – consideram, porém, que os limites atribuídos a tal região podem variar substancialmente, dependendo da perspetiva geográfica, histórica ou cultural específica. Neste sentido, se forem tidas em conta as dinâmicas de segurança que se foram construindo, sobretudo, ao longo deste século, podemos considerar uma “região alargada do Mar Negro” que combina um espaço marítimo central (ligado aos Estados ribeirinhos supra identificados e à Turquia) com acesso limitado via Mar Egeu (através dos estreitos turcos) e zonas litorais que o ligam à Eurásia (numa vasta extensão dos Balcãs ao Cáucaso e das estepes ucranianas e russas à Anatólia) e até mesmo ao Médio Oriente (King, 2008), (Melvin, 2018), (Kuimova & Wezeman, 2018). Este espaço mais amplo está representado na figura 1.
Figura 1 – A região alargada do Mar Negro.
Fonte: (Melvin, 2018)
Nesta “região alargada do Mar Negro”, coexistem Estados que pertenceram ao Pacto de Varsóvia e que hoje fazem parte da NATO (como é o caso da Bulgária e Roménia) e Estados que têm vindo a aproximar-se das organizações euro-atlânticas – NATO e/ou UE – (a Ucrânia e a Geórgia, em concreto, sendo que a Ucrânia viu mesmo, recentemente, aprovado o seu estatuto de país candidato à adesão à UE). Mas integram este espaço, de igual modo, diversas “zonas contestadas” (Melvin, 2018, p. 2) (que a figura 1 mostra), que se estendem desde a Moldávia (com a região da Transnístria), passando pela Ucrânia (com a anexação, por Moscovo, da Crimeia e o início das hostilidades nas províncias ucranianas de Donetsk e Lugansk, em 2014, e onde atualmente decorre um conflito de alta intensidade entre a Ucrânia e a Rússia), na Geórgia (com as regiões da Abecásia e da Ossétia do Sul) e ainda no Azerbaijão (no Nagorno-Karabakh), embora esta zona já se encontre geograficamente mais afastada. A relevância do Mar Negro decorre, assim, da geografia desta intrincada região, uma vez que é central a todos os Estados e “zonas contestadas”, conforme é visível na figura 1.
Nestas circunstâncias, a evolução (em termos securitários) que tem vindo a ser registada na região do Mar Negro, trouxe apensa uma perceção de novas ameaças e desafios estratégicos que Moscovo tem estado a enfrentar. Nos anos 2000, por exemplo, a emergência de governos na Geórgia e na Ucrânia, hostis a Moscovo (com uma clara orientação euro-atlântica), levou a Rússia a focar-se mais na NATO (sobretudo, nos EUA) e, mais tarde, na UE, designando-os como “concorrentes”, primeiro, e como “adversários”, depois. Nesta perspetiva, a Rússia via a expansão da NATO ao longo do seu flanco sul como um esforço da Aliança Atlântica para envolver e neutralizar as suas forças estratégicas na região do Mar Negro, nomeadamente, a Frota do Mar Negro. Em resposta, Moscovo desenvolveu uma abordagem relativa à segurança, na qual o Mar Negro se tornou o pivot de um esforço para reconstruir uma posição poderosa no antigo espaço soviético, tendente a contrariar a expansão e as ameaças euro-atlânticas percebidas e para restabelecer a Rússia como um ator global, numa nova ordem necessariamente multipolar (Melvin, 2018).
Por fim, importa referir que controlar o acesso e a saída do Mar Negro para os designados “mares abertos” (Egeu e Mediterrâneo) há muito que é uma questão estratégica para Moscovo1. Durante o período soviético, uma força naval substancial esteve estacionada no Mar Mediterrâneo, utilizando principalmente bases e portos no Mar Negro, mas também na Síria e no Egipto (Kuimova & Wezeman, 2018). A Frota do Mediterrâneo retirou-se, porém, logo após o colapso da União Soviética, ainda que as facilidades logísticas tenham sido mantidas em Tartus, na Síria (figura 2).
Figura 2 – Localização da base militar de Tartus.
Fonte: Adaptado de (Kuimova & Wezeman, 2018)
A Rússia possui, na atualidade, fortes interesses na região do Mar Mediterrâneo, designadamente na Líbia (em que apoia o comandante do autodenominado Exército Nacional Líbio, o general Khalifa Haftar) e na Síria (onde apoia o regime de Bashar al-Assad) (Hodges, 2021) e mantém boas relações com vários outros países do Norte de África – entre os quais o Egito2 – sendo expectável que pretenda estender a sua influência a toda a região do Magrebe para reforçar os laços não apenas com o Egipto e a Líbia, mas também com a Tunísia e Marrocos, procurando garantir o acesso de meios da sua marinha a diversos portos da região cedendo, em contrapartida, cereais (em particular trigo) e armamento (Bruno, 2022).
Feito este enquadramento inicial, necessariamente sucinto, acerca da envolvência da Rússia no Mar Negro, vamos, nos capítulos seguintes deste estudo, analisar em que medida o Mar Negro tem vindo a ser percecionado como um espaço de afirmação internacional da Rússia, no pós implosão da União Soviética.
Em termos metodológicos, seguimos um quadro epistemológico interpretativista, uma estratégia de investigação qualitativa e utilizámos como método preferencial de coleta de dados fontes documentais escritas. Procedemos, de igual modo, à delimitação do estudo, em linha com as orientações de Santos e Lima, do seguinte modo: em termos de espaço, à região do Mar Negro, temporalmente, ao presente século, e em termos de conteúdo, à influência daquela região na afirmação internacional da Rússia (Santos & Lima, 2019).
O estudo está dividido em três capítulos, para além da introdução e das conclusões. O primeiro, aborda o enquadramento histórico do Mar Negro. O segundo, analisa a estratégia de segurança nacional russa. O terceiro, foca-se na política marítima russa. As conclusões permitem confirmar que o Mar Negro tem assumido, de facto, um papel central na política externa de Moscovo.
A Rússia tem estado envolvida no mar Negro desde há muitos séculos3, ainda que durante grande parte da história moderna o império otomano tenha sido o poder dominante na região, governando a maioria dos territórios circundantes, que, por isso, ficou mesmo conhecido como o “lago turco”. Diversas guerras entre russos e turcos pela supremacia no mar Negro ocorreram ao longo dos séculos XVI e XVII4 (Melvin, 2018, p. 5).
Na década de 1770, porém, as aspirações da Rússia na região estavam ligadas a dois objetivos estratégicos: abrir o mar ao comércio europeu, que seria controlado em linha com os interesses do Estado russo; e expulsar o sultão otomano do trono de Bizâncio, colocando no seu lugar um príncipe russo. O primeiro objetivo implicava incentivar o comércio ao longo da margem norte do mar Negro. O estabelecimento (bem-sucedido) de novos entrepostos comerciais – em cidades como Odessa e Kherson, por exemplo – permitiu a criação de espaços para interação entre comerciantes de vários Estados europeus com comerciantes e camponeses russos. Já o segundo objetivo – no domínio político/militar – ficou por realizar5, em parte devido à intervenção de potências europeias ocidentais6.
Mas o ponto de viragem para os otomanos ocorreu em 1783, com a perda da Crimeia para o império russo. A expansão russa para o que hoje são os territórios da Ucrânia e Moldávia e para o Cáucaso do Norte e do Sul, bem como a crescente influência nos Balcãs, transformaram gradualmente a Rússia na principal potência do Mar Negro. Para a Rússia, nessa época, o controlo da Crimeia e uma maior expansão nos espaços marítimos do Mar Negro eram condições necessárias para poder assumir-se como uma potência global, até porque a partir da sua posição naquela região as forças navais russas estavam em condições de alargar a projeção de poder aos mares Egeu e Mediterrâneo (Melvin, 2018).
Catarina, a Grande, procurou transformar o Mar Negro num imenso lago comercial russo, tendo para o efeito reforçado os seus laços com as potências regionais do interior, no que foi seguida pelos seus sucessores7, e o facto é que, pese embora a derrota sofrida na Guerra da Crimeia, iniciada em outubro de 18538, no final do século XIX a região tinha-se tornado uma zona de enorme importância estratégica e comercial para a Rússia.
A grande disputa em torno do Mar Negro que se seguiu ocorreu com a Primeira Guerra Mundial, que fez desaparecer, no final do conflito, os antigos impérios e estabeleceu novos Estados. Quase em simultâneo, e decorrente da revolução de 1917, na Rússia, assistiu-se à construção de um sistema de alianças para, tentativamente, afastar a ameaça bolchevique e, logo depois, consolidar a independência e as fronteiras dos Estados que tinham emergido dos tratados de paz do pós Primeira Guerra Mundial (King, 2008).
A implosão do império otomano que se seguiu, trouxe, porém, outras questões relevantes como o controlo das entradas/saídas do Mar Negro através do Estreito de Dardanelos, Mar de Mármara e Estreito de Bósforo, que são designados genericamente por “Estreitos Turcos”9 (figura 3).
Figura 3 – Localização dos “Estreitos Turcos”.
Fonte: Adaptado de (Microsoft Bing, 2022)
No pós Segunda Guerra Mundial, a União Soviética procurou rever a Convenção de Montreux10 a seu favor, através de negociações bilaterais com a Turquia11. Moscovo pressionou Ancara para permitir que os navios da então União Soviética circulassem livremente através dos Estreitos Turcos, conduzindo mesmo uma demonstração de força militar, naquela que ficou conhecida como a “crise dos Estreitos Turcos de 1946”12. Em parte para resistir a esta pressão, a Turquia abandonou a sua política de neutralidade e recorreu aos Estados Unidos para obter apoio, acabando mesmo por aderir à NATO, em 1952 (Melvin, 2018), (Carter, 2020).
Mais tarde, durante o período da Guerra-Fria, o Mar Negro era praticamente um “lago soviético”, já que, nessa altura, Moscovo exercia o controlo efetivo dos seus satélites comunistas europeus na região13.
Todavia, as influências ocidentais expandiram-se francamente naquela região depois da implosão da União Soviética – em particular, durante os anos 2000, quando a Roménia e a Bulgária aderiram à NATO e a Ucrânia e a Geórgia afirmaram a sua soberania e orientações pró-ocidentais, a fim de dissuadirem potenciais intervenções indesejáveis da Rússia. Tratando-se, pelos motivos antes apontados, de uma zona geoestratégica contestada, a remilitarização do Mar Negro é vista por Moscovo como uma política necessária para impedir a contenção da Rússia e qualquer limitação dos seus poderes em torno das suas fronteiras ocidentais. Nestas circunstâncias, o controlo do Mar Negro é um dos mais importantes objetivos estratégicos da Rússia, face à crescente presença da NATO (mas também da UE) ao longo das suas fronteiras. As intenções revisionistas de Moscovo têm, deste modo, o propósito claro de procurar restaurar o poder internacional da Rússia e limitar a presença da NATO na região, servindo, ainda, como medida de atração para os seus vizinhos naquela região (Bugajski & Doran, 2016).
Noutro âmbito, na demanda de Moscovo por influência crescente em toda a região do Médio Oriente (onde já teve outrora uma posição de relevo, então como União Soviética), o Mar Negro transformou-se na principal plataforma logística de apoio às operações navais da Rússia no Mediterrâneo Oriental, que levou mesmo à manutenção naquela região de alguns navios da frota do Mar Negro14. E o Mediterrâneo poderá mesmo vir a desempenhar um papel fundamental na estratégia naval russa15, devido à sua relevância geoestratégica como ponto de acesso ao sul da Europa, ao Médio Oriente e ao Norte de África (Bugajski & Doran, 2016), (Gorenburg, 2019).
Por outro lado, o Mar Negro pode ser entendido como um ponto vulnerável no flanco oriental da NATO, uma vez que a região é rica em diversidade cultural e étnica e partilha laços históricos com a Rússia, devido, sobretudo, à proximidade geográfica. Nestas circunstâncias, Moscovo pode mesmo vir a interferir nos assuntos dos seus vizinhos – o que, aliás, já aconteceu tanto na Geórgia como na Ucrânia – e pressionar os respetivos governos a alinharem com a Rússia. E se for bem-sucedida na tarefa de “transformar” alguns membros regionais da NATO, Moscovo poderá enfraquecer significativamente a coesão interna da Aliança Atlântica na região e minar a sua credibilidade (Chong, 2017).
A estratégia de segurança nacional russa de 2015 (Russian Federation, 2015), analisada em conjunto com a doutrina militar aprovada em dezembro do ano anterior (Russian Federation, 2014), permite compreender as preocupações estratégicas e os objetivos de longo prazo do Kremlin. Ambos os documentos identificam os riscos e as ameaças para a Rússia e descrevem um país ameaçado pela aproximação da NATO às suas fronteiras16 e a sua perda de influência sobre os Estados ex-soviéticos na sua periferia. Concentram-se (ambos os documentos) na necessidade de restaurar o prestígio e a liderança perdidos sobre os seus vizinhos e de travar a expansão da Aliança Atlântica para Leste. Para a Rússia alcançar tais objetivos, a sua supremacia no Mar Negro é um fator crítico. A geografia única da região confere várias vantagens geopolíticas à Rússia no seu confronto com o Ocidente. Nesse sentido, o Kremlin tem procurado implementar medidas para reforçar a sua influência na região. Em primeiro lugar, tentando enfraquecer os laços da NATO com os Estados regionais, trabalhando no sentido de criar divisões nestas relações e utilizando a força militar, quando necessário, para impedir a expansão da Aliança Atlântica. Em segundo lugar, tem vindo a expandir as suas capacidades militares, a fim de desafiar a presença da NATO na região e, em última análise, exercer o domínio daqueles relevantes espaços marítimos (Chong, 2017).
A região do Mar Negro assume particular relevância estratégica, sobretudo, nos chamados corredores leste-oeste e sul-norte. O acesso de e para o Mar Negro é vital para todos os Estados litorais e vizinhos próximos e uma presença militar substancial contribui para projetar poder em várias regiões adjacentes. Quem controlar ou for predominante no Mar Negro pode projetar poder para a Europa continental, especialmente para os Balcãs e para a Europa Central, bem como para o Mediterrâneo Oriental, para o Cáucaso Meridional e para o Médio Oriente. E a Rússia tem vindo, de facto, a utilizar o Mar Negro na sua política revisionista. Neste sentido, o controlo de portos e de vias de comunicação marítimas proporciona-lhe vários benefícios: ameaça asfixiar as rotas comerciais e energéticas dos Estados da região, impede a NATO de projetar a segurança que desejaria para os Estados-membros do Mar Negro e dá a Moscovo maiores vantagens na exploração de combustíveis fósseis offshore (Bugajski & Doran, 2016).
Por outro lado, a estratégia de segurança nacional de 2021 veio redefinir os interesses nacionais, as prioridades e o planeamento estratégico da Rússia em todas as áreas. Afirma, esta nova estratégia, que a situação político-militar no mundo é caracterizada pela formação de novos centros de poder globais e regionais e pela intensificação da luta por esferas de influência entre eles. Como resultado, a importância do poder militar como instrumento para os sujeitos das relações internacionais atingirem os seus objetivos geopolíticos está a aumentar. As tentativas de exercer pressão política e militar sobre a Rússia, sobre os seus aliados e parceiros, bem como a implantação de infraestruturas militares da NATO perto das fronteiras russas, a intensificação das actividades de informação externa e o ensaio da utilização de armas nucleares e de grandes unidades militares contra a Rússia (através da realização de exercícios militares da Aliança Atlântica) são tidas por Moscovo como ameaças militares contra si. A este respeito, esta nova estratégia refere explicitamente que o Estado russo proporcionará dissuasão estratégica (incluindo potencial nuclear e apoio suficiente para o mesmo), detetará e evitará ameaças e perigos militares atuais e futuros, terá em conta a natureza mutável da guerra moderna e dos conflitos militares, melhorará o treino e a mobilização, preparará a economia e tomará outras medidas que considerar necessárias (Jafarli, 2021).
De acordo ainda com esta estratégia, a perceção da Rússia sobre a ordem internacional permanece inalterada, já que Moscovo há muito que acredita que a ordem mundial unipolar estabelecida após o fim da Guerra Fria acabou e o mundo está inexoravelmente a tornar-se multipolar. Esta visão já se havia refletido, aliás, tanto na estratégia de 2015 como nas suas predecessoras. A única diferença substantiva é que a estratégia de 2015 utilizava o termo “mundo policêntrico”, enquanto nos documentos anteriores era antes utilizado o termo “mundo multipolar” para expressar o mesmo conceito. Na essência, porém, estes termos têm um significado idêntico. Embora nenhum deles seja mencionado na nova Estratégia de Segurança Nacional da Rússia, em muitas ocasiões este novo documento faz eco da visão de uma ordem mundial multipolar. Por exemplo, a estratégia afirma que o mundo moderno está em transformação, o número de novos centros políticos e económicos está a crescer e o reforço das posições das novas potências globais e regionais precipita uma mudança na ordem mundial, levando à formação de uma nova arquitetura, novas regras e novos princípios da ordem mundial. A Rússia considera-se, naturalmente, uma dessas novas potências globais. Nestas circunstâncias, obter influência exclusiva sobre os países do espaço pós-soviético e ser reconhecido como um centro de poder global por outros atores permanecem como duas das suas mais relevantes prioridades. Do conteúdo desta nova estratégia de segurança nacional da Rússia, infere-se que Moscovo encara o Ocidente como o seu principal oponente e deixa de incluir o interesse no diálogo com Bruxelas. Embora a versão de 2015 defendesse a “cooperação mutuamente benéfica” com os Estados europeus (e a UE) e a “harmonização dos processos de integração em território pós-soviético”, a estratégia revista em 2021 não faz qualquer esforço para fundamentar planos para a relação da Rússia com a Europa. Resulta deste novo documento, por fim, que a Rússia tem a intenção não apenas de incrementar a sua intervenção na arena internacional como, sobretudo, no espaço pós-soviético (Bilanishvili, 2021).
As áreas funcionais da política marítima russa são:
• As atividades de transporte marítimo;
• O desenvolvimento e conservação dos recursos do “Oceano Mundial”;
• A investigação científica marinha;
• As atividades navais e outros campos de atividades marítimas.
As atividades navais relacionadas com a proteção e promoção dos interesses nacionais e da segurança da Rússia no chamado “Oceano Mundial” pertencem à categoria das mais altas prioridades do Estado. A marinha é a principal componente do potencial marítimo de Moscovo e um dos seus instrumentos da política externa e destina-se a proteger os interesses russos (e dos seus aliados) nos oceanos, a garantir a estabilidade político-militar nos mares adjacentes e a segurança militar nas diferentes regiões marítimas. As frotas do Norte, do Pacífico, do Báltico e do Mar Negro e a flotilha do Mar Cáspio constituem-se como estruturas-chave na realização das missões (e tarefas) definidas na política marítima nas zonas regionais relevantes (Center for Strategic Assessment and Forecasts, 2017).
O Espaço Atlântico
A doutrina marítima russa de 2015 identifica o Atlântico, o Ártico, o Pacífico, o Cáspio, o Índico e o Antártico como as principais áreas regionais prioritárias da sua política marítima nacional17.
A política marítima nacional russa para o espaço regional do Atlântico é determinada pela crescente pressão económica, política e militar dos países da NATO18, sobretudo, no leste da Europa, e pela subsequente forte redução das oportunidades da Rússia para implementar as suas actividades marítimas no mesmo espaço. Neste sentido, a base da política marítima russa para esta área é constituída por objetivos de longo prazo, tanto para o oceano Atlântico como para os mares Báltico, Negro, Azov e Mediterrâneo. Para os mares Negro e Azov, em concreto, tais objetivos incluem: a modernização e desenvolvimento das infraestruturas portuárias; a melhoria da base jurídica de funcionamento da Frota do Mar Negro no território da Ucrânia, incluindo a preservação da cidade de Sevastopol como a sua base principal; e a criação de condições para a implantação (e utilização) das componentes do potencial marítimo, proporcionando a proteção da soberania russa nos mares Negro e Azov (Center for Strategic Assessment and Forecasts, 2017).
Estratégia naval russa (2015)
Centrando a análise na estratégia naval russa, há a perceção de que tem variado entre as diferentes escolas de pensamento que têm vigorado ao longo da história, muito moldada pela evolução dos contextos político, militar e financeiro de cada época. Desde os anos 1920, grande parte do debate sobre a Rússia como potência continental versus potência marítima tem tido as suas raízes em duas grandes escolas que defendem estruturas navais diferentes: as denominadas “escola antiga” e “escola moderna”. A primeira, tradicionalista, aderiu às teorias de Alfred Mahan19, promovendo uma marinha poderosa, ofensiva e equilibrada com grandes navios de superfície. A segunda acreditava, em oposição à primeira, que as guerras terrestres eram decisivas e, por conseguinte, atribuía um papel secundário à marinha. Esta “escola moderna” desenvolveu o conceito de “defesa ativa”, centrada nas zonas costeiras, e defendeu uma frota mais reduzida, mas altamente manobrável e com grande poder de dissuasão, com prioridade para os submarinos e modernos sistemas de artilharia20 (incluindo sistemas de mísseis) (Parnemo, 2019).
Historicamente, as tentativas de edificar uma marinha oceânica forte na Rússia têm tido a tendência de coincidir com grandes aspirações de poder ou com mudanças nas perceções das ameaças. Neste sentido, a criação da NATO e a ascensão dos EUA, uma potência marítima, como o principal concorrente da Rússia após a Segunda Guerra Mundial, levou a uma tentativa (bem sucedida) de desafiar a perceção da marinha soviética como predominantemente costeira. O período de 1956 a 1985 foi mesmo designado como a época dourada da marinha soviética21. Após a implosão da União Soviética, porém, a marinha russa entrou numa era de declínio ao longo dos anos 1990. Os principais objetivos militares nessa década consistiam em manter a soberania da Rússia, preservar o seu estatuto de superpotência nuclear e lidar com os conflitos no espaço pós-soviético, nenhum dos quais exigia uma marinha oceânica com vastos recursos (Parnemo, 2019).
Todavia, à medida que as condições financeiras melhoraram, já sob a liderança de Vladimir Putin, o foco na reconstrução do poder militar russo (incluindo, portanto, a sua componente marítima), reapareceu como uma prioridade política. O início do conflito armado no leste da Ucrânia (nas regiões de Donetsk e Luhansk), em abril de 2014, levou a uma nova deterioração das relações (já tensas) da Rússia com o Ocidente, enquanto que a anterior anexação da Crimeia (em março do mesmo ano) proporcionou a Moscovo uma maior capacidade de projetar poder em todo o Mar Negro e, por consequência, no Mar Mediterrâneo (Parnemo, 2019).
Esse esforço de reconstrução do poder militar no mar da Rússia está plasmado no programa estatal de armamento 2011-2020, aprovado pelo Presidente Dmitrii Medvedev, em 31 de dezembro de 2010, em que aproximadamente 26 por cento das dotações financeiras foram atribuídas à marinha russa (figura 4).
Service | Allocation (Billion roubles) | Per cent of total funding |
Strategic missile forces Space-air defence forces Air force Navy Ground forces Other | 2.0a 3.4b 4.0 5.0 2.6 2.0 | 10.5 17.9 21.1 26.3 13.7 10.5 |
Total funding | 19.0 | 100.0 |
Figura 4 – Dotações financeiras do programa russo de armamento 2011-2020.
Fonte: (Cooper, 2016)
A importância dos mares Báltico, Mediterrâneo e Negro, no seu conjunto, tem vindo a aumentar de forma consistente, uma vez que oferecem melhores condições para combater um antagonista superior do que em pleno oceano aberto. Nestas circunstâncias, desde a anexação da Crimeia que tem vindo a ser dada ênfase à expansão da presença do poder militar no mar russo na região do Mar Negro. Ao (re)construir a frota do Mar Negro (mantendo em seu poder a base naval de Sevastopol), o objetivo de Moscovo consiste em aumentar a predominância russa e contrariar a presença da NATO na região (Parnemo, 2019).
A doutrina marítima russa (2015)
A doutrina marítima da Rússia, de 2015, proporcionou uma visão não apenas das actividades marítimas em curso, mas também das suas ambições para o desenvolvimento marítimo futuro. Forneceu, ainda, uma visão das aspirações russas de normalização das alterações às fronteiras euro-asiáticas que Moscovo havia forçado recentemente (com a anexação da Crimeia). Ainda assim, aquela doutrina marítima também mostrou a vontade de Moscovo em participar em conferências e organizações internacionais que regiam as relações marítimas entre Estados e o seu desejo de gerir, de forma sustentável e responsável, as questões ambientais e relativas aos recursos marinhos (vivos e não vivos) (Davis, 2015).
Já o documento Fundamentals of the State Policy of the Russian Federation in the Field of Naval Operations for the Period Until 2030, de 2017, afirma que Moscovo não permitirá uma superioridade significativa das forças navais de outros Estados sobre a sua marinha e esforçar-se-á por assegurar que se manterá como a segunda mais capaz em termos globais. Mais refere o mencionado documento que, até 2030, a Rússia deve possuir frotas poderosas e equilibradas em todas as áreas estratégicas, constituídas por navios destinados a realizar missões em regiões marítimas próximas e distantes e em zonas oceânicas, bem como meios da aviação naval e forças costeiras equipadas com armas de ataque de alta precisão, a par de um avançado sistema de abastecimento dos seus meios navais (Davis, 2017).
A Rússia, assumindo o desígnio de grande potência marítima global, deve ter em conta todos os aspetos dos processos geopolíticos que têm lugar no “Oceano Mundial”, nos territórios costeiros e nas águas circundantes. As tendências no desenvolvimento da geopolítica mundial confirmavam que só uma marinha forte garantiria à Rússia uma posição de liderança no mundo multipolar no século XXI, bem como permitiria ao Estado proteger eficazmente os seus interesses nacionais. Parece claro que este novo documento procura recuperar alguns dos pressupostos veiculados por Alfred Mahan – em tempos passados assumidos pela “escola tradicionalista” russa. Todavia, a realidade (muito marcada por uma combinação negativa de fatores relacionados com a incapacidade objetiva da indústria de construção naval russa de produzir, em tempo, novos navios, e com o forte impacto nesse setor provocado pelas sanções ocidentais que se seguiram à anexação da Crimeia) tem sido bem diferente e a Rússia optou por concentrar o seu esforço de construção naval em submarinos e navios de dimensões mais reduzidas22 (Davis, 2017), (Gorenburg, 2017). No fundo, trata-se de investir em meios que lhe possam garantir o controlo de determinados espaços marítimos (claramente em linha com o pensamento de Corbett), como é o caso do Mar Negro23.
Além das prioridades das forças armadas russas – centradas na obtenção de sistemas avançados de mísseis (incluindo mísseis nucleares), submarinos de ataque com mísseis guiados, bombardeiros, navios de superfície (sobretudo, fragatas transportadores de mísseis), caças, mísseis ar-ar e defesas antiaéreas de última geração –, em caso de conflito a Rússia pode ameaçar, com ataques cibernéticos ou cinéticos, Washington e diversas capitais europeias, ou atacar cabos de comunicação submarinos, causando severo impacto na economia global (U.S. Naval Service, 2020).
Do que antecede, parece clara a relevância que a Rússia tem vindo a atribuir à região do Mar Negro – central na sua política externa ao longo de mais de dois séculos, quando estabeleceu a Frota do Mar Negro, a 2 de maio de 1783, baseada em Sevastopol e Feodosia (Crimeia) e em Novorossiysk (na Rússia, em Krasnodar Kray). Mas a região ganhou maior protagonismo já no presente século, sobretudo, a partir de 2014, ano em que Moscovo anexou a Península da Crimeia. Tendo como referência o passado dia 26 de agosto de 2022, a figura 5 mostra os meios navais da Frota do Mar Negro.
Figura 5 – Meios navais da Frota do Mar Negro.
Fonte: (RussianShips, 2022)
A visão de Moscovo para o Mar Negro parece, pois, estar, na atualidade, inequivocamente alinhada com o pensamento de Corbett sobre o modo de utilização dos meios do poder militar no mar para alcançar os objetivos pretendidos, designadamente: ter capacidade para aniquilar uma esquadra oponente (o que pode ser conseguido, sobretudo, com os submarinos de que dispõe na região); bloquear determinados espaços marítimos (sendo para isso relevante os meios de superfície disponíveis); atacar a navegação mercante do oponente e defender a navegação mercante própria (com recursos a meios submersíveis e de superfície); e garantir a salvaguarda de determinadas expedições (para o que pode contribuir qualquer dos meios navais de que Moscovo dispõe na região).
Do que antecede, podemos afirmar que a “região alargada do Mar Negro” assume, no presente, enorme relevância geopolítica, geoestratégica e geoeconómica para a Rússia.
Em termos geopolíticos, esta região é crucial para Moscovo, atento o facto de existirem novas ameaças relacionadas com o alargamento da Aliança Atlântica a Leste, a países outrora na sua esfera de influência (enquanto União Soviética) – aos quais se somam os Estados que, ainda não tendo aderido, têm mostrado, contudo, vontade de o vir a fazer, a prazo, como é o caso da Ucrânia e da Geórgia. Mas igualmente relevantes são as chamadas “regiões contestadas”, onde existem comunidades russófilas relevantes – por vezes, mesmo maioritárias – cuja segurança Moscovo pretende garantir a todo o custo.
Em termos geoestratégicos, a supremacia que Moscovo tem vindo a procurar alcançar na região, sobretudo desde a anexação da Crimeia, em 2014, permitir-lhe-á projetar poder militar não apenas em todo o Mar Negro como, ainda, no Mar Egeu e, sobretudo, no Mediterrâneo – um amplo espaço marítimo que tem vindo a tornar-se cada vez mais relevante na estratégia russa de expansão dos seus interesses na região do Norte de África e no Médio Oriente, procurando regressar a regiões onde já teve posições muito relevantes (por vezes, mesmo dominantes), então como União Soviética.
Em termos geoeconómicos, o Mar Negro constitui-se como um importante corredor de energia – em particular de gás natural – não apenas proveniente das fontes aí existentes, mas também da que transita através de gasodutos vindo de Norte e da região do Mar Cáspio.
Para almejar alcançar os seus objetivos estratégicos para a região do Mar Negro e ter, em simultâneo, um papel relevante no chamado “Oceano Mundial”, Moscovo vê a consolidação do seu poder militar no mar como absolutamente fundamental. A estratégia naval russa tem sido alinhada, em particular ao longo da segunda metade do século XX e até à atualidade, com as teorias dos estrategistas clássicos Mahan e Corbett, variando entre a opção por uma marinha oceânica relevante – capaz de desafiar o grande poder marítimo global instituído (os EUA) – e uma marinha centrada antes em zonas costeiras, com uma frota mais reduzida, mas altamente manobrável e com grande poder de dissuasão. É esta última opção que tem vindo a ser seguida nos anos mais recentes por Moscovo (para o que muito contribuíram as dificuldades que resultaram das sanções impostas pelo Ocidente à Rússia que se seguiram à anexação da Crimeia) e que se tem manifestado, por exemplo, na edificação de uma Frota do Mar Negro com suficiente capacidade dissuasora para aniquilar qualquer esquadra oponente, bloquear determinados espaços marítimos e defender a navegação mercante própria.
Concluímos, afirmando ter ficado demonstrado que o Mar Negro se constitui, de facto, como um espaço de afirmação internacional da Rússia, já que tem assumido um papel central na política externa de Moscovo, atenta a sua importância geopolítica (relacionada com a contenção dos poderes ameaçadores emergentes na região no pós Guerra-Fria e a segurança das populações russófilas), geoestratégica (de projeção de poder bem para lá do espaço físico do Mar Negro e uma saída para os chamados “mares abertos”, que lhe permita expandir a sua presença e influência em regiões estrategicamente importantes do Médio Oriente e do Norte de África e que pode ser vista, em simultâneo, como uma defesa avançada da fronteira russa do Mar Negro contra as ameaças navais da NATO) e geoeconómica (pelo facto de se assumir como um corredor essencial para o transito de energia para a Europa, que Moscovo pretende dominar).
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1 Historicamente, o acesso a portos de águas quentes no Mediterrâneo Oriental tem sido de grande importância para as autoridades russas, já que faz parte do seu esforço para guindar a Rússia à condição de “grande potência” na política europeia (Borshchevskaya, 2020).
2 O Egito é o terceiro maior destinatário de armamento da Rússia (entre 2017-2021), logo atrás da Índia e da China que ocuparam as duas primeiras posições. A título de exemplo, naquele período, tanto a China quanto o Egipto receberam evoluídos sistemas de defesa aérea e aviões de combate russos (Wezeman, et al., 2022).
3 Os primeiros contactos diplomáticos entre a Rússia e os povos do norte do Cáucaso fazem-nos recuar ao reinado de Ivan IV (o Terrível), no século XVI. Quase dois séculos depois, Pedro I (o Grande) deu início a uma série de campanhas militares no litoral norte do Mar Negro, incursões essas que acabaram, todavia, por ser abandonadas, com os territórios a passarem para domínio otomano (Melvin, 2018).
4 A Guerra Russo-Turca de 1568-70 foi a primeira de 12 guerras entre os dois oponentes e assinalou o início de uma luta pelo domínio sobre a região do mar Negro entre os impérios russo e otomano que durou até à Primeira Guerra Mundial (Melvin, 2018).
5 Ainda que Catarina II (a Grande) tenha logrado vencer o sultão otomano na Guerra Russo-Turca de 1768-1774 (King, 2008).
6 À medida que se tornava mais claro para os estrategistas europeus que a Rússia pretendia lucrar à custa do sultão otomano, os decisores europeus foram rápidos a reforçar o apoio ao sultão, já que o viam como um amortecedor contra potenciais invasões russas (King, 2008, p. 6).
7 Em 1801, a Rússia anexou o reino de Kartli-Kakheti – que compreendia grande parte da Geórgia atual – com isso logrando estabelecer uma base de apoio a sul das montanhas do Cáucaso (King, 2008, p. 6).
8 A Guerra da Crimeia terminou formalmente com a assinatura do Tratado de Paris, a 30 de Março de 1856, depois da Rússia ter aceitado uma humilhante derrota contra a aliança composta pela Grã-Bretanha, França, Império Otomano e Sardenha (Brain, 2022).
9 Os “Estreitos Turcos” são um sistema único de vias navegáveis constituído pelos Estreitos de Bósforo e de Dardanelos e pelo Mar de Mármara, que liga o Mar Negro aos mares Egeu e Mediterrâneo, e estão entre as vias navegáveis estrategicamente mais relevantes do mundo (Republic of Türkiye, 2022).
10 Trata-se de um tratado assinado em junho de 1936 que passou a conferir à Turquia o controlo dos “Estreitos Turcos”, permitindo-lhe impor restrições à passagem de navios beligerantes. A convenção – que se mantém em vigor – garante a livre passagem de navios civis em tempos de paz, mas restringe fortemente a passagem de navios militares não-turcos (League of Nations, 1936).
11 Para a União Soviética, os Estreitos Turcos eram absolutamente vitais – porque se constituíam como um corpo de água contínuo que permitia ligar o Mar Negro aos mares Egeu e Mediterrâneo – e tinham uma enorme importância estratégica e económica. A única forma dos meios da marinha soviética poderem transitar dos seus portos do mar Negro para o Mediterrâneo (e para os demais espaços marítimos globais) era através daqueles estreitos (Carter, 2020).
12 O vice-primeiro-ministro soviético naquela época, Lavrentiy Beria, declarou que uma faixa da Turquia oriental perto do Mar Negro pertencia à Geórgia, então parte da União Soviética. Tinha sido roubada, afirmou, pelos turcos durante os dias do império otomano. Moscovo queixou-se também de que navios não provenientes do Mar Negro tinham sido autorizados a transitar pelos estreitos, contrariando o veiculado na Convenção de Montreux. A 7 de Agosto de 1946, a União Soviética entregou formalmente à Turquia uma nota afirmando que este país tinha violado a Convenção de Montreux e que era, portanto, necessário um novo tratado. Seguiu-se uma escalada militar soviética (Carter, 2020).
13 Com as anexações territoriais soviéticas antes, durante e após a Segunda Guerra Mundial, o estabelecimento de regimes comunistas pró-soviéticos na Europa Central e a criação do Pacto de Varsóvia, em 1955, o Mar Negro ficou sob controlo soviético durante a guerra fria, com exceção da costa da Turquia e dos Estreitos Turcos (Melvin, 2018).
14 As operações militares russas na Síria, por exemplo, foram apoiadas por meios navais que Moscovo manteve no Mediterrâneo Oriental, oriundos da frota do Mar Negro (Chong, 2017).
15 Manter uma presença naval no Mediterrâneo é, porventura, uma estratégia mais eficaz para Moscovo do que optar, em alternativa, pela edificação de uma marinha oceânica, que possa ser capaz de ombrear com a marinha norte-americana, dado que a Rússia não tem recursos que lhe permitam desafiar a supremacia naval dos EUA em todo o mundo. O enfoque de Moscovo no incremento de uma esquadra mediterrânica é um objetivo limitado, é certo, mas muito mais realizável e alinhado com os objetivos da política externa russa na região (Gorenburg, 2019).
16 De acordo com um alto funcionário russo citado pela BBC, em setembro de 2014, a Rússia iria alterar a sua estratégia militar em consequência da crise na Ucrânia e da presença da NATO na Europa Oriental (BBC, 2014).
17 A base desta política na área prioritária regional do Atlântico é a implementação de objetivos de longo prazo no próprio Oceano Atlântico e nos mares Báltico, Negro, Azov e Mediterrâneo: assegurar uma presença naval consistente na região; e desenvolver o volume do transporte marítimo, da pesca, das pesquisas científicas marinhas e a monitorização dos ecossistemas marinhos, e incrementar os esforços de exploração geológica (na zona sob jurisdição russa) de sulfuretos polimetálicos do fundo do mar (Russia Maritime Studies Institute, 2015).
18 Importa ter presente que desde a crise na Ucrânia, em 2014, que as relações entre a Rússia e o Ocidente sofreram um declínio constante, o que levou mesmo os dirigentes de Moscovo a manifestarem receio de uma invasão da NATO na região do Mar Negro, o que se constituiu como um fator-chave que exigia o reforço das forças militares russas na região e da Frota do Mar Negro, em particular. A este propósito, o ex-comandante daquela frota, Admiral Alexander Vitko, foi claro ao ligar a modernização dos meios navais a uma perceção acrescida da ameaça da NATO, materializada na usual presença naval ocidental no Mar Negro nos últimos anos, bem como a um aumento do número de exercícios na região efetuados pelas marinhas de Estados-membros da Aliança Atlântica. Destacou, ainda, a realização de voos “quase diários” ao longo da fronteira marítima da Rússia por aeronaves de recolha de informação operacional e por UAV (Gorenburg, 2018).
19 Proeminente estrategista naval norte-americano do século XIX, autor do célebre livro The Influence of Sea Power Upon History, 1660-1783, no qual advogou que a proteção de portos e linhas de comunicação marítima e a ampliação do poder dos Estados exigiam frotas oceânicas expressivas em vez de simples forças de defesa costeiras (Mahan, 1987).
20 No fundo, aproximando-se mais da visão de outro grande estrategista clássico, Julian Corbett, plasmada no seu livro Some Principles of Maritime Strategy, no qual defendeu que o objetivo da guerra naval devia ser sempre, direta ou indiretamente, assegurar o command of the sea, ou evitar que o oponente o garantisse. Concretizando, Corbett referiu que o objeto da guerra naval deveria ser o controlo de determinados espaços e não a conquista de territórios. Ocupando vias de comunicação marítimas e fechando os pontos onde terminam, um país assumia vantagem clara perante o oponente (Corbett, 1918).
21 De acordo com James Kraska, a ascensão da frota soviética com os seus submarinos dotados de mísseis balísticos, na década de 1970, marcou mesmo uma posição de paridade estratégica com os EUA (Kraska, 2011).
22 Nos navios de superfície, o foco será em novas corvetas de diferentes tipologias (que terão maior deslocamento e melhor armamento do que as classes existentes), bem como o início da produção em série das fragatas da Classe Almirante Gorshkov, há muito atrasadas (Gorenburg, 2017).
23 Essa é, aliás, a razão pela qual o programa estatal de armamento para o período 2018-2027 refere que a Rússia deve estar preparada para se manter à frente dos seus concorrentes em algumas capacidades concretas (como mísseis antinavio, sistemas de guerra eletrónica e de defesa antiaérea), deve procurar ainda reduzir a distância em áreas como os drones e as munições guiadas com precisão, em detrimento de outros projetos nos quais assume não ser capaz de alcançar os seus competidores (designadamente, ao nível de navios de superfície e de sistemas de controlo automatizados) (Gorenburg, 2017).
Doutor em Relações Internacionais. Investigador associado no Centro de Investigação e Desenvolvimento do Instituto Universitário Militar.