Nº 2652 - Janeiro de 2023
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Os Hunos, uma vez mais: A morfologia do Império Romano e alguns apontamentos sobre o contexto de surgimento dos Hunos
Prof. Doutor
Henrique Modanez de Sant´Anna

The coming Huns

Tread on their Eden, Attila!

V. Ivanov

 

Where are you Huns who are coming,

Who cloud the wide world with your spears?

I hear your pig iron tramping

On the still-undiscovered Pamirs.

Like a drunken horde from dark field camps

Fall on us on a clamoring flood…

To revive our too-soon-grown-old bodies

With a fresh surge of burning blood. […]1

Valeri Briusov, 1905

 

 

1. Entre relatos modernos e fontes antigas

Em seu poema sobre os Hunos, o poeta russo Briusov (1873-1924) mescla um interesse confesso em questões apocalípticas com um estereótipo há muito consolidado no pensamento moderno, não apenas do lado ocidental: a chegada catastrófica, violenta e barbárica dos Hunos à Europa. De fato, se em seu poema intitulado Kon’ bled (Corcel amarelo), de 1903, a mente apocalíptica do poeta se faz presente por meio de uma citação de Apocalipse 6:8, em The Coming Huns ela evoca de forma mais direta Átila (434-453) e os Hunos como flagelos do mundo civilizado que tanto desprezavam. A alusão ao poema contemporâneo de Ivanov revela sua visão sobre um país que experimentava o que chamou de “uma época de criatividade”2 e estava suscetível ao colapso da fé cristã3, protegida apenas por “sábios e poetas inúteis” em campo de batalha4. Mais importante para este artigo, entretanto, é o repetido suspense da chegada dos invasores Hunos, oriundos de territórios asiáticos incertos e sedentos de pilhagens, saques e outras formas de violência (“Like a drunken horde from dark field camps”). Tal identificação dos Hunos como arautos de um apocalipse civilizacional, incluindo a cena poética russa imediatamente anterior à abolição da monarquia em 1917, ecoa uma interpretação comum em outras tradições literárias mais antigas.

Outrossim, a problemática dos Hunos, ou especificamente o limite imposto à investigação histórica profissional sobre esse povo, não é uma constatação recente. Nos anos 1950, Hambis5, orientalista francês cuja especialidade eram povos da Ásia Central e a chamada Haute-Asie (entre a Ásia Central, a Sibéria e o Himalaia), desenvolvera a questão da seguinte maneira: Qual era sua origem? A que família linguística pertencia sua língua? Os Hunos eram realmente chineses hiong-nou6 ou um dos povos que constituíam sua confederação, se é que faziam parte dela? Todas essas perguntas, alertava Hambis pela primeira vez em sua comunicação à reputada Société Asiatique em 13 de julho de 1957, não podiam ser respondidas senão pela formulação de hipóteses ainda muito incipientes. As próprias perguntas iniciais postas por ele são abertamente básicas e ainda hoje penosas de responder, pelo que se compreende a fragilidade anunciada de suas conclusões quanto à dificuldade da interpretação das informações arqueológicas sobre os Hunos e seus possíveis ancestrais7.

Qualquer esforço para compreender historicamente os Hunos remonta, portanto, à crítica das fontes mais comumente empregadas, antes mesmo de incluir fontes chinesas pouco acessíveis aos classicistas preocupados com o Império Romano ou com o que ocorreu com seus territórios após o tsunami huno.

Especificamente entre as fontes clássicas, os Hunos são mencionados (muitas vezes en passant) como Hunnī, Chūnī ou Oὖννοι no total quarenta e seis vezes por autores gregos, romanos ou em obras de autoria disputada ou coletiva, a saber8: Tácito (56-120) (Fragmentos das Histórias 79), Décimo Ausônio (310-395) (Poemas Pessoais) (Epigramas sobre assuntos variados 26), Amiano Marcelino (330-400) (História, várias passagens), Cláudio Claudiano (370-404) (Contra Rufino 1.323-325; 2.269-271), Sidônio Apolinário (430-489) (Poemas: Panegírico sobre Antêmio 333, 344) (As Cartas de Sidônio 8.9: Carta para seu amigo Lamprídio), Jerônimo (347-420) (Cartas: Carta 107.2, para Leta; Carta 60.16, para Heliodoro por ocasião da morte de Nepotiano; Carta 77.8, para Oceano, sobre Fabíola, matrona romana que havia acolhido Jerônimo como guia para sua vida espiritual), Procópio de Cesareia (500-565) (História das Guerras 1.3, 22; 2.2, 26; 4.1; 6.1; 8.5, 18, 19, 22) (História Secreta 2.29; 8.5; 11.5; 18.20, 25; 21.26; 23.6, 8) (Sobre os edifícios 2.1; 4.1, 11; 3.7), Beda (672-735) (História eclesiástica do povo inglês 1.13; 5.9) e Leão, o filósofo (870-??) (Antologia Grega 9.21010).

Listam-se apenas treze pertencidas à tradição literária não historiográfica e outras trinta e três compartilhadas por Amiano Marcelino e Procópio de Cesareia, com um tímido e prematuro registro de Tácito, cujo fragmento foi preservado em Orósio (375-418). Entre Amiano Marcelino e Procópio, tendo em vista a proximidade da porção oriental do império romano com o território original dos Hunos, não é surpreendente que o segundo possua o total de vinte e três registros. O mais interessante, na verdade, é o fato de o primeiro, em seus dez registros sobre os Hunos, conter o relato mais pitoresco que se tem sobre os seus costumes, belicismo e expansão militar. À vista disso, a historiografia dos Hunos confundiu-se inevitavelmente com os estudos críticos sobre Amiano Marcelino, precisamente sobre o livro 31 de sua História, bem como com as formas que a história imperial romana assumiu muitos séculos mais tarde na historiografia profissional.

Neste artigo, os apontamentos sobre os Hunos partirão de uma proposta de reflexão sobre a cronologia da história romana e suas implicações terminológicas para a compreensão histórica do período tardo-imperial (do qual os Hunos fazem parte, sob a ótica dos romanistas), precisamente em torno de como esta é moldada pela forma que concebemos o passado11. A pesquisa historiográfica tende a tratar a questão exclusivamente sob a perspectiva romana e a partir do que Kim chamou de “leitura internalizada de Amiano Marcelino”, cujo relato sobre os Hunos deveria ser, segundo Bona e Kim, em uma conclusão demasiado radical, definitivamente “relegado ao reino dos contos de fadas”12. Apesar dos avanços recentes na historiografia sobre os Hunos e outros povos asiáticos, boa parte do que é produzido sobre Roma gera um relato bastante parcial e incorpora, com mais ou menos energia, a perspectiva das fontes romanas. Cumpre, portanto, refletir sobre suas bases.

 

2. Poderes em rota de colisão: o Império Romano, os Hunos e a escrita da história antiga

Tradicionalmente, divide-se a história da Roma Antiga em três períodos principais que refletem o regime a que os romanos estavam submetidos: Monarquia (753-509 a. C.), República (509-27 a. C.) e Império (27 a. C.-600 ou 476, ainda mais tradicionalmente). A esta divisão pode-se acrescentar, ainda, subdivisões importantes para a compreensão mais direcionada de certos contextos: durante a época republicana, costuma-se tratar de cinco fases (509-387 a. C., 387-272 a. C., 264-146 a. C., 146-60 a. C. e 60-27 a. C.) em consonância com a expansão territorial de Roma e suas questões inter-
nas; no período imperial, tem-se como proposta a separação entre a Era de Augusto (43 a. C.-69), o Alto Império ou Principado (70-192), a Crise imperial (193-337), o Baixo Império ou Dominato (337-425) e a Antiguidade Tardia (425-600)13. É somente no decorrer das duas últimas que os Hunos ganham relevância na história do Império Romano.

Ao lidar com essa cronologia, o historiador ou o pesquisador de humanidades interessado na história romana antiga deve compreender que o ordenamento do passado em matéria inteligível é tanto uma atividade metódica dependente da lógica no trato dos documentos antigos e na elaboração do argumento científico, quanto uma convenção acadêmica. Isto significa que as convenções adotadas (datas escolhidas para o início e o fim de épocas históricas, mais particularmente) não encerram, em um único evento, uma época inteira ou seu “espírito” (Zeitgeist), ao mesmo tempo em que não são elucubrações arbitrárias. Antes, seguem padrões de pensamento que se consolidam na academia e que, exatamente por sua natureza e dinâmica interna, exigem reflexão e atualização constantes. Assim, muito embora a periodização da história de Roma na Antiguidade tenha sido consagrada em três grandes épocas, não é tarefa menos importante criticar as bases a partir das quais esses raciocínios foram constituídos, tornando evidentes os limites da periodização corrente e suas importantes implicações na compreensão do passado a que dá ordem.

Em primeiro lugar, deve-se destacar que o espírito que vivifica as divisões e subdivisões tradicionais da história de Roma é comumente o do desenvolvimento de uma civilização ocidental que ora se fortalece em atividades militares contra povos não-ocidentais (na Antiguidade Clássica: Persas, Indianos, Cartagineses, Gauleses/Celtas, Egípcios, Partas, Germanos, Hunos, entre outros), mesmo nas eventuais derrotas, ora se deteriora moralmente e declina politicamente em contato cultural com esses mesmos povos. Afinal, o que é o discurso de barbarização do exército romano (desenvolvido de forma clássica por Ferrill em 1988, no bojo do argumento sobre um colapso militar) senão precisamente a cristalização desta ideia? O exército romano teria, entre outras coisas, perdido sua disciplina e seu valor cívico, tais quais encontrados nos tempos republicanos ou mesmo no Principado, apesar de as reformas de Augusto terem acentuado sua profissionalização.

O que se esquece amiúde é que essa lógica classificatória é um produto tão cultural quanto as guerras travadas, com uma agenda própria e específica, e que mesmo em tempos conflituosos há interação e assimilações socioculturais que deveriam, por princípio, inibir sua diluição em uma grande e plana narrativa histórica. Trata-se sobretudo da questão historiográfica mais ampla em torno do eurocentrismo das formas do passado, que impõe dois caminhos possíveis, como argumentado corretamente por Santos, Nicodemo e Pereira, em artigo sobre historiografias periféricas em perspectiva global ou transnacional: ou assumimos que a história ou a historiografia é o que é apenas em relação de dependência com a história europeia, ou enfrentamos o desafio de reformular a história a partir de outras experiências do passado, tornando-as transnacionais ou globais, sem deixar de incorrer no inevitável risco de negar a pertinência da historiografia como disciplina14. Os Hunos, que não os interessam diretamente, podem, no entanto, fomentar o argumento sobre a inclusão de outras experiências do passado em uma lógica distinta da tradicional, que se impôs à história antiga de maneira tão categórica.

No caso de Roma, pelo menos desde a monumental obra de Gibbon, intitulada Declínio e Queda do Império Romano, engendrou-se na historiografia profissional, diletante e no senso comum, a ideia de um império “assassinado” por invasões bárbaras porque há muito deixou de ser uma república virtuosa (como em Ferrill, citado anteriormente). Esta havia se tornado uma memória lívida de um passado glorioso incansavelmente revisitado em busca de lições de liderança política e militar. De fato, segundo esse mesmo raciocínio, por causa de todas as distorções que os comportamentos viciosos dos aristocratas romanos adquiriram no século I a. C., a virtuosa república teria cedido lugar a uma autocracia perigosa, mas necessária. Assim teria começado o Império, e por razões similares os nobres imperadores gradualmente deixaram de ser principes para assumirem o posto de domini, ou senhores. Ao menos comportavam-se como se cressem nisso, tendo sido frequentemente percebidos pelo ridículo de sua apresentação pretensamente divina e temidos pelos excessos cometidos na vida pública e privada pelos seus próprios contemporâneos romanos. Suetônio é um bom exemplo desse registro, em suas famosas biografias dos doze Césares. O fim do Império Romano, assim, deveria mais a esses fatores do que ao grau civilizacional e à crescente sofisticação político-militar dos povos invasores, porque interessa mais saber de que maneira o Ocidente se constituiu como tal desde suas raízes clássicas e de que forma ele pode sobreviver às ameaças “estrangeiras” desde os tempos antigos.

Em segundo lugar, pode-se ressaltar outra questão digna de nota com as divisões e subdivisões da história romana a partir de sua centralização na narrativa histórica sobre a Antiguidade, ao lado dos gregos: os limites da terminologia empregada, nomeadamente a que diz respeito ao período imperial. Nosso termo “império” deriva do latim imperium, que na Antiguidade Clássica por séculos significou apenas “comando militar”. Disso deduz-se, corretamente, que a palavra imperator aludia a um magistrado com poderes militares ou simplesmente um general em sentido lato, um comandante de tropas. Assim, por excelência, imperium era um poder pessoal e temporário, tendo adquirido a conotação de um vasto território conquistado pelos romanos apenas tardiamente15. Seguramente, no caso de Roma, o historiador não está a lidar com “uma única sociedade ou economia ‘romanas’, mas uma imensa diversidade de idiomas, costumes, culturas e sociedades”16.

Quanto aos Hunos, preliminarmente, o fato é que as fontes antigas não fazem alusão a um Império Huno provavelmente por não saberem o suficiente a seu respeito ou por não reconhecerem sua expansão militar senão como uma onda violenta de invasões de hordas de bárbaros desorganizados, diferentes dos demais por sua aparência e seus costumes. Esta é uma lógica que atinge mesmo a cena literária russa de início do século XX, como citado no começo deste artigo. Os termos Hunnī, Chūnī ou Oὖννοι são designações étnicas apenas, e bastante vagas, como outras empregadas para outros povos “excluídos da cultura e da civilização da província [romana]”17. Da mesma maneira, é preciso destacar de quais Hunos estamos a tratar, posto que são entendidos a partir de épocas e regiões multifacetadas. Historicamente, havia tantos Hunos quantos entendimentos díspares sobre eles, vivendo num estilo de vida seminômade e pastoril. A própria ideia de uma organização supostamente tribal já impõe problemas suficientes. Entre os Hunos xiongnu, os mais antigos que se consegue mapear, por exemplo, pode-se já falar em império, como argumentado por Di Cosmo. Estes Hunos, segundo ele, possuíam:

Uma formação política que se estendia muito além de seu território original ou fronteiras étnicas e englobava, por conquista direta ou imposição de sua autoridade política, uma variedade de povos e terras que pode ter tido diferentes tipos de relações com o centro imperial, constituído por um clã imperial e seu líder carismático.”18

Note-se ser esta uma percepção pré-moderna de império, ou que parte de critérios de inteligibilidade atuais e adequados à tentativa genérica de classificar impérios pré-modernos. Torna-se eficiente à descrição dos Hunos simplesmente em função da escassez de terminologia específica (e de seu campo semântico correspondente) na documentação antiga. Disso se extrai, consequentemente, outra questão importante: se a situação é essa para os Hunos xiongnu séculos antes, o que dizer sobre os Hunos registrados na documentação greco-romana?

Os Hunos que penetraram o pensamento romano mais ostensivamente nos anos 370 não eram mais xiongnu. Na verdade, qualquer tentativa de identificar seus ancestrais mostrou-se meramente especulativa19. Em 1923, quase cem anos antes de Kim, John Bury esboçava o mesmo diagnóstico, com algumas suposições adicionais interessantes retiradas da consulta aos Anais Chineses20 e obras historiográficas anteriores à sua, como a do orientalista francês Joseph De Guignes21 (que possui um bom resumo dos principais eventos políticos):

Como governantes da Ásia tartárica, os zhu-zhu sucederam os sien-pi, e os sien-pi foram os sucessores dos hiung-nu [grafia alternativa usada por Bury]. Supõe-se que o nome ‘hunos’ seja simplesmente uma corrupção grega de hiung-nu; e pode muito bem ser isso mesmo. A designação (que significa ‘escravos comuns’) foi usada pelos chineses para todos os nômades asiáticos. Mas os eventos que antecederam imediatamente a chegada dos hunos à Europa não tiveram diretamente nada a ver com o colapso do poder de outrora dos hiung-nu.”22

Diante disso, deduz-se que, embora a digressão feita sirva ao propósito de indicar certo grau civilizacional entre os Hunos séculos antes do Império Romano, a maneira historicamente mais segura de abordar o tema é por meio da identificação dos povos que ocupavam o território europeu quando da chegada dos Hunos no Império Romano. Feita essa breve contextualização, será possível entender o papel dos Hunos nessa cena política e como é possível compreendê-los pelo que sabemos de sua organização nas fontes dos séculos posteriores.

O primeiro era o Samartiano, que no século IV encontrava-se bastante fragmentado e marginalizado, tendo perdido seus territórios na Ucrânia e na Romênia para povos germânicos “samartianizados”. Em boa medida, os territórios dos Samartianos resumiam-se no contexto da invasão huna do Império Romano ao sul da Rússia, de onde vinham seus maiores representantes nesse contexto, os Alanos23. Em seguida, destacavam-se os Godos e outros povos germânicos que marginalizaram os Samartianos e dominaram a Europa central e suas porções mais orientais, muitos dos quais, segundo Kim, não por acaso imitavam práticas encontradas na estepe, mesmo que em estágio rudimentar. Segundo ele, toda a organização tribal marcadamente aristocrática dos Godos situados mais ao oriente havia sido importada dos povos da estepe. Até mesmo o sucesso militar dos Ostrogodos nos séculos seguintes deveu-se largamente ao conhecimento de poliorcética e das táticas de cavalaria encontradas nessa região. A evidência mais clara disso, conclui, era a diferença na organização desses povos com os situados na porção ocidental da Europa, como os Francos e Alamanos, fortemente influenciados pelos Romanos (com reguli ou chefes tribais à frente e, quando momentaneamente unificados por uma causa comum, com iudices ou comandantes-em-chefe).

Kim não foi o único a argumentar nessa direção. Rance, antes dele, notou corretamente que, apesar de toda a obscuridade do desenvolvimento histórico do cavaleiro-arqueiro romano no século V, não se pode deixar de pontuar os avanços feitos pelos Hunos nas tradições mesopotâmicas mais antigas, das quais os Romanos se serviam por meio das tropas auxiliares ou mercenárias24. Em resumo, segundo Rance, com os Hunos surgiram novos desenhos de arcos compostos mais pesados, equipamentos e técnicas novas de arco e flecha e selas altas arqueadas. Dois anos antes, Heather estipulou (a partir de uma comparação com o arco turco) que o alcance das flechas hunas disparadas da cavalaria fosse algo entre 150 e 200 metros contra oponentes sem armadura e entre 75 e 100 metros contra os que vestissem armadura25.

Infelizmente, para a poliorcética, historiadores militares preferiram deixar em segundo plano a contribuição dos chineses e de outros povos asiáticos. Vejamos o que defendeu Rance com base no que afirma um único fragmento de Prisco (século V)26:

Os Hunos foram mais bem-sucedidos devido à disponibilidade de um grande número de mercenários e ao acesso episódico à tecnologia de cerco romano, como durante seus cercos decisivos de Naísso, em 442, e Aquileia, em 452 (Priscus frr. 6.2, 22.1). Fatores semelhantes subjazem o sucesso dos Ávaros no final do século VI e início do século VII, embora também fossem significativos os novos tipos de maquinário de cerco que eles introduziram na Europa a partir da esfera cultural chinesa.”27

Por fim, como terceiro povo a ocupar a Europa no momento da chegada dos Hunos, contavam-se os romanos, um verdadeiro mosaico de povos que gozavam do direito (e do dever, incluindo o pagamento de impostos!) à cidadania romana. Ainda em condições de resistir às invasões de povos sem grau político-organizacional equivalente ou sem meios necessários a tirar proveito de vitórias militares pontuais, o Império resistia. E impressionava. Segundo Kim, o Império Romano do século IV atingiu seu ápice em termos de organização administrativa e administração burocrática de recursos militares. Isto torna-se ainda mais evidente com as estimativas sobre a capacidade de recrutamento de que dispunha o Império: se no final do século III os Romanos contavam com cerca de 300.000 homens, em meados do século IV essa capacidade subiu para algo entre 400.000 e 600.000 homens28.

O tsunami huno mudou drasticamente o cenário que separava os territórios desses três povos. Primeiro, os Hunos subjugaram os Alanos. Depois, os Godos na Ucrânia e na Romênia, o que os forçou à travessia do Danúbio e, consequentemente, à chegada ao território romano. Roma estava sob ataque, de fato, por todos os lados: Burgúndios que atingiram o Reno, Godos empurrados pelos Hunos na fronteira do Danúbio, Alamanos na Gália e na Récia (atual sul da Alemanha e Áustria), outros Godos na Panônia e na Trácia e por Persas na Armênia. Gouveia Monteiro rememora assertivamente, para além do diagnóstico militar supracitado, as palavras de Amiano Marcelino (26.4.5): “todo o mundo romano escutava as trombetas que chamavam para a guerra” (trecho completo: Hoc tempore velut per universum orbem Romanum bellicum canentibus bucinis excitae gentes saevissimae limites sibi proximos persultabant). A diferença dessa travessia do Danúbio pelos godos é que a coligação formada por Ostrogodos sob o comando do Visigodo chamado Fritigerno os levou ao território romano em grande número, tornando esse processo fato irreversível. E mais: a “hostilidade e cupidez dos oficiais romanos” (que demandavam, ao que parece, crianças godas como escravos em troca de carne de cão) fizeram com que os recém-chegados optassem por uma guerra sem trégua, que resultou tanto em incursões em províncias romanas quanto em uma batalha decisiva próxima a Constantinopla em 378. Dezessete anos após a batalha de Adrianópolis, finalmente, os Hunos atravessaram o Cáucaso e arrasaram a Capadócia, a Cilícia (ambas na atual Turquia) e o leste da Síria29. Os Hunos haviam se tornado o flagelo dos Romanos.

 

3. Considerações finais

Raramente os Hunos são vistos como organizados em forma de Estado, posto que a historiografia tem preferido interpretá-los como uma horda de chefes tribais pobremente organizados. Kim faz bem em sustentar que as próprias fontes romanas indicam situação contrária, quando lidas com essa preocupação: para além da divisão hierárquica entre rei supremo e reis subordinados entre os Hunos no tempo de Karaton e Uldino (ele próprio regulus no início), há os comentários do mesmo Prisco30 citado anteriormente por Rance para argumento contrário ao alto nível de organização e sofisticação militar dos Hunos31. Segundo Prisco, Átila possuía uma força militar que nenhum povo podia enfrentar. O mesmo raciocínio é encontrado anteriormente, recorda Kim, em Aurélio Vitor, que classificou os Hunos e os Alanos a eles submetidos como um perigo extremo (literalmente, extremum periculum) ao nome de Roma. Assim, tem-se que esses povos eram rivais à altura, quando não superiores militarmente a Roma, e não uma mera horda de bárbaros. Isto posto, é de se observar que tamanha sofisticação tática e estratégica dependia de grande controle político exercido por membros da família real e comandantes de uma significativa força militar, bem como da existência de embaixadas, banquetes reais, secretários imperiais, guarda pessoal do imperador, legados divididos de acordo com sua função militar específica (οἰκεῖοι ou retentores e λοχαγόι ou comandantes/capitães) e até mesmo um sistema de agricultura antigo entre os povos subjugados na Ucrânia (informações retiradas do fragmento 11 Prisco). Tudo isso indica uma burocracia imperial e uma surpreendente sobrevida da estrutura hierárquica e estratificada de governo xiongnu entre os Hunos da Europa32, mesmo que não seja possível estabelecer um vínculo histórico direto entre os dois tipos de Hunos.

Os Hunos promoveram, assim, em seu contato militar com Alanos e Godos, uma espécie de “micro-globalização”33 similar a dos Romanos no Mediterrâneo, pelo que se explica a maior complexidade política da coligação ostrogoda nos anos 370, a atualização tática dos Godos nas manobras de cavalaria em Adrianópolis e seus conhecimentos então mais sofisticados de poliorcética. Nesse contexto, civilização e império se complementam, da mesma forma que Romanos e Hunos não deveriam ser tão facilmente separados por qualquer um desses elementos. Tudo isto forma um conjunto de indicativos civilizatórios, ainda que subsista certa dificuldade em aceitar, de acordo com e seguindo a tradição de fontes clássicas, uma civilização distinta da greco-romana.

 

4. Toponímia

Aquileia: Cidade romana antiga fundada no primeiro quarto do século II a. C., hoje comuna italiana situada na província de Údine. Estratégica para a expansão territorial até o Danúbio, era também o ponto de chegada por uma antiga rota comercial que ligava o Mar do Norte e o Mar Báltico a outras regiões europeias. Na Antiguidade, foi a primeira cidade italiana a ser saqueada por Átila.

Ásia Central: Região que compreende o Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzbequistão e Afeganistão. Já na Antiguidade, testemunhou uma série expressiva de grandes movimentos migratórios, incluindo os Hunos.

Ásia tartárica: Designação genérica historicamente utilizada para o território asiático delimitado pelo Mar Cáspio, os Montes Urais, o Oceano Pacífico e as fronteiras do norte da China, Índia e Pérsia.

Capadócia: Região na Anatólia Central, atual Turquia, conhecida no tempo dos Sucessores de Alexandre Magno por sua instabilidade política e beligerância. O território foi transformado em província romana pelo imperador Tibério, em 17.

Cilícia: Como a Capadócia, território situado na Anatólia, porém situado na sua porção sul. No Principado, a vasta região contava com pouco menos de 50 cidades.

Haute-Asie: Região situada entre a Ásia Central, a Sibéria e o Himalaia. Em estudos geográficos da primeira metade do século XX, englobava amiúde o Tibete, a região então chamada Turquestão Chinês e a Mongólia.

Naísso: Cidade antiga saqueada pelos Hunos e situada na província da Dácia Mediterrânea, atual porção sul da Sérvia.

Récia: Província romana habitada originalmente pelos Récios, uma confederação de tribos alpinas culturalmente associadas aos Etruscos. Compreende atualmente parte da Suíça (porções centrais e leste), o sul da Alemanha e a maior parte do Tirol, na Áustria, bem como uma parcela do norte da Lombardia, na Itália setentrional.

 

5. Mapa da migração dos Hunos

Fonte: Wikimedia Commons. Autor: Stw.

Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hunnenwanderung.png

Acesso em: 13 de janeiro de 2023.

 

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1 Tradução do russo como em Markov & Sparks (1966) 46-47. Não foram encontradas traduções de referência para a língua portuguesa, pelo que se decidiu manter a inglesa. O poema a que alude Briusov (Nomads of Beauty, de Ivanov) possui original em russo e tradução inglesa em Markov & Sparks (1966) 138-139.

2 Kalb (2010) 89 insere esta citação específica em uma discussão mais ampla sobre Briusov e a cultura clássica, particularmente Virgílio, tendo em vista sua tentativa de construir uma autoimagem como homem “romanizado”.

3 Sobre sua relação com o cristianismo, ver especialmente Kalb (2010) 86-88.

4 Kornblatt (2010) 295.

5 Hambis (1958) 249.

6 Ou xiongnu, povo asiático nômade ou seminômade que pode ser o ancestral mais certo dos hunos. Esta hipótese tornou-se recorrente em virtude de ter esse povo se destacado no uso de cavaleiros-arqueiros, demonstrando superioridade militar em região geográfica que também circunscrevia os hunos séculos depois deles. Para o estado da arte da questão, ver Kim (2016) 12-36, que os classifica como “hunos originais” por serem os mais antigos de que se tem notícia.

7 Hambis (1958) 268, por exemplo, sobre as áreas habitadas por hunos e hiong-nou.

8 Pesquisa feita pelo sistema Loeb (Harvard) de fontes clássicas. Os títulos das obras em língua vernácula coincidem com os títulos dados nas edições Loeb, de modo a facilitar eventuais consultas posteriores, malgrado todas as diferenças nas tradições acadêmicas para os mesmos.

9 Preservado em Orósio 7.34. Outros autores do século II também mencionam os hunos, mas foram excluídos da lista disponível neste artigo por não terem sido mapeados na Loeb. Ver, por exemplo, o poeta de Alexandria, Dionísio Periegetes (v. 730).

10A chamada Antologia Grega é uma coleção de 4.500 poemas gregos de mais de 300 compositores diferentes, chamados epigramas, ainda que frequentemente não epigramáticos.

11Uma boa discussão em torno das formas do passado pode ser encontrada em Guarinello (2003), que trata das maneiras como os historiadores narram o passado de modo a lhe conferir sentido. Como seu artigo discute especificamente as formas da “História Antiga”, atenção é dada tanto ao que se convencionou chamar de História Científica quanto às formas menores e maiores da Antiguidade Clássica, sempre intimamente conectadas no desenvolvimento do seu argumento. As formas/contextos, portanto, devem ser desnaturalizadas/os. Ainda assim, apesar de todas as críticas, conclui corretamente Guarinello (2003) 50, não é possível ao historiador tornar o passado inteligível sem “formas”, restando-lhe estabelecer os fundamentos para a sua existência como produtos artificiais.

12Bona (1991) 41; Kim (2013) 45; cf. Boeft, Drijvers, Hengst e Teitler (2018) 13. Visão menos pessimista e mais acertada pode ser encontrada em Marques (2011) 174, que segue Barnes (1998) 98 e Blockley (1975) 31 (entre outros, mais recentes) sobre Amiano Marcelino como último representante de uma longa e consolidada tradição historiográfica latina no que concerne aos parâmetros de objetividade de Salústio e Tácito, respectivamente.

13Esta divisão da história imperial romana é a proposta pela Cambridge Ancient History, publicada entre 1996 e 2005. Há propostas de organização cronológica concorrentes em várias tradições acadêmicas, considerando mais comumente o Alto e o Baixo Impérios como tendo começado e terminado em 27 a. C.-284 e 285-476, respectivamente. Como marcos históricos são sempre convenções, optou-se pela utilização da proposta britânica exclusivamente pelo fato de que ela inclui, em momentos distintos de publicação (o último volume a vir a público foi o dedicado à chamada “Crise imperial”), abordagens distintas do passado mais tardio de Roma sem desprezar a terminologia clássica.

14Santos, Nicodemo e Pereira (2017) 182.

15Além do raciocínio citado, Woolf (2012) 19-20 recorda que a ideia moderna de império tem sua própria história e remonta à experiência política romana, tendo em vista seus usos como arquétipo pela literatura moderna. Outra questão interessante diz respeito a um dos pressupostos mais indigestos da história romana: tem-se, afinal, com os romanos, a história de uma cidade ou de um império? Ver Guarinello (2003) 53-54.

16Guarinello (2003) 55.

17Como dito anteriormente por Júlio César (Comentários sobre a Guerra Gálica 1.1) sobre os gauleses mais distantes de Roma.

18Di Cosmo (2011) 44-45.

19Kim (2016) 66.

20Os Anais Chineses, ou Chunqiu, foram a primeira história organizada cronologicamente da China, compondo um dos cinco clássicos (Wujing) do Confucionismo.

21De Guignes (1756) 55-63.

22Bury (1923) 102.

23Kim (2016) 67-68.

24Rance (2008) 355.

25Heather (2006) 156-157; ver também Boeft, Drijvers, Hengst e Teitler (2018) 25.

26Sobre Prisco, ver Zuckerman (1994).

27Rance (2008) 359.

28Kim (2016) 71-72.

29Gouveia Monteiro (2012) 122.

30Prisco (fr. 11.2), reunido por Blockley (1983).

31Kim (2016) 81-84.

32Kim (2016) 85.

33Termo empregado anteriormente por Guarinello (2003) 58, especificamente para o caso romano.

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by COM Armando Dias Correia