O espírito de defesa é a predisposição e a vontade que as pessoas tenham e expressem para defender algo importante que pode ser destruído ou danificado por uma acção exterior. Sendo esta uma definição simples de espírito de defesa, aquilo que vamos tratar é o “espírito de defesa” de algo particularmente importante – o nosso país.
Hesitámos em tratar este tema por quatro razões. A primeira é-nos diariamente mostrada de forma exemplar, pela comunicação social, no que se refere à Ucrânia. Esta e a existência de vários comentadores que diariamente falam sobre esta guerra são a razão para, em relação a este conflito, eu ter optado por escrever apenas três artigos, não sobre a guerra, mas sobre a crise que ela originou entre o “Ocidente” e a Rússia. A segunda razão é existirem inúmeros escritos recentes sobre a nossa defesa e as nossas forças armadas, apesar de quase nada ter sido feito para resolver os problemas existentes, podendo dizer-se que este pequeno artigo não fará mais do que “chover no molhado”. A terceira razão é a de ser pouco natural, apesar dos problemas de defesa do país e das suas forças armadas terem originado vários escritos e estudos, que quem tenha capacidade de decisão sobre estes assuntos venha a ler e muito menos a meditar no problema que se apresenta. A quarta razão é a de que, podendo a actual guerra vir a ter um empenhamento da NATO, a que pertencemos, deve haver alguma contenção quanto à apresentação das nossas vulnerabilidades.
Por outro lado, estas minhas quatro hesitações são também motivo para escrever sobre este assunto, porque temos necessidade de um elevado “espírito de defesa” no nosso país; porque deverá insistir-se para que esses assuntos sejam estudados e decididos; porque tem de haver teimosia e um certo optimismo para que surjam soluções eficazes no futuro; e porque não há qualquer garantia de que, no âmbito do artigo V do Tratado do Atlântico, não venhamos a estar empenhados numa guerra.
É frequente, quando se fala e se escreve sobre espírito de defesa, ligá-lo à importância das forças morais e do seu ascendente sobre o potencial dos meios materiais, ou, ainda, no campo operacional, indicá-lo como (will), vontade de combater. Ainda que isto faça parte do “espirito de defesa” neste nosso texto pretendemos ser mais abrangentes por forma a ir desde o nascimento à compreensão da necessidade de defesa do nosso país, que deve sensibilizar os nossos concidadãos, até à utilização adequada dos vários vectores estratégicos (da diplomacia, à economia, à política interna, à educação, à saúde, à cultura, à informação e, obviamente, à estratégia militar) e os sacrifícios que possam ser pedidos para que haja um aparelho de força eficaz e vontade de o empregar quando tal se tornar necessário. Trata-se portanto de algo que vai desde o alfa – nascimento, criação e desenvolvimento do “espírito de defesa” ao ómega – que é dispor de meios que respondam às estratégias gerais, nomeadamente à militar como seu “braço armado”.
O nascimento do “espírito de defesa” deve começar no “leite materno” e na educação infantil de que as mães são o primeiro baluarte. Essa educação está porém prejudicada pela falta de tempo, pelo trabalho que as absorve; porque desde logo se dá prioridade aos interesses individuais em prejuízo dos valores; porque o espírito de competição desenvolvido diminui a importância do “outro”; porque as próprias mães com as suas preocupações, falta de tempo e até herança de suas mães transmitem uma atitude individualista; porque na realidade se sublinha a importância do eu face ao nós; porque a paz mundial que temos usufruído desde 1945 sublinha o egoísmo e o desejo de bem-estar, não dando o devido valor à defesa do país. Em conclusão, a mãe, núcleo familiar como elemento fundamental da formação de valores, não será, em grande parte das famílias, o elemento génese e de desenvolvimento de um “espírito de defesa” conforme nós o definimos. Com a dificuldade de nascimento no meio familiar, o “espírito de defesa” deveria despertar na escola, mas também aí se nota a falta de conhecimentos, formação e interesse por parte significativa dos docentes. Pelas imagens que vimos dos protestos recentes dos professores, independentemente das razões que possam ter, facilmente verificamos que muitos deles até poderão ensinar (os que dão aulas), mas possivelmente serão em menor número os que poderão ser educadores.
Mas, para além dos docentes, os programas escolares, nomeadamente o da matéria de História, não contribuem para a criação e desenvolvimento de um “espírito de defesa”. A História pode ser ministrada de várias maneiras. Uma é dar a conhecer tudo o que de bom sucedeu nos quase nove séculos da nossa História, da projecção positiva do país, omitindo ou menorizando os aspectos negativos e que devem merecer o nosso conhecimento e reflexão. É a História dos grandes feitos, das vitórias, do heroísmo, das qualidades do povo português e da “grandeza de Portugal”. Outra é omitir tudo ou quase tudo o que houve de notável na nossa vida colectiva e numa autoflagelação permanente e doentia apenas sublinhar os aspectos negativos, como a escravatura, a Inquisição, as derrotas, as falhas de coesão interna, etc. Qualquer das formas não é correcta, dá uma imagem deturpada do nosso país, não é educativa. Mas esta segunda forma de a ministrar, hoje muito em voga, omite o que houve de positivo no nosso país e nos caracteriza como nação para sublinhar apenas aquilo de que não nos podemos orgulhar. Além disso, os erros são apresentados com os “olhos de hoje” deslocados do seu tempo, dos usos e costumes, das épocas em que aconteceram.
Recentemente, a União Europeia pediu aos vários países que a constituem textos que permitissem mostrar a sua individualidade mas procurassem encontrar uma “geografia cultural europeia”. Um “retrato” que foi feito de Portugal trata do problema da escravatura. Não sendo obviamente algo de que nos orgulhemos, a “escravatura” não é um retrato de Portugal. Isto é nitidamente autoflagelação. Quando se fala da escravatura, menciona-se o tráfico, que como outros países europeus fizemos, mas esquece que o problema existia antes de Portugal nascer, que quem vendia os escravos eram os chefes gentios (ninguém fala neles), que não era algo que se passasse apenas no Atlântico, sendo há muito praticado pelos árabes no Médio Oriente e que infelizmente continua a existir nos dias de hoje, em formas mais sofisticadas.
Outro dos assuntos em que Portugal é altamente criticado é o da Inquisição, que, como a escravatura, não nos honra mas também não define o nosso país. Num almoço-debate que por várias vezes acontecia entre os estagiários da ESG (Escola Superior de Guerra, que frequentei entre 1978/80) com estagiários da ENA (Ecole Nationale d’Administration, que forma a elite política francesa que depois tem uma presença importante nos departamentos e outros órgãos superiores do Estado francês), a estagiária que ficou a meu lado “atacou-me” com a Inquisição. Respondi-lhe que não era algo que nos orgulhasse mas referi-lhe que na noite de São Bartolomeu, em 1572, os católicos franceses mataram mais huguenotes do que o número de pessoas mortas pela Inquisição em Portugal, durante mais de dois séculos e meio. Obviamente calou-se.
Em conclusão, o ensino da História deve dar a conhecer os aspectos do nosso passado que merecem reflexão mas não pode ignorar que somos o país da Europa cuja fronteira foi definida há mais tempo; um país que com grande dificuldade lutou sempre pela sua independência, apesar do poder do país vizinho; um país que realizou feitos notáveis a nível mundial como foram as Descobertas e a Expansão Marítima; e que lutámos na Guerra Peninsular contra o imperialismo napoleónico, etc. Se a escola não der a conhecer aquilo de que nos orgulhamos e que faz parte da nação portuguesa, não estamos a contribuir para a conservação da nossa identidade, para o orgulho de sermos portugueses, para a preservação da nossa cultura, para o “sentimento de defesa” que deveremos possuir.
Depois da escola, o centro de formação do “espírito de defesa” é feito nas forças armadas porque, de outro modo, elas não têm condições para defender Portugal. Porém, terminado que foi o serviço militar obrigatório, o número de concidadãos que passa pelas fileiras é muito reduzido, sendo até escandaloso o pequeno número que nelas servem. O dia da “defesa nacional” pouco mais é do que um passeio a uma unidade militar, porque o “espírito de defesa” tem de nascer, crescer e enraizar-se, e também porque a defesa é muito mais abrangente do que a defesa militar. Para além disso, institutos de defesa ou cadeiras de estratégia nas universidades podem ser importantes para pensar em alguns problemas de segurança e defesa, mas dificilmente podem ser a fonte de um “espírito de defesa”. Trata-se mais de conhecimento do que de sentimento.
No momento actual existem situações e procedimentos que não favorecem o aparecimento e a expressão de um “espírito de defesa”. Uma delas é a importância que é dada ao eu, que o faz prevalecer e expressar-se num elevado egoísmo que até esquece o nós. Isto verifica-se na vida diária, no primado da satisfação no interesse pessoal, na emulação que já se nota na escola, ou entre profissionais do mesmo ofício, ou até nos partidos políticos. Há um grande esquecimento do outro e pouca consciência do nós. Quanto ao nós, ainda que se desenvolvam muitas vezes e até com paixão pequenos nós (grupos profissionais, sindicatos, classes e principalmente clubes, nomeadamente desportivos), o nós abrangente, nacional, só surge quando acontecem vitórias desportivas ou um português se distingue a nível mundial, que facilmente diminuem quando das derrotas e humilhações que sempre vão surgindo e são demonstrações da superioridade dos outros. Além disso, estes pequenos nós não são o “espírito de defesa”, são pequenos espíritos de defesa particulares.
Como já tive oportunidade de citar, num trabalho anterior, de acordo com Torga “Temos de ser grandes em tudo porque nos sentimos pequenos em tudo”1; ou, como disse o Padre António Vieira, “Somos o povo eleito do V Império ou os cafres da Europa”; ou ainda, como Maria de Lurdes Belchior escreveu, “Há por assim dizer duas maneiras de os portugueses se definirem…o masoquismo da depreciação por juízos negativos e a egolatria por louvores às virtudes dos portugueses”2.
Seguindo essas opiniões não vou nem construir nem denegrir o “espírito de defesa” dos portugueses. Vou apenas referir os perigos que o rondam e as consequências trágicas para o nosso país se o não tivermos.
Uma situação que não favorece o “espírito de defesa” é a dialéctica entre nacionalismo e espaços supranacionais a que pertencemos. A “Comunidade de Sonhos” que para Malraux era a nação, diminuiu de intensidade. Primeiro porque se adulterou a palavra nação por difusão e avanço de nacionalismos exacerbados, populismos xenófobos, que quase nos obrigam a falar do nosso país apenas como pátria, chão ou mátria (como queria Natália Correia), expressões que, ligadas aos nossos antepassados, são mais físicas e até geográficas do que a comunidade onírica que caracterizava e estimulava a nação.
Segunda, por pertencermos a espaços políticos, económicos, culturais e militares (nomeadamente a UE e a NATO), para os quais se transferiu alguma soberania. A alienação para a UE não conseguiu que “deixássemos de sonhar português para passar a sonhar europeu”, apesar da existência de vários assuntos em que estamos de acordo. Quanto à Aliança Atlântica, para um país periférico em relação à Europa e com um potencial estratégico muito limitado, apesar do “porta-aviões Açores”, há uma clara dependência que não favorece o “espírito de defesa”, agravada pela quase não existência de umas forças armadas que deveríamos possuir.
A informação pública, para além do serviço que presta de dar a conhecer o que deve ser conhecido, procura avidamente o lucro, vende manchetes, luta pelas audiências, explora acontecimentos menores que criem mais notícias vendáveis, em vez de trabalharem e intensificarem o tratamento da informação. Este ambiente contribui muito pouco para a existência do “espírito de defesa”, apesar de haver assuntos de que nos devemos orgulhar, como as missões realizadas pelas nossas forças armadas que merecem o elogio internacional. Ainda no âmbito da estratégia militar, aquilo em que a força se pode revelar, lembremos apenas duas pequenas notas.
O roubo das armas de Tancos, uma acção inconcebível passada numa unidade do exército que deveria garantir a nossa segurança, deu origem a centenas de referências nos órgãos de comunicação social, mas estas notícias não procuraram saber como tal tinha sido possível (deficiências existentes nas estruturas, falhas na supervisão, falta de pessoal ou incúria) mas se o ministro da defesa nacional sabia ou não da recuperação das armas, se transmitiu essa comunicação ao primeiro-ministro e outros assuntos menores.
O outro caso foi o do navio “Mondego”, onde se verificou um muito lamentável acto de insubordinação. As notícias eram sobre se havia deficiências de material e sobre se o almirante CEMA queria aparecer ou não na comunicação social. Estes dois casos são significativos de um “espírito de defesa” ausente e de uma comunicação social que pouco ou nada contribui para acentuar que temos necessidade de possuir um “espírito de defesa”. É algo que merece a nossa reflexão.
Mais grave ainda é que a nossa classe política transmite um ambiente de permanentes questiúnculas, chicanas, agressões, que vão muito além daquilo que deve ser o debate democrático, e perde o tempo a debater assuntos marginais em vez de esclarecer e tratar dos problemas que são fundamentais para o nosso futuro. Para alguns deles até deve haver um largo consenso, como é o da segurança do país e o do “espírito de defesa” que lhe deve estar associado. As redes sociais são hoje um óptimo termómetro da liberdade, da mentira e do sentir nacional, mas, se houver um “espírito de defesa”, elas podem ser um veículo imprescindível para a sua consolidação. Se não existir, elas podem ser um dos seus maiores inimigos.
Com a falta de “espírito de defesa” que temos vindo a referir, é difícil que a classe política e aqueles que dirigem o país, nomeadamente os que estão representados nos órgãos de soberania, tenham o “espírito de defesa” que deveriam possuir para a segurança de Portugal e cabal desempenho das suas funções. Primeiro, pela falta de pensamento e desempenho de uma estratégia geral com unidade de comando; segundo, porque pela forma como as forças armadas têm contribuído, com valor e eficácia, em missões internacionais criou-se a ideia de termos um “espírito de defesa” elevado, quando isso se deve principalmente ao espírito de missão dos seus executantes, aos limitados contingentes utilizados, ao valor dos quadros que temos formado e às características idiossincráticas do povo português, à eficiência e instrução ministradas, ao know how que adquirimos na guerra do ultramar e ao facto de se tratarem, para as nossas unidades, de conflitos de baixa intensidade. Por estas razões, pela prioridade que tem vindo a ser dada ao bem-estar (esquecendo o mal-estar dos conflitos e da guerra que nos parecem longínquos) não tem sido dada a atenção devida ao “espírito de defesa” e às nossas forças armadas. Entre outros assuntos, são significativos da necessidade de “espirito de defesa” no nosso país os seguintes:
– Sermos um país de que nos devemos orgulhar e cuja existência, como país independente, nos obriga a ter um elevado espírito de defesa;
– Não haver uma instrução e educação que promova o “espírito de defesa” e haver falhas de consciência quanto à necessidade de dispormos de um “espírito de defesa”;
– Os programas escolares, por moda, não sublinharem os aspectos positivos da nossa História e, pelo contrário, deterem-se nos negativos que aliás devem ser objecto de reflexão;
– Sermos membros plenos (e não menores) da UE, da NATO, da CPLP, o que não dispensa e até exige um elevado “espírito de defesa”;
– Ser escasso o número de cidadãos que passa pelas fileiras das forças armadas e ser escandalosamente baixo o número de cidadãos que passa pelas fileiras do exército, porque neste ramo eles são o “elemento fundamental de combate” e aqueles que realizam o combate próximo;
– Serem constantes os cortes que têm vindo a ser feitos, ao longo de vários anos, nas leis de programação militar;
– Ser pequena a percentagem do PIB atribuída à defesa, a qual é um compromisso NATO (até o inconcebível Trump o notou);
– Não possuirmos material em quantidade e qualidade para uma guerra convencional;
– Termos obrigações no âmbito do artigo V do Tratado do Atlântico;
– Dispormos de uma informação quase inútil para a formação de um “espírito de defesa”;
– Julgar-se que o “espírito de defesa” é apenas algo que devem ter os combatentes, quando este é igualmente necessário para aqueles que sofrem a guerra na retaguarda.
Em conclusão, com as forças armadas de que dispomos, com a grave falta de pessoal, com o material existente e sem um forte “espírito de defesa” Portugal não está em condições de participar com alguma eficácia num conflito convencional moderno.
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1 Torga, Miguel, Livro Sétimo, página 77.
2 Belchior, Maria de Lurdes, Revista Nação e Defesa Ano Sexto, Jan-Mar 1982.
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1998-2001).
Ex-Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Revista Militar (2003-2011).
Sócio Efectivo da Revista Militar.