“O maior inimigo da verdade é frequentemente não a mentira – deliberada, planeada, desonesta – mas sim o mito – persistente, entranhado e irreal”
John F. Kennedy
A Guerra da Ucrânia, apelidada pelo governo russo de “operação militar especial” e desencadeada com a alegada justificação de suster atos genocidas ucranianos nas províncias pró-russas de Donetsk e Lugansk, traduziu-se na maior operação militar na Europa, desde a Segunda Guerra Mundial. Para isso, foi necessária a mobilização de um grande contingente militar para junto da fronteira com a Ucrânia, bem como o aprontamento logístico de um elevado número de meios, cenário que foi gerando vários alertas atinentes a uma provável invasão russa. Não obstante, conforme evidencia Telo (2022, p. 17), “a invasão da Ucrânia provocou inúmeras surpresas e mudou o mundo em poucos dias”.
Contudo, perante os sucessivos acontecimentos verificados desde o despontar da crise ucraniana em 2014, o cenário de invasão não deveria ter sido considerado tão improvável, pois a Guerra da Ucrânia foi como que o corolário da dinâmica ofensiva da estratégia revisionista da Federação Russa (FR), colocada em marcha através da invasão da Geórgia, pela anexação da Crimeia, pela intervenção na Guerra da Síria e pela guerra híbrida no Donbass.
Neste contexto, considera-se pertinente efetuar uma reflexão sobre a crise ucraniana, analisando se o alerta estratégico disponibilizado pelas informações fracassou e, no caso de se constatar efetivamente que sim, o porquê de isso ter acontecido.
Da análise aos principais antecedentes à Guerra da Ucrânia, identificam-se, genericamente, quatro acontecimentos que indiciavam uma mudança clara da posição russa relativamente à Ucrânia, designadamente: a anexação da Península da Crimeia; os conflitos no Donbass; o aumento da concentração de forças russas junto à fronteira da Ucrânia; e a massificação de exercícios militares russos. Assim, abordar-se-ão em seguida cada um destes momentos, destacando-se os principais indicadores e alertas gerados.
2.1. Anexação da Crimeia
No seguimento do exílio do Presidente ucraniano, Viktor Yanukovitch, na Rússia, em fevereiro de 2014, após vários meses de conflito entre as forças policiais e os manifestantes do movimento Euromaidan1, da destituição dos poderes do Presidente e da formação de um novo governo com uma postura Euro-Atlântica, a Rússia implementou um conjunto de ações2, com vista a assegurar a manutenção da Ucrânia na sua esfera de influência, que culminaram com a anexação da Península da Crimeia (figura 1).
Figura 1 – Península da Crimeia.
Fonte: Disponível em Britannica (2023)
Para justificar esta violação de soberania, Moscovo argumentou a necessidade de defesa das minorias russas na península, utilizando a retórica do precedente da intervenção militar da NATO no Kosovo, em 1999, que resultou na declaração unilateral de independência por parte do Kosovo (Fernandes, 2015). Não obstante, a legalidade e a legitimidade do referendo serem questionáveis, a verdade é que o Ocidente assistiu ao facto consumado, aplicando apenas sanções económicas e financeiras para punir este ato, com receio de escalar a crise.
Efetivamente, conforme sublinha Fernandes (2015), se o afastamento de Yanukovitch e a aproximação do novo executivo à União Europeia (UE) e à NATO foram o ponto de viragem da posição russa, a anexação da Crimeia constitui-se como uma mudança na postura do Ocidente em relação a Moscovo, com a geração de vários alertas sobre as reais intenções da FR. A título elucidativo desta asserção, releva-se o estabelecido na Cimeira de Gales, em setembro de 2014, com a manifestação de intenção dos Estados-membros da aliança em, entre outros, aumentarem as suas despesas para 2% do PIB, criarem Forças de Reação Rápida e realizarem exercícios militares no Leste Europeu (NATO, 2014).
2.2. Conflito na região do Donbass
Paralelamente, na região do Donbass emergiram também movimentos separatistas pró-russos, os quais, apoiados por Moscovo, levaram a Ucrânia a perder o controlo de alguns territórios, nomeadamente de Donetsk e Lugansk. Em concreto, infere-se que o apoio da FR às autoproclamadas Repúblicas Populares teve como objetivo a criação de uma zona tampão com o propósito de proteção da sua fronteira ocidental (figura 2).
Figura 2 – Regiões de Donetsk e Lugansk.
Fonte: Disponível em BBC (2022)
Em resposta, foi criada, em abril de 2014, ainda pelo Governo Provisório, uma Operação Antiterrorista, com o intuito de combater estes grupos pró-russos, tendo, posteriormente, o novo Presidente ucraniano Petro Poroshenko reforçado os seus poderes. Nesta sequência, Moscovo percecionando, quer o posicionamento de Kiev como contrário aos seus interesses quer a Operação Antiterrorista como uma retaliação, aumentou o nível de prontidão das suas forças junto à fronteira com a Ucrânia, provocando, conforme sublinha Dias (2022), uma enorme preocupação na comunidade internacional sobre uma eventual invasão. Apesar desta apenas se ter consumado cerca de oito anos mais tarde, foi gerado um alerta estratégico muito significativo, o qual, com o estabelecimento dos Acordos de Minsk I e II e com o prolongar do status quo, foi-se esmorecendo.
2.3. Concentração de forças russas na fronteira com a Ucrânia
Ao longo do primeiro semestre de 2021, foram divulgadas várias informações e alertas referentes à presença militar russa, em grande escala, junto às fronteiras da Ucrânia. Entre estas, destaca-se a disseminação de vários produtos de Imagery Intelligence (IMINT)3 referentes a diversos comboios de blindados russos em deslocação e/ou estacionados em zonas fronteiriças. Como exemplo deste facto, na figura 3 apresenta-se uma imagem satélite, de abril de 2021, do complexo de treino “PogonovoI”, na região de Voronezh, no Oeste da Rússia, onde é possível observar uma elevada concentração de meios de combate russos.
Figura 3 – Imagem satélite do Centro de Treino Pogonovo localizado na região russa de Voronezh.
Fonte: Disponível em CNN (2021)
Neste contexto, releva-se o alerta proferido, pelo Secretário de Estado Norte-Americano Antony Blinken, em abril de 2021, dando conta da “maior concentração de tropas russas nas fronteiras com a Ucrânia desde 2014” (Blinken, 2021). Mais tarde, em novembro de 2021, o Chefe da diplomacia ucraniana, Dmytro Kuleba, perante a concentração estimada de mais de 115 militares russos em zonas fronteiriças com a Ucrânia, vinculava com enorme preocupação a grande probabilidade da ocorrência de uma invasão russa, avisando que “se a Rússia decidir empreender uma operação militar, as coisas vão acontecer num piscar de olhos” (Kuleba, 2021).
2.4. Exercícios militares
Acompanhando a grande concentração de forças russas nas zonas fronteiriças com a Ucrânia, foi surgindo, também, outro indicador relevante, nomeadamente, a realização de grandes exercícios militares.
Na realidade, os exercícios e a grande demonstração de capacidades militares pela FR não foram uma novidade recente, pois tal sempre se verificou, sobretudo desde a chegada ao poder do Presidente Vladimir Putin. Porém, o que houve de novo e fez gerar diversos alarmes foi a frequência, a envergadura e a localização destes exercícios, sobretudo entre o final de 2021 e o início de 2022.
De entre o conjunto de exercícios realizados e noticiados, no pré-guerra da Ucrânia, sublinha-se o exercício realizado entre as Forças Armadas russas e bielorussas, no início de fevereiro de 2022, designado por “Resolução Aliada”, que, segundo o Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, contou com a participação de mais de trinta mil militares russos na Bielorrússia, o maior destacamento de militares russos naquele país desde o fim da Guerra Fria (Reuters, 2022).
Através da análise dos principais eventos e alertas apresentados, infere-se que, efetivamente, desde 2014 surgiram várias informações e alertas que perspetivavam uma possível invasão russa à Ucrânia. É neste sentido que se posicionam as palavras do Presidente Zelensky (2022), proferidas a 10 de fevereiro de 2022, no auge do período de tensão precedente à invasão russa, sublinhando que “não há nada de novo aqui. Quanto aos riscos, existem e nunca cessaram desde 2014”.
Porém, no que concerne à tomada de ação, com vista a demover as intenções russas, apesar de os líderes ocidentais terem sido perentórios na condenação dos eventos e na imposição de sanções económicas, observou-se que, na prática, optou-se pela acomodação e por um aceitar tácito da situação. Com efeito, no seguimento da anexação da Crimeia e da intervenção russa nos conflitos no sul e leste ucraniano, apesar de países europeus pertencentes à ex-União Soviética, como a Polónia ou a Lituânia, defenderem por parte da UE e da NATO uma estratégia mais dura de condenação, observou-se que potências europeias, como a Alemanha, a França e a Itália permaneceram relutantes em agudizar as suas relações com Moscovo, com receio de retaliações políticas e económicas (Dias, 2015).
Da mesma forma, verificou-se que no auge do período crítico antecedente ao início da Guerra da Ucrânia, os EUA optaram por adotar posição semelhante, dado que, conforme reitera Soller (2022), a administração Biden, na posse de informações detalhadas sobre o que se perspetivava que iria acontecer, tinha duas opções: ou negociava com Vladimir Putin a retirada de qualquer influência ocidental de Kiev; ou assumia uma posição consistente com a de uma potência hegemónica, tentando travar Putin dos seus intentos através da ameaça do uso da força. Ora, nem uma, nem outra opção foram seguidas, optando os EUA por implementarem, como acrescenta Soler (2022, p. 5), “uma espécie de via média”4.
Assim, através da análise dos principais factos e indicadores apresentados, considera-se que foram produzidas informações concretas e detalhadas sobre as capacidades e intenções da FR e gerados diversos alertas atinentes à possibilidade de uma invasão russa à Ucrânia. Contudo, os principais decisores políticos resolveram não tomar as informações produzidas e os alertas gerados em devida linha de conta, não atuando assertiva e eficazmente na resolução da crise ucraniana. Assim, considera-se que, efetivamente, o Alerta Estratégico da Guerra na Ucrânia fracassou.
Neste âmbito, corroborando com Pinto (2022), podem ser identificados quatro argumentos principais que estiveram na génese da falha de avaliação dos decisores políticos das principais potências ocidentais. O primeiro argumento assentava na convicção liminar que uma Guerra convencional na Europa não seria plausível na era atual. O segundo, refere-se à dificuldade de entender os objetivos políticos e estratégicos russos com a realização de uma Guerra na Ucrânia, exceção feita aos desejos anteriormente manifestados de independência e autonomia das regiões de Donetsk e de Lugansk. O terceiro, estava subjacente ao receio de confrontação com a FR, detentora do maior arsenal nuclear estratégico do mundo e fornecedora de um grande volume de recursos energéticos, do qual uma grande parte dos estados europeus eram dependentes. E, por fim, o argumento de que a Rússia não possuía uma economia suficientemente forte para sustentar o esforço de Guerra na Ucrânia e simultaneamente suportar os efeitos de sanções económicas e financeiras severas.
Porém, embora estes argumentos fossem considerados plausíveis, o que é certo é que o “urso russo”5 atacou e invadiu a Ucrânia, provavelmente esperando que a sua “operação militar especial” fosse célere e eficaz na materialização do estado final desejado, o que acabou por não se concretizar, estendendo o conflito até ao presente.
A crise ucraniana, despoletada pelas manifestações do movimento Euromaidan, teve origem na tentativa de construção de uma identidade nacional e definição de um novo rumo político e económico para a Ucrânia, assente numa maior aproximação à UE, em oposição aos interesses nacionais da FR, que conceitua a Ucrânia como um Estado crucial para a salvaguarda da sua segurança coletiva. Decorrente desta oposição de interesses, a crise ucraniana estendeu-se no tempo, continuadamente alimentada por graves casos de ingerência russa em território ucraniano – tais como a anexação da Crimeira em 2014 e apoio aos movimentos pró-russos na Região do Donbass –, bem como por várias tentativas falhadas de estabelecimento de um acordo político que garantisse a resolução da crise. Não obstante, a consumação da Guerra da Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022, surpreendeu vários líderes internacionais, apesar das diversas informações produzidas e dos alertas que apontavam nessa direção.
Por conseguinte, considera-se que o alerta estratégico da Guerra da Ucrânia disponibilizado pelas informações fracassou, uma vez que foram sobrestimadas as capacidades, as intenções e a vontade da FR. Todavia, infere-se que este insucesso não resultou da ausência de informações e alertas, que apontavam a possibilidade de uma invasão russa à Ucrânia como um cenário provável e perfeitamente plausível face aos indicadores observados, mas teve na sua génese uma falha de avaliação por parte dos principais decisores. Com efeito, compete agora a estes, estarem mais alertas e atentos aos sinais e às informações produzidas, de forma que não sejam repetidos os erros de avaliação do passado.
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Pinto, L. V. (2022). Os Labirintos de Putin. IDN brief, março 2022 pp. 10-11. Retirado de https://www.idn.gov.pt/pt/publicacoes/idnbrief/Paginas/IDN-Brief-marco-2022.aspx
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Soller, D. (2022). A Fraqueza Relativa Norte-Americana e a Guerra na Ucrânia. IDN brief, março 2022, pp. 5-6. Retirado de https://www.idn.gov.pt/pt/publicacoes/idnbrief/Paginas/IDN-Brief-marco-2022.aspx
Telo, A. J. (2022). O Inesperado Mundo Novo – Guerra e Mudança em 2022, Unexpected New World – War and Change 2022.(Publicação bilingue / Bilingual publication). IUM Atualidade, 42. Lisboa: Instituto Universitário Militar.
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1 Amplo movimento de massas, composto por cidadãos com aspirações democráticas, despoletado no decurso da decisão do Presidente Yanukovitch em adiar a assinatura do Acordo de Associação com a União Europeia, que coincidiu com a celebração de um generoso acordo económico com a Rússia (Dias, 2015).
2 Em concreto, apoiou os movimentos pró-russos, com forças militares não identificadas, com o objetivo de salvaguardar o porto estratégico de Sebastopol – essencial para a Armada russa do mar Negro e consequente acesso aos mares quentes do Egeu e Mediterrâneo (Fernandes, 2015).
3 De acordo com a NATO (2020), para além da IMINT, para a pesquisa de informação poderão ainda ser utilizadas as seguintes disciplinas das informações: Acoustic Intelligence (ACINT); Human Intelligence (HUMINT); Measurement and Signatures Intelligence (MASINT); Signals Intelligence (SIGINT); Open-Source Intelligence (OSINT).
4 Em detalhe, segundo Soller (2022), os EUA, perante a ameaça eminente de um conflito entre a Rússia e a Ucrânia, optaram por empregar as seguintes ações externas: uma diplomacia robusta, que divulgava as intenções e os crimes de Moscovo; um apoio militar, essencialmente ao nível da cedência de material e apoio financeiro à Ucrânia; assistência humanitária à população ucraniana; e a aplicação de sanções económicas bastante severas. Ademais, os líderes norte-americanos deixaram bastante claro que qualquer envolvimento militar direto no conflito estaria fora de equação, exceto se um país aliado sofresse um ataque deliberado russo.
5 Metáfora que relaciona o urso pardo europeu-asiático como símbolo do Império Russo, da União Soviética e atualmente da Federação Russa.
Além do Mestrado da Escola Naval, possui o Mestrado em Segurança da Informação e Direito no Ciberespaço, pelo Instituto Superior Técnico, da Universidade de Lisboa e a Pós-Graduação em Informações Militares, pelo Instituto Universitário Militar. Prestou serviço a bordo do NRP D. Francisco de Almeida e do NRP Zaire.