Nº 2657/2658 - Junho/Julho de 2023
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Evolução da Política de Defesa Nacional em Portugal
Tenente-general
Joaquim Formeiro Monteiro

1. O contexto internacional e os novos factores de conflitualidade*

As últimas duas décadas da história da civilização introduziram alterações na ordem mundial que vieram tornar o Sistema Internacional marcadamente multidimensional, complexo e notavelmente instável, com a implosão do Bloco de Leste, na última década do século passado, a dar origem a um conjunto de acontecimentos que vieram alterar, de modo decisivo, a conjuntura internacional.

De um paradigma de equilíbrio baseado na dissuasão nuclear, transitou-se para uma realidade globalizada, com o sistema internacional a entrar num período caracterizado tanto por uma multiplicação de crises, como pelo aumento da conflitualidade e da turbulência que anteciparam transformações substanciais nos equilíbrios internacionais e no ambiente de segurança dos Estados.

A transição internacional implicou uma crescente instabilidade e imprevisibilidade, que justificou uma cuidada identificação dos cenários, onde os interesses nacionais podem ser postos em causa, tornando-se necessária uma permanente avaliação dos mecanismos de resposta, indispensáveis para os acautelar e, se necessário, defender.

O processo de globalização e a revolução tecnológica tornaram possível uma dinâmica mundial de integração política, económica, social e cultural sem precedentes, dando origem a um quadro de interdependência crescente, bem como a uma forte tendência de homogeneização e novas condições de progresso.

Figura 1 – A Guerra Fria baseava-se no paradigma de equilíbrio da dissuasão nuclear.

Fonte: wikipédia

 

Os mesmos factores tornaram, igualmente, possível uma difusão equivalente de ameaças e riscos em todas as dimensões, que incluíram tanto a projecção das redes terroristas e do crime organizado como a proliferação das armas de destruição massiva, a fragilização de Estados e o potencial devastador dos ataques cibernéticos.

Por seu turno, a crise económica e financeira internacional, a maior das últimas décadas, veio tornar o quadro destes riscos e ameaças, ainda, mais perigoso e complexo, com as diferenças entre os níveis de desenvolvimento das populações a acentuarem-se progressivamente, em que a população aumenta mais rapidamente do que o ritmo das oportunidades geradoras de rendimento, e onde se travam mais conflitos abertos do que em qualquer outro período da história contemporânea, para o qual é exigido um papel mais abrangente às forças militares.

Paralelamente, a difusão do poder, a multiplicação de programas de armas de destruição massiva, o desenvolvimento de novas tecnologias militares e a disseminação de formas de combate assimétrico (guerrilha e terrorismo) mudaram os quadros da segurança regional e mundial e, actualmente, permitem a Estados, grupos ou organizações pobres em recursos acederem mais facilmente a tecnologias altamente letais.

Face ao que se tem assistido nos últimos anos, o confronto assimétrico tem-se caracterizado por acções conduzidas por actores, Estados, quase-Estados, ou mesmo não-Estados colocando a ênfase na afectação e no agravamento das vulnerabilidades percebidas, utilizando meios não habituais que põem em causa valores distintos ou antagónicos, e empregando capacidades não convencionais para atingir os seus objectivos, em que o terrorismo se tem assumido como a sua dimensão mais evidente e perigosa.

O impacto mediático que este último promove, a par da insegurança que espalha no seio das comunidades, bem como a relativa falta de eficácia no seu combate, por parte da autoridade do Estado, faz temer a sua presença constante na conflitualidade actual e, muito previsivelmente, prever a sua amplitude, no futuro próximo.

Estes niveladores de poder tornaram mais imprevisível o recurso à violência e mais complexa a garantia de paz e segurança internacionais. Por seu turno, a multiplicação de Estados frágeis torna mais frequente o colapso da autoridade Estatal em várias áreas do globo, com a resolução dos conflitos étnico-religiosos, das guerras civis e de secessão e dos conflitos prolongados de extrema violência a continuar a escapar, em certa medida, aos mecanismos tradicionais de intervenção internacional.

A percepção de uma reorganização algo caótica do sistema internacional, evidenciando mais liberdade de acção para actores que, num mundo bipolar, tinham sido mantidos num reconhecido e aceite quadro de contenção, reforçou o sentimento de insegurança e de imprevisibilidade da conflitualidade actual, com o ambiente de segurança global a confrontar-se, nomeadamente, com um quadro de factores dominantes de uma nova conflitualidade, que, seguidamente, se discrimina:

– o terrorismo transnacional e outras formas de extremismo violento, com impacto altamente desestabilizador;

– a pirataria, baseada, sobretudo, em Estados em colapso ou com fraco controlo do seu território, e afectando rotas vitais do comércio internacional;

– a criminalidade transnacional organizada, que inclui tráficos de pessoas, armas e estupefacientes, constituindo uma ameaça à segurança de pessoas e bens, com potencial de criação de Estados frágeis;

– a proliferação de armas de destruição massiva (nucleares, biológicas, químicas e radiológicas), com a agravante de poderem ser apropriadas por grupos terroristas;

– a multiplicação de Estados frágeis e de guerras civis em áreas estratégicas vitais, potenciando atrocidades em massa, terrorismo e vagas crescentes de refugiados;

– os conflitos regionais, como resultado, nomeadamente, da afirmação hegemónica de potências em zonas estratégicas de elevada conflitualidade ou de separatismos com potencial impacto nos equilíbrios regionais e globais;

– o ciberterrorismo e a cibercriminalidade, tendo por alvo redes indispensáveis ao funcionamento da economia e da sociedade da informação globalizada;

– a disputa por recursos naturais escassos, casos dos hidrocarbonetos, minerais e da água, que podem conduzir a uma competição violenta pelo seu uso e controlo;

– os desastres naturais e as mudanças climáticas, afectando Estados, sociedades e populações, sem distinção, mas com efeitos mais gravosos sobre os mais frágeis.

 

2. Os novos paradigmas da intervenção militar

Embora os grandes objectivos da Segurança e do Bem Estar, a que se devem juntar a Justiça Social, devam ser promovidos no quadro da convivência internacional e no âmbito das relações inerentes ao Direito Internacional, a realidade actual continua a demonstrar, no entanto, que os Estados são Direito por dentro e Força por fora.

Quando o diálogo e a concertação não são possíveis, e os referenciais de estabilidade e da concertação internacional falham, assiste-se à emergência da coacção militar no quadro dessa disputa, constituindo, nessas circunstâncias, o aparelho militar o único instrumento passível de ser usado pelo Estado.

No entanto, a complexidade do emprego das forças militares, fora do território nacional, resulta, quase sempre, de uma equação de difícil resolução, que oscila entre constrangimentos legais, psicológicos e de recursos, por um lado, e os financeiros e humanos, por outro.

Esta complexidade acentua-se, ainda, quando as operações militares passam a ser concretizadas por coligações, ampliando as necessidades de diálogo e cooperação entre as forças, e quando se conta com a presença, nos teatros de operações, de diversos actores, caso das ONG e de outras organizações similares.

Contudo, essa participação em coligações, no espírito de uma estratégia de segurança cooperativa não deverá significar uma especialização militar nacional, pelo carácter redutor que tal representaria para as capacidades do Estado, mas antes deverá ser entendido como sinónimo de poder colocar, à disposição daquelas construções multinacionais, capacidades militares especializadas e reconhecidas em termos nacionais.

Exigem-se, assim, forças militares com grande prontidão operacional, dotadas de uma componente expedicionária, capazes de desenvolverem operações conjuntas e combinadas, com capacidades para cumprirem missões diversificadas, com grande exigência e determinação, em cenários geográficos, étnicos e culturais diversificados.

Desta forma, ganham uma credibilidade acrescida, quando, hoje, se reconhece que os interesses nacionais ultrapassam as fronteiras do território nacional, defendendo-se, também, em espaços alargados com fronteiras diversas, sejam as mesmas de segurança, culturais ou económicas, e num ambiente multinacional e cooperativo.

Figura 2 – DJI Mavic Pro – drone comercial usado pelas Forças Nacionais Destacadas, na República Centro Africana.

Foto: Miguel Machado

 

3. Forças Armadas de conscrição versus Forças Armadas profissionalizadas

As mudanças nas condições políticas e estratégicas ocorridas nos últimos anos, provocadas pelos diversos riscos, ameaças e incertezas na cena internacional, têm-se constituído, como já referido, num elemento incontornável na análise e revisão das políticas de Defesa Nacional, nos Países da área euro-atlântica.

Está-se, assim, após a Guerra Fria, perante um contexto em que a caracterização das ameaças respeitantes aos referenciais clássicos de defesa é mais difícil e complexa, porque mais atípica e multidimensional.

Em parte, devido a este processo, a defesa territorial que implicasse o emprego de um número significativo de forças passou para segundo plano, na Europa, e, por outro lado, o carácter multipolar e global dos conflitos actuais obrigou as Forças Armadas (FA) a terem de cumprir missões múltiplas, para além de um cenário de ameaças tradicional, tendo-se tornado comum a internacionalização do empenhamento de forças militares, autorizado pelos actores internacionais (Moskos, 2001).

Este cenário tem vindo, de forma continuada, a reclamar a existência de sistemas de FA compostas por recursos humanos capazes de assegurar o nível de empenhamento adequado à defesa militar do Estado a que pertencem, bem como à representação deste em missões de prevenção de conflitos ou de resolução de crises, no âmbito multilateral.

Questiona-se, então, para estes novos desafios, se o modelo de FA de conscrição, assente na prestação de serviço militar obrigatório, se poderá relevar como o mais adequado, face aos modelos assentes na profissionalização do serviço militar.

Figura 3 – Marinheiros da incorporação de Setembro de 1973, quando, após Juramento de Bandeira, saíam da E.A.M.

e entravam na parada das Escolas Técnicas do Grupo 1.

Fonte: Revista da Armada n.º 26, novembro de 1973

 

Na realidade, o conceito de FA compostas exclusivamente por voluntários já vinha sendo discutido desde o final da década de 60 do século passado, assistindo-se a uma tendência continuada do declínio dos modelos tradicionais de mobilização em massa, realidade amplamente descrita e analisada por vários autores (Janowitz, 1971; Doorn, 1975; Martin, 1977, 1981; Kelleher, 1978; Burk, 1992).

Decorrente desta realidade, de relevar o facto do carácter institucional das FA, no ocidente, se ter vindo a alterar no sentido da sua funcionalização, com a adopção crescente de novas formas de organização e, progressivamente, a orientar a sua acção para um novo tipo de missões, fora do quadro clássico de emprego (Moskos and Burk, 1994).

Em termos genéricos, tratava-se de optar por um modelo que, sendo decorrente da necessidade de garantir formas de resposta adequadas às novas exigências estratégicas internacionais, apostava na modernização das estruturas e dos métodos de actuação, associando às novas missões níveis mais exigentes de prontidão e de desempenho.

De considerar, entretanto, que o presente quadro de insegurança internacional a que se assiste na Europa, a par das tensões de âmbito geopolítico que se apresentam na região do indo-pacífico, têm levado alguns países a não abandonar os modelos de conscrição de serviço militar, enquanto que outros reverteram total ou parcialmente os modelos de serviço voluntário a que, antes, tinham aderido.

 

4. O caso particular de Portugal

As alterações verificadas no actual quadro internacional de segurança, bem como a natureza específica das ameaças à segurança nacional, implicavam uma capacidade de resposta diferente das FA portuguesas, aconselhando que o respectivo processo de reforma pudesse visar uma organização funcional, que correspondesse a uma visão mais alargada da defesa do País.

A simplificação e agilização de estruturas e a optimização do funcionamento dos órgãos e serviços impunham-se, a par da racionalização do dispositivo das FA, e da adequação dos recursos humanos às exigências de flexibilidade próprias das suas novas missões.

As FA deveriam, então, constituir-se como um instrumento militar capaz de projectar forças conjuntas de elevada prontidão, constituídas com base num conceito modular, com capacidades que permitissem um empenhamento autónomo ou integrado em forças multinacionais, bem como em apoio da protecção civil, sem nunca, contudo, secundarizar a defesa e a integridade do espaço nacional e das respectivas populações.

Por outro lado, as exigências das respostas ao actual quadro de ameaças e riscos tornavam indispensável que se tivesse, também, em conta a necessária capacidade de crescimento do sistema de forças, quando necessário, por convocação ou mobilização, tornando-se, assim, indispensável o levantamento de um sistema de convocação e mobilização suficiente e eficaz.

Em síntese, mantendo o objectivo de uma capacidade de dissuasão credível, considerava-se prioritária a consolidação das FA portuguesas como organização modular, flexível e moderna, valorizando as capacidades conjuntas e optimizando o produto operacional, adequando-as quer ao novo ambiente de segurança, quer ao quadro orçamental que o país está obrigado a suportar, implicando soluções racionalizadoras do sistema de forças e do seu dispositivo. Assim, “…a transformação das Forças Armadas deveria obedecer a um processo que se pretende dinâmico, permanente e inovador…” (Ramalho, P., 2013).

Nesta perspectiva, torna-se, então, indispensável proceder à análise da evolução das políticas de defesa nacional, prosseguidas em Portugal, desde 25 de Abril de 1974, avaliar das suas orientações para os diferentes actores relacionados com a questão da Defesa Nacional, e medir a coerência e a eficácia dos seus impactos nas componentes envolvidas, com destaque para a componente militar, face à imprescindibilidade da optimização dos recursos empregues.

 

5. A evolução da política de Defesa Nacional em Portugal

Desde o 25 de Abril de 1974 que as políticas de Defesa Nacional, onde se inclui, naturalmente, a prestação do serviço militar, a par da missão, organização e capacidades das FA, têm sofrido alterações evidentes, e nalguns casos deveras significativas.

Em 1973, as FA contavam com cerca de 200.000 efectivos e a política de Defesa Nacional resumia-se à manutenção do esforço de guerra nos territórios africanos, sob administração portuguesa, através de um modelo de recrutamento geral e universal, restrito aos cidadãos de sexo masculino, e plasmado num modelo de conscrição de Serviço Militar Obrigatório (SMO), com a duração média de 24 meses.

No seguimento do processo revolucionário de Abril de 1974, eram evidentes, à época, as preocupações sobre a indefinição da política de Defesa Nacional, que se prolongaram durante um período transitório até 1982, ano em que se procedeu à revisão da Lei Fundamental, onde se definia, pela primeira vez no ordenamento constitucional português, o conceito de Defesa Nacional, ficando definida, explicitamente, a missão das FA (in CRP: nº 1, Artº 275).

Convém, contudo, começar por rever, embora de forma breve, qual o percurso percorrido, no âmbito da Defesa Nacional e das FA, durante o período anterior a 25 de Abril de 1974.

Durante o período de vigência do Estado Novo, politicamente, as FA foram o sustentáculo e, simultaneamente, o estertor do regime, que se iniciou com a revolução militar de 28 de Maio de 1926 e acabou com a revolução de Abril de 1974. De assinalar que, durante esse período, o regime foi sustentado, apoiado e derrubado pelas FA.

No plano organizativo, as FA estavam representadas na cúpula do Estado: desde logo, e durante 48 anos, o Presidente da República foi sempre um militar, e os Ramos da FA tiveram sempre, também, ministros militares, com excepção de Salazar, em 1961, acumulando com a presidência do conselho de ministros e, mais tarde, com Silva Cunha, em 1973-74, sendo estes os seus verdadeiros chefes, com os respectivos Chefes de Estado-Maior dos Ramos a assumir um papel meramente secundário.

Em relação à política de Defesa Nacional, naquele período, de destacar a entrada de Portugal na OTAN, em 1949, e, mais tarde, o início da fase dos conflitos africanos em 1961, que acabou por ditar o fim do regime.

Figura 4 – O Presidente Óscar Carmona assina o documento de adesão de Portugal à OTAN, em Lisboa, em 28 de Julho de 1949.

Fonte: https://www.nato.int/cps/en/natohq/declassified_162352.htm

 

Centrando, entretanto, a atenção, no período pós 25 de Abril de 1974, assistiu-se às transformações saídas da Revolução, que durante os anos de 1975/76 se caracterizaram por uma mudança assinalável na sociedade portuguesa e no relacionamento político do País com o exterior, em que as FA se constituíram como um meio proeminente de ruptura, assumindo um papel decisivamente interventor e incontestado na formulação das políticas nacionais, nomeadamente no domínio da Defesa Nacional.

Os parâmetros enformadores da política de Defesa Nacional, naquele período, começaram por englobar o processo de descolonização africana, prolongam-se pela intervenção das FA nas missões de manutenção e regulação da ordem pública interna, em simultâneo com a legitimidade da sua acção política, garantida pela institucionalização do Movimento das Forças Armadas (MFA).

Depois de 1976, com a aprovação da Constituição da República e com a eleição do primeiro Presidente da República, por sufrágio directo e universal, bem como pela entrada em funções do primeiro governo constitucional, seguir-se-á um período de maior estabilidade que culminará, após o 25 de Novembro de 1975, com o depuramento do Conselho de Revolução, e com a inserção efectiva das FA na respectiva cadeia hierárquica, assumindo a vigilância e o controlo do cumprimento da Constituição.

No período compreendido entre 1976 e 1982, continua a presenciar-se o papel relevante das FA no âmbito político nacional, com o Presidente da República a ser também o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), que em conjunto comandam e gerem as FA, e com o ministro da Defesa Nacional a ficar reduzido a um desempenho meramente simbólico, no seio do governo.

O Ministério da Defesa Nacional (MDN) tinha ficado completamente esvaziado de funções militares logo após o 25 de Abril de 1974, com as respectivas competências atribuídas ao CEMGFA e aos Chefes dos Ramos das FA. Neste sentido, assim regulava a Lei n.º 3/74, de 14 de Maio, determinando que a estrutura das FA fosse independente da estrutura do governo e que o MDN ficasse, apenas, com funções de ligação entre a Instituição Militar e o mesmo, enquanto os Chefes de Estado-Maior desempenhariam funções de ministro para cada Ramo.

Coube ao primeiro governo constitucional, em Julho de 1976, inscrever na sua lei orgânica as funções do MDN no período constitucional transitório, assinalando as competências que competia ao ministro da Defesa Nacional em assegurar a ligação entre o governo e as FA, através do CEMGFA, e orientar a política global de defesa, especificando, entre outras responsabilidades:

– assegurar a ligação entre os diferentes departamentos governamentais e as FA;

– definir, em ligação com o Conselho da Revolução (CR) e o CEMGFA, os conceitos de acção estratégico-militares;

– estudar e coordenar as actividades governamentais que visassem a preparação moral, técnica, administrativa e económica da nação para situações de emergência;

– planear, em ligação com o CR, a direcção político-militar de mobilização de pessoas e bens.

Apesar deste articulado na Lei poder ser classificado como de menor relevância, o papel dos diferentes ministros da defesa, que se sucederam, esteve longe de ser negligenciável na evolução das relações entre a Instituição Militar e o poder político, constituindo-se, na altura, como interlocutores muito activos no domínio da modernização das FA.

Igualmente, se deverá salientar a sua acção, neste período, na preparação de legislação, que posteriormente serviria de base para a elaboração da futura Lei de Defesa Nacional e das FA, em 1982, que visou ultrapassar o impasse e as contradições com que se debatiam os órgãos de soberania da República, na definição da política de Defesa Nacional, neste período de transição.

Na realidade, a Constituição de 1976 responsabilizava pela Defesa Nacional quatro órgãos, a saber: a Assembleia da República; o Presidente da República; o Governo; e o Conselho de Revolução, fazendo com que a distribuição de competências entre eles se apresentasse, múltiplas vezes, como bloqueadora da tomada de decisão política, no âmbito da Defesa Nacional.

Em 1982, inicia-se um período de estabilização democrática, com a revisão da constituição de 1976, que consistiu, no essencial, na definição de um novo quadro de inserção da Instituição Militar no Estado, culminando com a aprovação da Lei de Defesa Nacional e das FA (Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro), que viria a alterar, de forma evidente, os princípios orientadores da política de Defesa Nacional, a partir da sua promulgação.

Do referido quadro legal resultante, de assinalar:

– a subordinação das FA ao poder político, através da inserção daquelas no MDN;

– a co-responsabilização dos órgãos de soberania em relação às FA;

– a ênfase das competências do MDN no seio do governo, convertendo-se o respectivo responsável como o verdadeiro ministro das FA;

– o reconhecimento de ampla autonomia interna para as FA, no domínio da gestão de pessoal.

Em 1984, já como fruto da clarificação da política de Defesa Nacional resultante do normativo citado, é assinado, com os EUA, o acordo sobre a Base das Lages, assinalando-se, desta forma, um salto qualitativo nas relações bilaterais luso-americanas, pela aliança estratégica que subjazia no acordo, e donde resultou um aprofundamento do empenhamento militar na OTAN.

Depois da revisão constitucional e da aprovação da Lei de Defesa Nacional e das FA, em 1982, segue-se a aprovação do primeiro Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), homologado pelo conselho de ministros de 20 de Fevereiro de 1985.

Figura 5 – O primeiro CEDN foi homologado pelo Conselho de Ministros de 20 de fevereiro de 1985.

Fonte: Site Operacional

 

É um conceito em que, ainda, estão presentes muitos elementos para-isolacionistas que caracterizaram durante muito tempo o Estado Português, contradizendo, de certa forma, a prática governamental de grande aproximação aos Estados Unidos e à OTAN que se vinha verificando, sobretudo, após o acordo das Lages (Ferreira, M., 1985).

É um conceito que, ainda, destaca a percepção atlântica de Portugal, assinalando que ”…as relações internacionais deverão ter em conta a realidade geoestratégica do País, como espaço euro-atlântico, e privilegiar as suas áreas tradicionais de influência…” (in CEDN, 1985).

Neste sentido, ficava claro que a inserção em organizações ou espaços supra-nacionais seria determinada pela necessidade concreta de preservar a soberania nacional contra potenciais ameaças directas à sua preservação.

Neste sentido, deverá ser entendida a posição sobre a participação de Portugal, na OTAN, quando se afirma que “… a mesma deverá ser articulada de forma a reforçar a capacidade de defesa autónoma, em termos que permitam, quanto possível, a utilização dos mesmos meios e capacidades para a realização desse duplo objectivo, assumindo Portugal prioritàriamente obrigações no seu espaço nacional e nos espaços confinantes de claro interesse nacional…” (in CEDN, 1985).

A aprovação do novo CEDN, deveria, então, implicar a definição de um Conceito Estratégico Militar (CEM), das Missões Específicas das Forças Armadas (MIFA), de um Sistema de Forças e de um Dispositivo, daqui decorrendo a materialização do conceito de uma força militar permanente para o País, facto que na realidade não aconteceu.

Entretanto, uma nova Lei do Serviço Militar é aprovada em 1987 (Lei n.º 30/87, de 7 de Julho), indo abrir o caminho para o debate sobre o SMO, o serviço militar feminino, o conceito de convocação e mobilização, bem como a materialização dos conceitos de defesa territorial e de resistência.

“…a nova Lei de Serviço Militar induziu a necessidade de existência de um quadro de reserva para Oficiais e Sargentos de postos superiores dos quadros permanentes, bem como a possibilidade da convocação e ou a mobilização de Oficiais e Sargentos de postos inferiores, assim como de Praças…” (Santos, L., 2013).

Figura 6 – A Lei n.º 30/87, de 7 de julho, abriu o caminho para o debate sobre o serviço militar feminino.

Fonte: Revista Militar n.º 2536, maio 2013 p. 394

 

Esta preocupação é, aliás, bem expressa, em 1986, no Livro Branco de Defesa Nacional, publicado naquele ano, onde fica assinalado: “…tem de se reconhecer que, de facto, o sistema geral das nossas Forças Armadas não projecta a credibilidade bastante para constituir, nessa medida, o factor de dissuasão suficiente, necessário e ajustado à situação do País…”.

Em 1988, depois da entrada de Portugal na Comunidade Europeia, o País aderiu à União da Europa Ocidental (UEO), organização considerada como pilar da Aliança Atlântica, bem como a componente militar duma política comum de defesa europeia, particularmente depois do tratado de Maastricht, dando origem a uma viragem da sua posição estratégica, importa destacar que “…Portugal que tinha uma orientação estratégica tradicionalmente atlantista, oposta a qualquer aproximação continental, percorre agora, com a integração europeia, um caminho que se aproxima de uma posição euro-atlântica, em termos de política externa, tendo naturalmente reflexos sobre a política de defesa e em particular sobre a IESD…” (Teixeira, S., 1999).

Figura 7 – O Livro Branco da Defesa Nacional (1986).

Fonte: wikipédia

 

Esta fase da evolução da política de defesa nacional do País, iniciada em 1982, com a aprovação da Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro, terá terminado, entretanto, com as profundas e significativas alterações ocorridas na Europa, entre 1989 e 1991, decorrentes da queda do muro de Berlim e da desintegração do espaço geopolítico da ex-URSS.

É o tempo de um novo conceito estratégico da OTAN, aprovado em Roma, em Novembro de 1991, e da abertura à Política Europeia de Segurança e Cooperação (PESC), emanada de Maastricht e aos novos desenvolvimentos de uma componente militar da União Europeia.

Essas modificações terão sido decisivas para a revisão do CEDN de 1985, dando origem a um novo CEDN, em 1994, homologado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 9/94, de 13 de Janeiro, ocorrendo uma nova fase no enquadramento da política de Defesa Nacional, que teve, seguramente, em consideração a evolução política internacional, entretanto verificada.

O CEDN aprovado vem sublinhar o novo enquadramento internacional em presença, afirmando o reforço e o aumento da capacidade de actuação da ONU e do respectivo Conselho de Segurança, tendo em atenção a garantia do respeito pelos princípios do direito internacional e dos direitos humanos, como factores potenciadores de uma nova dinâmica, na ordem mundial, que pudesse estimular a cooperação global, no sentido da segurança comum.

Contudo, é importante assinalar que o CEDN não contemplava, no entanto, a definição e tipificação das ameaças para o País, continuando a ser vago, mais uma vez, quanto às acções do Estado, que deveriam, de forma integrada, contribuir para o esforço da Defesa Nacional (Santo, E., 2014).

Acentuando esta contradição, deverá juntar-se o desfasamento temporal verificado na sequência da aprovação de um conjunto de documentos estruturantes para o edifício da defesa nacional e das FA, entretanto, ocorrido, e que importa revisitar.

Assim, de considerar que, em Junho de 1991, tinha sido aprovado o sistema de forças nacional, ao mesmo tempo que a Lei de Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (Lei n.º 111/91, de 29 de Agosto) era promulgada, indo introduzir alterações significativas à Lei de Defesa Nacional e das FA de 1982, com reflexos evidentes no reforço de competências do Ministro da Defesa Nacional.

De referir, igualmente, que no mesmo ano, também, tinha sido aprovada uma nova Lei do Serviço Militar (Lei n.º 22/91, de 19 de Junho), que passava a duração do serviço militar para quatro meses, e que estabelecia a possibilidade de serviço militar em regime de voluntariado e de contrato (RV/RC), incluindo as mulheres.

Mais tarde, em 1993, no âmbito da Lei n.º 111/91, de 29 de Agosto, vai ser promulgada legislação sobre a organização dos Ramos das FA, da sua estrutura superior e do seu sistema de forças e dispositivo, indo dar lugar a uma aprofundada alteração, que resultou numa assinalável diminuição do número de Unidades, Estabelecimentos e Órgãos, particularmente no Exército, o ramo das FA com maior proeminência.

Verificaram-se, deste modo, significativas alterações, quer no domínio do recrutamento dos meios humanos quer no âmbito do dispositivo de forças, ao nível das FA, que irão ter, no futuro imediato, mais uma vez, repercussões importantes no domínio da sua organização, bem como das suas missões.

Assistiu-se, assim, ao desenvolvimento de um processo que se deveria ter iniciado com um CEDN, aprovado a montante, que seguidamente deveria passar pela aprovação das MIFA e, só depois, pelo Sistema de Forças e Dispositivo das FA.

Com um novo CEDN, aprovado em 1995, verificou-se, contudo e paradoxalmente, um percurso inverso, importando entender quais as razões que lhe estiveram associadas.

Apesar da incoerência metodológica assinalada, as FA ajustaram as suas missões a uma nova realidade, embora com custos pesados e até irreversíveis, em certos casos, para o seu funcionamento, e assumiram-se como um instrumento de reconhecida mais-valia para a política externa do Estado, no período que se seguiu.

Na realidade, o carácter inovador das missões militares internacionais que se seguiram na segunda metade da década de 1990, e que para o cumprimento das quais Portugal foi convidado a participar, marcou expressivamente as FA, face à inexistência de parâmetros definidores relativos ao planeamento de forças e capacidades, a montante, como já referido.

A participação das FA fora do território nacional, facto que ocorria, pela primeira vez, desde a participação de Portugal, na Flandres, no período da I Guerra Mundial, apesar dos condicionalismos referidos, traduziu-se num reforço de credibilidade da política externa do País, quer no seio dos seus aliados euro atlânticos, quer no âmbito dos PALOP, estes através do reforço da respectiva política de cooperação, podendo-se, neste último caso, interpretar a própria constituição da CPLP, que foi antecedida pela permanência de uma cooperação de âmbito militar entre Portugal e os respectivos Estados-membros.

Entretanto, o centro da política de Defesa Nacional passaria a ser influenciado, decisivamente, pela compatibilização entre os objectivos de Defesa Nacional territorial e os objectivos das alianças de segurança internacionais nas quais Portugal tomava parte, casos da OTAN, ONU, UEO e OSCE.

Mais tarde, dos trabalhos da revisão constitucional de 1997, resultaram alterações muito significativas para a Defesa Nacional. Por um lado, foram confirmadas, explicitamente, como duas novas missões-tipo das FA, a participação em operações de paz e humanitárias e a cooperação técnico-militar, que, no entanto, já vinham sendo cumpridas do antecedente.

Nesse sentido, as organizações aliadas começaram a reforçar a solicitação da intervenção militar portuguesa fora das áreas tradicionais de actuação das nossas forças, e, deste modo, Portugal passou a ter uma presença militar destacada na Bósnia, no Kosovo, no Líbano e em Timor, participando em missões internacionais e em operações militares de peace keeping e peace enforcement, sob a égide das Nações Unidas e da OTAN, materializando, de forma explícita, o apoio concreto da política de Defesa Nacional à política externa do Estado.

Figura 8 – Contingente de militares portugueses, antes de partirem para uma missão da ONU.

Foto: Miguel Machado

 

Por outro lado, a prestação obrigatória do serviço militar era desconstitucionalizada, em tempo de paz, dando lugar à promulgação de uma nova Lei de Serviço Militar (Lei n.º 174/99, de 21 de Setembro), como já referido anteriormente, e que fixava a prestação do serviço militar, exclusivamente, no regime de voluntariado.

Deste modo, no final da década de 1990, as FA, que mantinham um Sistema de Forças adequado às suas missões constitucionais e permaneciam ligadas à Nação através de um dispositivo e de um conceito de recrutamento adaptado aos seus recursos, foram confrontadas com um novo paradigma que, ao basear o serviço militar numa prestação voluntária, viria trazer notórias dificuldades no respectivo recrutamento, condicionando a sua organização e funcionamento, de forma pronunciada (in Revista Militar, 2014).

Por sua vez, no início do presente século, vai assistir-se a um período de grandes alterações na legislação enquadrante da política de Defesa Nacional, com consequências relevantes nos princípios que irão regular a organização e o emprego das FA, nos anos seguintes.

Por duas vezes, foram alterados o CEDN (2005 e 2013), a Lei da Defesa Nacional (2009 e 2013), e a Lei Orgânica das Forças Armadas (2009 e 2013), bem como a entrada em funcionamento da Lei de Serviço Militar (LSM de 1999).

Esta última, ao não dispôr de mecanismos para tornar o recrutamento suficientemente atractivo, deu lugar a um reduzido fluxo de pessoal voluntário para prestação de serviço nas fileiras, acabando por impôr severas dificuldades na sustentação do Sistema de Forças Nacional, e criando reconhecidas dificuldades e limitações no cumprimento das missões militares internacionais, que Portugal vinha assegurando, desde meados da década de 1990 do século passado.

Como resultado, as FA terão sofrido, desde 2010, uma significativa perda da capacidade do seu sistema de forças, pela pronunciada queda dos efectivos com que se debateu, fruto do abandono do modelo de conscrição que o suportava.

Acentuando aquelas dificuldades, de referir, ainda, que apenas entre 2010 e 2011, o número de militares em RV/RC diminuiu cerca de 25%, evidenciando bem o grau de dificuldade das FA, em termos de recrutamento, com as inerentes dificuldades no respectivo funcionamento orgânico e no cumprimento das missões atribuídas (IESM, 2012).

Decorrente desta realidade, a capacidade de projectar forças, em apoio da política externa do Estado, nos anos seguintes, terá ficado reduzida em cerca de 30% do valor registado no início do século, enquanto as capacidades de sustentação em operações diminuíram dràsticamente, também, por via da desorçamentação sucessiva a que as FA foram sujeitas.

Enquanto isso, no mesmo período, continuavam a verificavam-se significativas modificações no quadro geopolítico mundial e “…tornava-se indispensável estabelecer mecanismos capazes de garantir a mobilização de efectivos, de forma a permitir que o País pudesse assegurar a sua quota-parte, no conjunto das forças reunidas, no âmbito das alianças em que estava inserido…” (Santos, L., 2013).

Por outro lado, Portugal, de acordo com os conceitos da cooperação reforçada e de pooling and sharing, seguiu as orientações do Conceito Estratégico da OTAN (Lisboa, 2010), e pareceu esquecer as suas especificidades históricas e geoestratégicas, abandonando a sua metodologia de planeamento de forças, baseada em subsistemas capazes de cumprirem as missões militares core do interesse do seu espaço vital, enfatizando, assim, o carácter expedicionário das suas FA.

 

6. O CEDN de 2013

O CEDN de 2013 repete no seu articulado os mesmos desvios, já identificados no CEDN de 2003, focalizando-se, essencialmente, na componente militar da Defesa Nacional, não apontando para uma política integrada com as componentes não armadas, daí sobressaindo a falta de políticas sectoriais, no âmbito governamental, naquele domínio.

Como resultado e à semelhança dos diferentes CEDN aprovados, até à data, dele decorreu, apenas, um Conceito Estratégico Militar (CEM) orientado, em exclusivo, para a actuação das FA, não tendo havido lugar a qualquer directiva ou orientação por parte dos diferentes ministérios governamentais com responsabilidades na política de Defesa Nacional para os documentos em causa.

Acentuando essa lacuna, o XIX Governo Constitucional acabou por extinguir o Conselho Nacional de Planeamento Civil de Emergência (CNPCE) que, no quadro da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), tinha por missão desenvolver e coordenar a acção interministerial das componentes militar e não militar da Defesa Nacional.

Deste modo, o CEDN em vigor acabou, simplesmente, por vir a dar cobertura à denominada “Reforma 2020” para a Defesa da autoria daquele Governo, reconhecidamente penalizadora para as FA, e cujos efeitos se têm vindo a sentir, de forma gravosa, até aos dias de hoje.

A “Reforma 2020”, tendo sido marcada por uma visão estritamente economicista e sem um racional coerente que pudesse sustentar as opções tomadas, foi particularmente grave para o Sistema de Forças Nacional, tendo como resultado a edificação de capacidades militares incompletas e desajustadas, em termos dos meios e dos equipamentos indispensáveis à sua operacionalização.

A designada “Reforma” para a Defesa apontou cortes adicionais, em pessoal, estruturas e sistemas de armas e equipamentos das FA, da ordem dos 30%, orientações que a Lei Orgânica das FA (Lei n.º 6/2014, de 1 de Setembro) veio plasmar no seu articulado, com a consequente e significativa contracção do dispositivo de forças, materializado numa menor presença nas parcela do território nacional, diminuindo a capacidade de defesa, a ligação à Nação e a perda do sentido de defesa entre a população nacional.

Assim, se conclui do papel destacado desta pseudo reforma no reforço do processo de decadência acelerado em que as FA, hoje, se encontram, o qual tendo-se iniciado, em particular, desde os finais da primeira década de 2000, se veio a agravar, definitivamente, por via da mesma.

Entretanto, da análise do teor do CEDN em vigor, como documento estruturante da política de Defesa Nacional, ressalta a ideia de uma deficiente percepção da importância dos assuntos relativos à Defesa Nacional, em sentido restrito, no âmbito das estruturas nacionais.

Daí decorre a quase exclusiva orientação para a definição das responsabilidades da componente militar de defesa, ou seja, na prática, unicamente, para o empenhamento e responsabilidades das FA.

Figura 9 – A “Reforma 2020” para a Defesa foi penalizadora para as Forças Armadas.

Foto: Miguel Machado

 

Mantém-se, assim, a intenção de restringir ao universo militar a responsabilidade da Defesa Nacional, não a alargando a outros sectores do Estado, relevantes na acção estratégica global, deixando, assim, de haver uma referência explícita à natureza global e ao carácter interministerial da política de Defesa Nacional.

Teria sido importante que o CEDN “…tivesse tido em conta o novo contexto político estratégico, no qual o quadro da diversidade das ameaças transnacionais ignora as fronteiras da soberania… (Ramalho, P., 2013), uma vez que, de acordo com o competente preceito constitucional, as FA servem exclusivamente a República e a comunidade nacional (in CRP, Art.º 25).

 

7. A Reforma de 2021

Com a promulgação dos diplomas que alteraram as Leis de Defesa Nacional (LDN) e da Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), no final de 2022, consumou-se um processo legislativo da Reforma, por parte do governo, executado com grande celeridade, supostamente ditado por razões de oportunidade da agenda política dos seus mentores (Ministro da Defesa Nacional e CEMGFA), desprovido que foi dos indispensáveis estudos e debates que o deveriam ter precedido, vindo a expôr a grave crise que atravessa a Defesa Nacional e as FA, em todos os seus domí-
nios, sejam eles humanos, materiais ou orçamentais.

Vindo a Reforma a reforçar, sem qualquer necessidade percebida, o quadro de competências do CEMGFA, pelo esvaziamento das competências estabelecidas para os Chefes de Estado-Maior dos Ramos, o seu pendor dominante focalizou-se na marginalização da capacidade de intervenção destes nos processos de comando e de decisão dos respectivos Ramos, daí resultando a desvalorização inequívoca da sua acção de comando.

Invertendo o sentido de mudança, que desde 1982 se vinha verificando com a transferência de competências dos Ramos para o MDN, veio assistir-se, ...a despropósito e sem racional entendível, à perda do equilíbrio e da coordenação entre o CEMGFA e os Comandantes dos Ramos... (GREI, 2022), podendo vir a pôr em causa a eficácia dos processos de planeamento e de emprego das Forças, bem como a optimização das capacidades do Sistema de Forças Nacional.

Tendo a Reforma, como pano de fundo, o objectivo declarado em importar modelos de outros países na Europa, nada, no entanto, obrigava Portugal a fazê-lo, pela especificidade própria da sua política de defesa, pela sua singularidade e posicionamento estratégico, bem como pela sua identidade cultural e do seu padrão de desenvolvimento económico e social.

Torna-se imperativo, então, questionar se terá sido oportuna e indispensável a promulgação de uma lei, que ignora as reais necessidades das FA, e que evitou tratar matérias que, verdadeiramente, importam para o cumprimento da sua missão.

Neste sentido, deve questionar-se como é que esta lei, poderá, nalgum tempo, contribuir, de modo concreto, para conter a continuada descaracterização do Sistema de Forças Nacional, por via da falência do sistema de recrutamento, a par das reconhecidas e graves insuficiências no âmbito dos equipamentos e dos sistemas de armas.

De assinalar que entre 2011 e o segundo trimestre de 2023 as FA tiveram uma redução de efectivos em cerca de 11.000 militares, correspondendo a uma diminuição de 31,74%, conforme dados da Direcção-Geral do Emprego Público, de Setembro de 2023.

De acentuar a gravidade destes números no Exército, onde o número de Praças é atualmente da ordem dos 4.000 efectivos, situando-se em cerca de 50% dos números autorizados por lei.

 

8. O CEDN de 2023

Sabendo que:

– a Constituição da República Portuguesa e a Lei de Defesa Nacional elegem o CEDN como o documento enquadrante da definição e orientação da Estratégia Total do Estado;

– a política de Defesa Nacional compreende as políticas sectoriais do Estado, cujo contributo é indispensável para a afirmação do interesse estratégico do País, e para cumprimento dos objectivos da defesa nacional;

– a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas de 1982 já atribuía à política de Defesa Nacional uma natureza global, abrangendo as componentes militar e não militar da defesa nacional.

Então, o CEDN, entendido como documento orientador da Estratégia Total do Estado, devia caracterizar e quantificar, de forma objectiva, a realidade do potencial estratégico nacional, devendo estabelecer as prioridades do Estado em matéria de defesa, de acordo com o interesse nacional, sendo parte integrante da política de defesa nacional.

Contudo, é sobejamente reconhecido que o CEDN em vigor é claramente dirigido às Forças Armadas e à Defesa Militar, não tendo gerado, por parte de qualquer outro ministério de sucessivos governos, uma orientação programática, relativamente ao que é referido no documento.

Aliás, os quatro CEDN, até agora aprovados, apenas deram origem ao Conceito Estratégico Militar, orientador da actuação e capacidades das FA, não provocando uma simples directiva, por parte dos outros ministérios da governação.

Entretanto, é conhecido que, ao longo do corrente ano, no âmbito do MDN, houve lugar ao processo de revisão do CEDN (2013), estando as Grandes Opções do CEDN (GOCEDN) na Assembleia da República, tendo em vista o respectivo debate e a posterior aprovação em Conselho de Ministros.

Igualmente, de acordo com informação recolhida, tudo parece indicar que aqueles trabalhos terão seguido uma metodologia de carácter sectorial, centrada, mais uma vez, nas responsabilidades específicas daquele ministério, ... numa prática que se afigura desajustada, ignorando que o CEDN é um documento que deve orientar a Estratégia Total do Estado e não apenas a Defesa Militar (GREI, 2022).

Torna-se, assim, evidente, o erro em que assentou a extinção do CNPCE, como órgão de planeamento e coordenação interministerial para aquela finalidade, ressaltando, mais uma vez, uma deficiente percepção dos assuntos relativos à Defesa Nacional.

Importaria, então, aproveitar a oportunidade criada pela presente revisão do CEDN, para alterar a cultura política e estratégica dominante em Portugal, começando pelo levantamento, junto da Presidência do Conselho de Ministros, de uma estrutura de aconselhamento, planeamento e coordenação, idêntica ao extinto CNPCE, de forma a melhorar a resposta civil e militar às ameaças com que, na actualidade, o País se defronta, e a concretizar as modalidades de acção face aos eventuais riscos que daí possam advir.

Apenas dessa forma o próximo CEDN poderia deixar de se concentrar de forma redutora na Defesa Militar, e poderia avaliar um quadro de ameaças mais vasto e consentâneo com a realidade actual, desde as ameaças e riscos à segurança sanitária, como a prevenção e controlo das pandemias, passando pelas ameaças e riscos de natureza ambiental, bem como pelas respostas a ameaças e riscos, no domínio da tipologia das ameaças transnacionais.


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* O artigo foi escrito em consonância com o anterior acordo ortográfico, não autorizando, o autor, a respectiva transição para o novo acordo.

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2023-11-04
501-523
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia