Nº 2657/2658 - Junho/Julho de 2023
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A implantação do Liberalismo e o início das intervenções militares na política nacional
Tenente-coronel PilAv
João José Brandão Ferreira

Introdução

“Atolados há mais de um século no mais funesto dos ilogismos políticos, esquecemo-nos de que a unidade nacional, a harmonia, a paz, a felicidade e a força de um povo não têm por base senão o rigoroso e exacto cumprimento colectivo dos deveres do cidadão perante a inviolabilidade sagrada da família, que é a célula da sociedade; perante o culto da religião, que é a alma ancestral da comunidade; e perante o culto da bandeira, que é o símbolo da honra e da integridade da pátria”.

Quebrámos estouvadamente o fio da nossa História, principiando por substituir o interesse da Pátria pelo interesse do partido, depois o interesse do partido pelo interesse do grupo, e por fim o interesse do grupo pelo interesse individual de cada um”.

Ramalho Ortigão

 

Desde a fundação da nacionalidade que existem forças militares. Foram estas que fizeram Portugal, impondo e sustentando pelas armas, esse acto político primordial que foi a individualização do Condado Portucalense.

Desde D. Dinis, com a reparação e construção de Castelos e Fortalezas, pela instituição dos “Besteiros de Conto”, e ainda pela criação de uma Marinha de Guerra em termos permanentes (teve um desenvolvimento grande com a criação da Ordem de Cristo, em 1319), que se organizou a Nação para a guerra em termos globais e se instituiu uma espécie de milícia nacional.

Desde D. Duarte que se começou a compilar as normas que regessem a preparação, operação, logística, disciplina e comandamento das forças militares, o que se prolongou através do reinado de seu filho D. Afonso V.

Com D. João II criou-se a primeira Guarda Real permanente e em termos modernos.

Seguiram-se as Ordenações Sebásticas, em 1571.

Com a Restauração criou-se o primeiro Conselho de Guerra, o Tribunal Militar e a primeira Escola de Ensino Militar, em 1641 (a Academia de Arquitetura, Fortificação e Desenho).

Mais tarde, o Conde de Shomberg veio a organizar o exército permanente em Portugal, a partir de 1660.

Outra reorganização importante foi a do Conde de Lippe, a partir de 1763, que teve os seus efeitos até às invasões francesas.

Depois de Junot ter licenciado o Exército Português, em 1807, foi o inglês Carr Beresford que o reorganizou a partir do ano seguinte.

Mas, só em 1817, alguns militares, como tal, fizeram a sua primeira intervenção política. Encabeçou-a o General Gomes Freire de Andrade. Como pano de fundo temos a Metrópole devastada pelas invasões francesas.

Porque o fizeram? Creio que por três ordens de razões:

– Razões militares, dado haver grande mal-estar por a tropa portuguesa estar comandada pelos ingleses;

– Por razões políticas, pretendia-se o afastamento e Beresford e obrigar ao regresso da Corte que estava no Rio de Janeiro;

– Finalmente, por razões ideológicas, Freire de Andrade era Grão-mestre da Maçonaria e partidário das ideias liberais com origem na Revolução Francesa.

A revolta falhou e os 12 principais cabecilhas foram enforcados em Lisboa, num local que hoje se chama Campo dos Mártires da Pátria.

O próprio Gomes Freire, que tinha sido segundo comandante da Legião Portuguesa, ao serviço de Napoleão, foi enforcado em S. Julião da Barra. E não posso deixar de dizer que os militares fuzilam-se, não se enforcam. Erros destes costumam pagar-se caro.

Depois disto, o país nunca mais estabilizou até aos dias de hoje, tendo a última intervenção militar ocorrido a 25 de Novembro de 1975 e prolongado-se até 1982.

 

Antecedentes

“Toda a Nação, mais ou menos ardentemente, desejava ver terminado o intermezzo da Carta Constitucional, e no trono em vez de um papel, um homem”.

Oliveira Martins

(Sobre a Carta Constitucional de 1826)

 

Antes da Revolução Liberal vigorava o “Absolutismo”, depois também conhecido pelo “Ancien Regime” (antigo regime).

O Absolutismo é uma teoria política que defendia que “alguém”, neste caso o Rei, deve ter o Poder absoluto e é independente de qualquer outro órgão. Por outras palavras, o soberano concentrava nas suas mãos todos os poderes do Estado.

Entre os mais insignes defensores desta teoria, encontravam-se Maquiavel, Jean Bodin, Jaime I de Inglaterra, Jacques-Bénigne Boussuet e Thomas Hobbes.

A acompanhar esta teoria política existiu a doutrina do “Direito Divino dos Reis”, que defendia que a autoridade do governante emana directamente de Deus e que, por isso, só Deus o podia destituir.

A Monarquia Absoluta nasceu com Luís XIV, o “Rei-Sol”, logo após a morte do seu ministro principal, o Cardeal Mazarin.

Diz-se que, nessa altura, o Rei voltou-se para o seu chanceler e declarou:

“Senhores, eu lhe pedi que se reunisse com meus ministros e secretários de estado, para dizer que até agora eu deixei o falecido senhor cardeal conduzir os assuntos de Estado; já é hora que eu próprio governe. Vocês nos auxiliarão com vossos conselhos, quando eu vos pedir”. Em seguida, proibiu os ministros de expedir qualquer assunto sem sua ordem.

Em Portugal nunca houve um absolutismo deste tipo, já que havia uma grande tradição municipalista e corporativa, desde o início da nacionalidade e que se desenvolveu por toda a Idade Média.

Também era tradição reunir Cortes, ficando o modelo aperfeiçoado após as Cortes de Leiria de 1254.

Um modelo, aliás, que considero mais “democrático” do que aquele que temos hoje em dia…

Todavia, o fortalecimento do Poder Real, bem como a construção do Estado (que era incipiente) começou com o Rei D. João II e foi-se fortalecendo durante todo o século XVI – o século do “Humanismo”.

A concentração de poderes sofreu um forte impulso na época dos Filipes, apesar da ampla descentralização, acordada nas Cortes de Tomar de 1581.

A Restauração fez amplo uso e propaganda, dos direitos, tradições, usos e costumes portugueses, desde o início da nacionalidade – até se chegou a invocar as míticas Cortes de Almacave (Lamego), supostamente ocorridas entre 1139 e 1143 – mas ideias vindas de fora, que nos passaram a ofuscar, neste caso do Absolutismo, fizeram com que a Dinastia de Bragança decidisse acabar com a reunião das Cortes Gerais.

Tal ocorreu ao tempo do Rei D. Pedro II, tendo as últimas Cortes reunido, em 1698.

Quando D. Miguel I tentou recuperar o modelo antigo, em 1828, já foi tarde…

Deste modo, o Absolutismo cavalgou durante todo o reinado de D. João V, para atingir o seu zénite com D. José I e o “Despotismo Esclarecido” do seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo.

O Conde de Oeiras e, mais tarde, Marquês de Pombal, pode ser considerado como o percursor do Liberalismo em Portugal – apesar do que já afirmei – e não será por acaso que a estátua mais imponente existente em Portugal, é a dele (a do Rei D. José apenas refletia a sua, dele, luz, mas não o personificava) e foi colocada a encimar a avenida que se passou a chamar “da Liberdade”…

No reinado de D. Maria I, tão mal avaliado e vilipendiado, tentou-se obstar e pôr travão nas ideias do “Iluminismo”, em franco desenvolvimento na Europa e América do Norte e, sobretudo, às ondas de choque da Revolução Francesa, que terão sido uma das causas que levaram à loucura da primeira Monarca Portuguesa.

 

*****

 

Acervo de teorias irrealizáveis, se teorias se podiam chamar, de instituições talvez impossíveis sempre, mas de certo modo impossíveis numa sociedade como a nossa e na época em que tais instituições se iam assim exumar do cemitério dos desacertos humanos”.

Alexandre Herculano

(Sobre a Constituição de 1822)

 

Para percebermos a Revolução Liberal de 1820, temos que fazer uma breve incursão sobre o Iluminismo e o Racionalismo, que irromperam no século XVIII, sobretudo, nos países e povos, que adoptaram a doutrina Protestante.

O conceito de Democracia, apesar de se falar nos gregos – melhor dizendo, nos homens livres de Atenas – é moderno, apesar de já estar velho.

Tem origem nos “Iluministas” e “Racionalistas” do século XVIII (apesar de se poder recuar a Sir Francis Bacon (1561-1626) e à “Revolução Gloriosa” de 1688) os quais, através da organização maçónica, desencadearam a 1ª Revolução com essa inspiração, nas 13 colónias inglesas, na América, em 1776.

Seguiu-se a Revolução Francesa e a coisa nunca mais parou até hoje, onde se tenta “vender” o produto a todos os povos da terra.

E, claro, chocando gravemente com a Igreja Católica no plano Teológico e Teleológico… Mas, enfim, esse é outro patamar de discussão.

Em síntese, estas ideias pretenderam, e pretendem, uniformizar todas as religiões (tidas como grandes responsáveis pelas guerras – daí o presumível conceito do “Grande Arquitecto do Universo”); colocar o Homem no centro da vida (Androcentrismo), em detrimento de Deus (Teocentrismo) – incitando até o Homem a igualar-se a Deus (“à sua imagem e semelhança”), quiçá, a desafia-lo.

Privilegia-se o indivíduo em detrimento da família, conceito mais tarde alargado à Nação – que não é mais do que um conjunto de famílias, unidas por um destino comum; substitui-se os Dez Mandamentos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e o Direito Natural pelo direito do voto, como fonte legitimadora do exercício do poder.

Ser Rei por “graça de Deus” era um método que dificilmente podia ser condicionado; todavia, se houver eleição, todo o processo pode ser influenciado ou manipulado. Daqui resultou o ataque ao Trono e ao Altar.

O Constitucionalismo não foi mais que uma solução transitória: o Rei reinava, mas não governava…

A situação clarificou-se (no mundo Ocidental), no fim do século XIX, princípio do século XX: a República (democrática) foi implantada, à bomba, no Sul da Europa (por predominância católica) e por cooptação das Monarquias, no Centro e Norte do mesmo Continente, já dominadas por Reformistas, Calvinistas e Anglicanos.

Na Rússia, foi-se mais longe, extremando-se a república jacobina a que não se conseguiu opôr nenhum “Termidor”. Chamaram-lhe “Comunismo” – também conhecido por “Democracia Popular”…

Pelo meio de tudo isto inventaram-se os Partidos Políticos: talvez a pior invenção política de todos os tempos.

Estes conceitos modernos – para a altura – só começaram a vingar em Portugal, a partir de 1820, com o fim do “Absolutismo” e o início do “Liberalismo”.

Ou seja, durante 700 anos, Portugal governou-se sem qualquer ideia de Democracia, como passou a ser entendida, após a guilhotina ter feito rolar mais cabeças em meia dúzia de anos do que a Inquisição fogueou durante três séculos. E não parece que nos tenhamos governado pior.

 

Da Revolução de 1820 até ao fim do Liberalismo

“Pois sim; o povo é o soberano, mas quem vai na carruagem sou eu!”

Comentário de D. João VI no trajecto para o seu palácio, após ter desembarcado em Lisboa, vindo do Rio de Janeiro, a propósito da turba que o acompanhou aos gritos incessantes de “viva o Soberano Congresso” e “viva o povo soberano”

 

A 24 de Agosto de 1820 (aproveitando a ausência de Beresford no Brasil), rebentou, no Porto, nova revolução liberal e, desta vez, saiu vitoriosa. Lembra-se, a título de curiosidade, que o principal local onde se preparou a conspiração foi numa loja maçónica, que tinha o nome de “Sinédrio” que, se estão lembrados, era o nome do tribunal que condenou Jesus Cristo.

O principal elemento da conspiração foi Manuel Fernandes Tomás, um bacharel em Direito, que goza, até hoje, da fama de íntegro e que se diz ter morrido pobre.

O grande objectivo (salvação da Pátria!) era aprovar uma Constituição. Esta última, inspirada maioritariamente na Constituição espanhola de Cádis de 1812, foi jurada em Cortes, a 30/9/1822, e pelo Rei, regressado no ano anterior, a 1 de Outubro.

O País, maioritariamente conservador e adepto da ordem anterior, dividiu-se e a independência do Brasil piorou tudo, pois, para além de consignar a “deserção” do herdeiro da Coroa – D. Pedro –, vibrou um duríssimo golpe na economia nacional.

Logo a 27 de Maio de 1823, o infante D. Miguel, a instâncias da nobreza e do povo, dirigiu-se para Vila Franca de Xira, seguido por todos os regimentos da capital, à excepção de um, e proclama de novo o “Absolutismo” e a reunião das Cortes à moda antiga. Foi a “Vila-Francada”. O Soberano Congresso – era assim que se chamava o Parlamento na altura –, desesperado e sem qualquer apoio no país, autodissolve-se, em 2 de Junho.

Os monárquicos dividiram-se então em tradicionalistas e liberais. E estes ainda em moderados e democratas.

Os tradicionalistas pressionaram D. Miguel a um golpe, de modo a afastar qualquer hipótese de se promulgar nova constituição, apesar de moderada como era intenção de D. João VI, e deu-se a Abrilada, em 30 de Abril de 1824.

O golpe foi dominado pelo monarca com a ajuda dos diplomatas acreditados em Lisboa e D. Miguel foi fazer uma viagem de estudo pelo estrangeiro.

D. João VI morreu, em 10 de Março de 1826, e sabe-se hoje que foi envenenado com arsénico e existem fortes suspeitas de que o seu testamento foi falsificado.

Daqui resultou uma gravíssima crise política.

Figura 1 – Caricatura representando os dois irmãos D. Pedro e D. Miguel a brigar pela coroa portuguesa (Honoré Daumier, 1830).

 

A Infanta D. Isabel (a filha mais velha do Rei) fica como Regente. D. Pedro, Imperador do Brasil, confirma a regência, outorga a Carta Constitucional, abdica dos seus direitos na filha D. Maria da Glória, e tenta o casamento desta com seu tio D. Miguel, numa tentativa de unir a “família” desavinda”.

A “Carta”, entretanto preparada pelo futuro Duque de Palmela, por tentar uma via intermédia entre as duas tendências, desagradou a ambas.

D. Miguel, tendo concordado com os termos impostos para o seu casamento, regressou a Lisboa, em 22 de Fevereiro de 1828.

Estando o partido tradicionalista forte, e tendo D. Pedro abdicado dos seus direitos ao trono, em função do acordado, e apoiado em extensos apoios no País, D. Miguel dissolveu a Câmara de Deputados, em 13 de Março de 1828, e convocou Cortes nos moldes tradicionais, onde foi proclamado Rei de Portugal.

Tal facto deu origem à mais cruenta guerra civil que em Portugal já houve. Os liberais foram perseguidos, presos e emigraram. Apenas a Ilha Terceira se manteve baluarte dos Liberais. Estes apelaram para D. Pedro que decidiu invadir Portugal com 7.000 homens, a maioria mercenários recrutados em locais pouco recomendáveis.

A guerra civil termina, em 1834, com a vitória “surpreendente” dos liberais e que se explica – dada a desproporção de forças, 80.000 homens para os partidários de D. Miguel e 7.000 homens para D. Pedro – pela Liderança: três excelentes generais e um almirante, do lado Liberal – Saldanha, Terceira, Sá da Bandeira e Napier – e nenhum vulto do lado Absolutista. Além disto, contam-se nesta facção várias e indignas traições.

Estabelecida a paz pela Convenção de Évora-Monte, em 26 de Maio de 1834, logo os vencedores se dividiram, entre “liberais” (moderados e adeptos da Carta) ” e “democratas” ou “setembristas”, partidários do sufrágio directo. O Parlamento reúne-se, a partir de 15 de Agosto, e gera-se uma balbúrdia enorme. D. Pedro IV morre, logo a 24 de Setembro, não resistindo a um mês de Parlamento.

Entretanto, já tinha havido uma revolta em Lisboa, a 9 do mesmo mês, de cariz esquerdista, que entrega o poder aos “democratas” que restauram a Constituição de 1822. Daqui resultaram mais pronunciamentos militares. Conversações com os “Liberais” resultaram num compromisso constitucional, aprovando-se uma nova Constituição, em 3 de Abril de 1838 (a terceira em 15 anos!).

Sem embargo, os “liberais” não ficaram satisfeitos e, em 1842, nova revolução militar inspirada por Costa Cabral, que dissolveu as Cortes, revogou a Constituição e restabeleceu a Carta. A reacção a tudo isto leva à revolta da Maria da Fonte, em 1846, cujo rastilho foi a proibição de enterrar os mortos nas Igrejas.

Saldanha, que passou entretanto para o lado moderado, não admitiu transigências e a guerra civil prolongou-se, só acabando com uma vexatória intervenção política e militar da Inglaterra, da França e da Espanha, no ano seguinte!

Novo Golpe de Saldanha leva à Regeneração de 1851 e ao Pacto da Granja, de 4 de Setembro de 1865.

Instala-se o “Rotativismo”, isto é, as oligarquias políticas e económicas acordam em pôr um pouco de ordem no caos que se vive desde as invasões francesas e a alternarem no Poder numa tentativa de imitar o que se passa em Inglaterra. Nasceu assim o Partido Regenerador (mais à direita) e Progressista (mais à esquerda).

A melhoria das finanças a que um súbito investimento de capitais brasileiros, derivados da proibição da escravatura, deu um empurrão importante, permitiu algum progresso e paz social, cujo principal obreiro foi o General Fontes Pereira de Melo.

Conta-se pelo meio com a “Saldanhada”, último golpe perpetrado por Saldanha, convenientemente afastado depois para a embaixada de Londres. Foi, porém, sol de pouca dura. Nova crise financeira e o “ultimatum” de 1890 e o aparecimento do Partido Republicano (1875) abalaram os fundamentos da Monarquia. Era agora o próprio regime que estava em causa.

A primeira revolta Republicana deu-se logo a 31 de Dezembro de 1891, no Porto. Em 1 de Fevereiro de 1908, são assassinados o Rei e o herdeiro do trono e, em 5 de Outubro de 1910, a Monarquia de quase sete séculos cai em menos de 24 horas. Na Rotunda, restava um oficial de Marinha, oriundo da Administração Naval e que montou a cavalo pela primeira vez nesse dia. O grosso do Exército e da Guarda Municipal, supostamente monárquicos, renderam-se.

 

*****

 

“Foram eles e suas absurdas e falsas reformas que nos trouxeram a este estado. Foram eles que desmoralizaram de todo o País, que o deslocaram e revolucionaram. Reformadores ignorantes, não souberam dizer senão como os energúmenos de Barras e Robespierre: abaixo! Assim se reformou esta desgraçada terra a machado!

Mais dez anos de barões e de regime da matéria e, infalivelmente, nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito.

... Não contentes de revolver até aos fundamentos a desgraçada pátria com inovações incoerentes, repugnantes umas às outras, e em quase tudo absurdas, sem consultar nossos usos, nossas práticas, nenhuma razão de conveniência, foram ainda atirar com todo este montão de absurdos para além-mar…”.

Almeida Garrett

(Sobre a implantação do Liberalismo em Portugal)

 

Resta caracterizar o Liberalismo como doutrina.

A palavra “liberal” vem do latim “liber”, que quer dizer “livre” ou “não escravo”.

Do ponto de vista filosófico, o liberalismo político-económico é uma concepção da vida nos antípodas do Cristianismo.

A génese do Liberalismo vem da Renascença, atravessa todas as querelas político-religiosas da Reforma e da Contra-Reforma, amadurece com a Guerra dos 30 Anos e toma forma através do Iluminismo e Racionalismo do Século XVIII.

As Revoluções “Gloriosa”, Americana e Francesa, sobretudo esta, deram ao conceito e doutrina, um empurrão decisivo.

Bebeu ainda do “Naturalismo” e encontra no filósofo John Locke um dos seus principais teorizadores, que defendeu que cada homem tem o direito natural à vida, à liberdade e à propriedade, e que os jovens não devem violar esses direitos.

A principal oposição ao Liberalismo, logo no seu início, veio do “Tradicionalismo”.

A ideia fundamental do Liberalismo – que é uma doutrina política e económica – como sistema é considerar o Direito como um produto da vontade humana sem qualquer influência transcendental1.

Tal viria a dar origem ao Direito Positivo e a postergar o Direito Natural para a prateleira do esquecimento.

Entronca, por isso, nas mais estremas doutrinas materialistas e racionalistas.

O Liberalismo proclama a absoluta independência e autonomia do homem e defende que a vontade da metade, mais um, é sempre expressão da Justiça.

Trata-se da imposição do número à qualidade.

Sendo os homens livres, deriva, outrossim, que também são iguais, sem distinção que os diferencie. Resulta daqui a atomização da Sociedade e a tendência para o nivelamento por baixo.

Imbuído de Naturalismo, o Liberalismo tende para o racionalismo pagão sendo, por isso, contrário à religião, nomeadamente, a Católica. Quanto muito, admite um “Deus” pessoal, o que entra em contradição com a negação da intervenção sobrenatural.

Em termos políticos, o Liberalismo é sinónimo de Democracia, deificando o homem e tudo fazendo depender da sua vontade.

Haverá que fazer, no entanto, uma distinção: enquanto o espírito liberal apenas concede que cada indivíduo possa dispor de si mesmo, o espírito democrático puro, exige que o mesmo indivíduo possa dispor também do Estado.

Além disso, o Liberalismo tem em conta a “capacidade”, enquanto, a Democracia aposta apenas no Direito. A Democracia é, ainda, igualitária, enquanto o Liberalismo admite uma distinção de classes.

No Liberalismo, o povo só pode eleger os legisladores, enquanto na Democracia o povo pode ser o legislador.

Numa palavra, o Liberalismo é reformista, enquanto a Democracia é revolucionária. Eis a sua grande diferença.

Ora, defendendo o Liberalismo, o sufrágio universal e sendo o homem a origem e o fim do próprio Direito, o Liberalismo não se sustém por si, necessita de uma República e da Democracia Directa.

O Liberalismo está ainda na origem do Capitalismo, do livre comércio e do livre cambismo, o que sofreu um impulso decisivo com as teorias de Adam Smith.

O Liberalismo começou a fortalecer-se por meados do Século XIX e a organização que mais se empenhou na sua divulgação e implementação foi a Maçonaria, sobretudo, os seus ramos inglês e francês.

Apesar das oposições havidas – e foram muitas – o Liberalismo e seus derivados tem sido tentado exportar para todos os povos do mundo.

 

As razões das intervenções militares

“Os diferentes partidos não são mais do que escolas de imoralidade, e portanto companhias de comércio ilícito, onde as diferentes lutas, que promovem, não são mais do que o modo de realizarem o escambo das consciências, o sacrifício dos amigos, e o bem do País, e por conseguinte o modo de realizarem o fruto do peculato, depois de postos em almoeda as opiniões”.

“A classe dos malfeitores é a que mais tem ganho com as garantias constitucionais”.

Luz Soriano

(sobre a política do seu tempo)

 

O que levou à primeira intervenção dos militares na vida política da Nação, em 1817, entende-se2: a população sentia-se órfã por a Família Real e o Governo do País estarem no Rio de Janeiro, o que tendo sido uma decisão acertada e de grande alcance, estava a prolongar-se para além do que seria expectável, já que o perigo francês tinha desaparecido com a derrota de Napoleão em Waterloo, em 1815.

É certo que a situação no Brasil também não era fácil e requeria atenção, mas a situação na parte europeia de Portugal era dramática, com o país destroçado, exangue e à deriva3.

Acresce que a abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, sobretudo inglês, veio retirar enormes réditos ao comércio português, além do facto do governo estar do outro lado do Atlântico começou a parecer à população que se tinha invertido a posição da metrópole.

A Regência entregue ao poder algo despótico do inglês Beresford e o domínio dos principais postos e funções do Exército Português estar nas mãos de oficiais ingleses – que já deviam ter-se retirado – não agradava, naturalmente, aos militares portugueses, que tinham ganho consciência do seu valor militar durante as longas campanhas napoleónicas, até à rendição francesa em Toulouse.

Finalmente, muitos oficiais portugueses tinham sido tocados pelos ideais da Revolução Francesa, nomeadamente Gomes Freire, que era verdadeiramente um “afrancesado”.

Deste modo, os conspiradores da revolução “Vintista” tomaram os seus cuidados para não falharem, pelo que envolveram um número maior de militares, o que permitiu aliciar unidades inteiras.

Figura 2 – Gomes Freire de Andrade, Viena de Áustria, 27/1/1757 – Lisboa, 18/9/1817.

 

A intervenção política dos militares deveria ter terminado com o regresso do Rei e a estabilização da vida política e social portuguesa. Só que esta estabilização nunca se deu, agudizou-se, deu em três guerras civis e só amainou a partir de 1851. Daí para a frente, continuou instável, piorou com o aparecimento do Partido Republicano, com o “Ultimatum” e mais uma bancarrota e esfacelou-se de vez com a proclamação da República.

O tumulto na sociedade portuguesa teve como fulcro a divisão na Família Real, que dividiu naturalmente o Exército e a Armada. A partir daqui, as confrontações violentas eram inevitáveis.

Este tipo de intervenções parece que passou a fazer parte do “ADN” militar português e costuma vir ao de cima, sempre que existem fragilidades graves no Poder Político.

A última intervenção ocorreu no dia 25 de Novembro de 1975 e só terminou com o fim do Conselho da Revolução, em 1982.

Numa análise geral e muito sucinta do envolvimento dos militares em acções violentas, ou não, de cariz político, temos como principal razão, em todo o século XIX, sobretudo nos primeiros cinquenta anos, a partidarização dos mesmos. Isto é o Exército (lato senso) deixou de ser apenas uma força nacional, suprapartidária, para se deixar envolver nas questões políticas, na razão directa em que a política deixou de ser una e passou a faccionar-se.

Existe uma tentativa, a partir de 1851, de tentar que os militares se confinassem aos quartéis e à sua missão de defesa das fronteiras e das ameaças externas. Tudo se esboroa novamente com a República e leva muito tempo a sossegar, no Estado Novo, acabando por se gerar um equilíbrio que permitiu à Instituição Militar modernizar-se, manter a dignidade institucional, estar presente nos órgãos de soberania, e grande autonomia no seu comandamento. O seu Conselho Institucional era tido em conta, tinham muitas competências na segurança interna e na administração ultramarina e, em contrapartida, não se imiscuíam na acção política e governativa.

Foi talvez este equilíbrio que permitiu ao principal fundador e doutrinador do Estado Novo ter-se mantido no Poder mais de 40 anos e a transição, após a sua morte política, ter sido pacífica.

Como pano de fundo da maioria das intervenções políticas dos militares, temos fragilidade política, crise financeira, entre 1817 e 1926, e, sobretudo, questões ideológicas: liberais versus absolutistas; liberais conservadores versus democráticos; regeneradores (direita) versus progressistas (esquerda); monárquicos versus republicanos; republicanos versus conservadores, etc.

Pelo meio, uma crise religiosa profunda que durou entre 1820 e 1940, com a assinatura da Concordata.

Podemos ainda observar que grande parte dos problemas havidos têm origem em ideologias importadas, estranhas à matriz e à índole do povo português, a maioria das quais divulgada e defendida por forças internacionalistas, cujas obediência e lealdade ultrapassam ou se justapõem aos interesses nacionais portugueses.

Finalmente, em grande parte das intervenções militares (ou na sua não intervenção) existem razões de ordem interna, que muitas vezes resultam em mau estar e que apenas aguardam um “ignidor” para explodirem, como são exemplo, injustiças de ordem remuneratória e social; a questão das remissões, problemas de gestão de pessoal derivado de absorção de elevado número de “milicianos”; ataques à dignidade institucional e situações de pobreza extrema em equipamento, armamento e munições.

 

Conclusão

“O Constitucionalismo nunca se casou com a Nacionalidade Portuguesa, porque foi sempre estrangeiro. Toda a obra que urge realizar, fora do seu espírito, não vinga, é estéril e condenada a uma morte próxima”.

Teixeira de Pascoais

(In, “Saudades e o Saudosismo”)

 

O que se passou em Portugal desde as invasões francesas esteve intimamente ligado ao que se passou em Espanha e à acção da Maçonaria. Por isso, não é de estranhar que uma delegação da Maçonaria Portuguesa (que existia desde 1734) tenha ido esperar Junot a Sacavém, para o saudar como “libertador”, e que a insurreição portuguesa durante a primeira invasão só tenha deflagrado após a revolta de Arranjuez e subsequente retirada das tropas espanholas que ocupavam o Porto.

O mesmo ocorreu com a implantação do Liberalismo, cuja Constituição de 1822 é muito inspirada na Constituição de Cádis de 1812 – a que se deve juntar os humores e interesses de algumas potências europeias, de que se destaca a Inglaterra (a mais importante), a França e a Áustria.

Daí se poder afirmar que a vitória do Liberalismo se deveu mais a uma imposição externa do que a uma verdadeira vontade nacional.

Cumulativamente, deu-se início à intervenção política dos militares, o que tem ocorrido até hoje, sempre que o Poder Político, pela sua fragilidade, acções antinacionais, ou por falta de autoridade, não consegue subordinar as forças militares no sistema político ou Regime vigente.

É também no século XIX que surgem na cena política nacional órgãos legais de intervenção política, que tomaram o nome de “Partidos”. Tal passou a colocar em causa a unidade e coesão nacionais afectando, por arrasto e naturalmente, as forças militares do Reino e da República.

A acompanhar os Partidos passou a fazer-se sentir a acção de ramos distintos e no mais das vezes desafeitos da Maçonaria Internacionalista, que com carácter “especulativo” viu a luz do dia, em 1717 (pelo que é tido oficialmente), em Inglaterra, com a formação da Grande Loja de Londres, após o célebre encontro na “Apple Tree Tavern”, em Covent Garden.

Figura 3 – D. Pedro e D. Miguel.

 

Esta “organização” tem tido a sua acção incentivada, tolerada, ilegalizada e, ou, perseguida, conforme a égide do momento, e a natureza dos poderes públicos. Raramente, porém, dá a conhecer publicamente aquilo que faz, relatando, por vezes, aquilo que já fez, mas muitos anos depois.

Já no século XX, as razões principais para a incompatibilidade entre políticos e militares, passaram a radicar-se em quatro ordens de razões:

– Na sua formação e em preconceitos culturais ou ideológicos;

– Em razões de índole histórico-política;

– Na dificuldade de subordinação/controlo da força militar e o seu enquadramento na Sociedade;

– Conflito de interesses na gestão da ambição política de algumas personalidades militares.

É necessário harmonizar tudo isto para não voltarmos a cair no passado, e que vou sumarizar, até ao ano 1926, para terminar.

Durou o liberalismo monárquico 90 anos, de 1820 a 1910. Foi quase um século de lutas partidárias e destruições constantes, durante este tempo desarticulou-se a Nação da sua matriz antiga, entregando-a, por fim, aos defensores da República. Foi seu legado: seis monarcas (dois assassinados) e três regências; 142 governos (um governo e meio por ano); 42 Parlamentos, dos quais 35 dissolvidos por meios violentos; 31 ditaduras (um terço do tempo, fora da normalidade constitucional, e 51 revoluções, pronunciamentos, golpes de estado, sedições, etc.

Este foi o “passivo” trágico que a República herdou.

Os 16 anos que se seguiram foram de grande conflito social e político que alguns poderão até apelidar de pavorosa anarquia.

A República era de fundo jacobino e logo anticlerical, e resultou numa tentativa de imposição serôdia da Revolução Francesa.

O liberalismo estava morto, começava a democracia directa.

Como herança, os 16 anos de “Democracia Directa” da I Republica deixaram ao País: oito chefes de Estado, dos quais um foi assassinado, dois exilados, um resignou, dois renunciaram e outro foi destituído; 45 governos (com um chefe de Governo assassinado), o que dá uma média de mais de três governos por ano – havendo um governo que durou poucas horas e uma semana em que houve três governos, por exemplo; oito Parlamentos, dos quais cinco foram dissolvidos violentamente e 11 ditaduras, o que nos deixa apenas cinco anos em que se conseguiu cumprir a Constituição aprovada em 1911.

E ao fazer-se um balanço muito geral de um século de regime liberal e democrático apuramos que, entre 1820 e 1926, teve o país 16 chefes de Estado, 189 governos e 50 Parlamentos, dos quais 40 dissolvidos por meios violentos. Contam-se 42 ditaduras, quase uma, ano sim, ano não.

É bom relembrar tudo isto pois, por estranhos desígnios da Providência, aprende-se muito pouco em Portugal.

 

Bibliografia

Livros

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1 Costa Brochado, “Para a História do Liberalismo e da Democracia Directa em Portugal”, p. 13.

2 Se bem que se pode recuar até 24 de Julho de1803, quando o Regimento de Infantaria, comandado pelo mesmo Gomes Freire de Andrade e a Legião de Tropas Ligeiras, comandada pelo Marquês de Alorna (que veio a ser o Comandante da Legião Portuguesa…), se amotinaram entrando em confrontos com a recém-criada Guarda Real de Polícia.

3 Deve ainda recordar-se que no Brasil tinha ocorrido uma revolução republicana, em 6 de Março de 1817, em Pernambuco, liderada por Domingos José Martins. Treze dos cabecilhas foram executados.

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