Nº 2657/2658 - Junho/Julho de 2023
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Missão de apoio sanitário num campo de refugiados afegão – Um testemunho
Tenente-coronel
Raquel Santos

Em Julho de 2021, o Presidente norte-americano, Joe Biden, anunciava o fim da presença militar no Afeganistão, pondo fim a quase duas décadas de missão, tendo sido esta considerada a mais longa guerra na história dos EUA. Com o início da retirada da força da NATO no Afeganistão, nas notícias, víamos imagens do avanço galopante das forças Taliban no terreno, com ataques terroristas no aeroporto de Cabul e o desespero da população afegã a disputar os lugares nos aviões prestes a descolar para fugir do controlo dos extremistas. Segundo as notícias, os voos da operação de retirada levaram mais de 123 mil pessoas do aeroporto de Cabul, incluíndo civis afegãos, gerando mais uma crise de refugiados. Alguns críticos comparavam a situação à retirada norte-americana do Vietname.

No sentido de dar apoio à recolocação de cidadãos afegãos, sobretudo aqueles que apoiaram o esforço da aliança, durante os 20 anos de presença em território afegão, a NATO criou alguns centros de acolhimento de refugiados na Europa, nomeadamente no Kosovo.

Neste contexto, e em resposta à solicitação do Supreme Headquarters Allied Powers Europe (SHAPE), as Forças Armadas Portuguesas, contribuíram com um Destacamento CIMIC (Cooperação Civil Militar) e um Destacamento de Apoio Sanitário (DASan).

No mês de setembro de 2023, completar-se-ão 2 anos, da projeção do 1º DASan do Comando Logístico Conjunto (CLC), pela Task Force (TF) Noble, na operação ALLIED SOLACE, no Kosovo. A missão, que estaria inicialmente prevista para uma duração máxima de 90 dias, foi empenhada durante 5 meses no Teatro de Operações (TO). Participei nesta missão, de forma voluntária, como Comandante do 2º DASan.

O objectivo deste artigo é partilhar um pouco da experiência vivida, numa missão médica militar, com carácter humanitário e fora dos padrões habituais das Forças Nacionais Destacadas (FND) consideradas regulares. Acima de tudo, contribuir com lições aprendidas e registo histórico/ estatístico, para futuras missões semelhantes.

O 1º DASan foi projectado a 8 setembro de 2022 e era constituído por 2 médicos e 2 enfermeiros de diferentes ramos das Forças Armadas. Sendo que, no 1ºDASan, um dos elementos médicos era militar do sexo feminino e da especialidade de Ginecologia/Obstetrícia.

Estes apresentaram-se no Campo de refugiados de Bechtel, localizado a cerca de 40 Km a sul da capital, Pristina, e a 2 Km de Campo Bondsteel do US Army, com a missão de prestar apoio sanitário aos refugiados afegãos.

No comando (headquarters) do Campo de Bechtel, estavam militares de nacionalidade americana e britânica, e eles incentivavam a que se utilizasse uma linguagem politicamente correcta, nomeadamente, faziam questão que, não se designasse de campo de refugiados, mas sim Bechtel Village, nem que se falasse de refugiados, mas sim NATO Affilliated Afghans (NAA).

O Bechte Villagel, era um antigo estaleiro de alojamentos prefabricado, de apoio à construção de uma auto-estrada, que foi adaptado para alojar mais de 1000 refugiados afegãos. Este campo de refugiados tinha as condições mínimas sanitárias, como fornecimento de água, luz, sistema de esgotos, recolha de lixo, serviços de lavandaria, refeitório… inclusive, os refugiados tinham acesso à rede wifi e um campo de jogos, onde costumavam jogar futebol, mas o desporto com mais adesão era o voleibol. Com o tempo, foram adaptando o espaço físico à realidade cultural dos afegãos e organizaram zonas de convívio separadas para homens e mulheres onde podiam beber chá, café e fumar os habituais cachimbos de água conhecidos como narguilé. Foi também adaptado um espaço com um campo de voleibol em separado para as mulheres, que costumava ser frequentado por crianças e adolescentes afegãs, às quais, por vezes, também nos juntávamos. Curiosamente, a pedido dos próprios afegãos, em vez de receberem comida já confecionada, começaram a receber viveres e a cozinhar a sua própria comida.

Esquema 1 – Localização do Campo de Bechtel.

Legendas: – posto de socorros; HQ – headquarters/CIMIC; DFAC – refeitório

 

As dificuldades iniciais do 1º DASan PRT consistiram em adaptar as instalações de um posto de socorros prefabricado abandonado existente no campo, ao mesmo tempo que já se dava início à atividade clínica assistencial imediata. Isto porque, à sua chegada ao campo, os refugiados afegãos já se encontravam no local há alguns dias. Sem contabilizar o tempo que estas famílias já estariam fora de suas casas em espera no aeroporto em Cabul.

Os gráficos 1 e 2 fazem uma caracterização da população afegã do campo por idade e género, à data de 10 setembro (chegada do primeiro contingente de DASan PRT). Eram na maioria agregados familiares, mas fundamentalmente muitas mulheres e crianças. Sendo que, inicialmente haviam 18 grávidas no campo.

Gráficos 1 e 2 – Caracterização da população NAA do Campo Bechtel, por sexo e idade.

 

Desde o início, a moral do pessoal DASan PRT era boa. A maioria dos elementos foi voluntariamente para a missão e já tinham experiências em FND anteriores, inclusive no Afeganistão. O facto de se tratar de uma missão de carácter humanitário de apoio a civis refugiados de guerra também contribuiu para um sentido de responsabilidade e orgulho de missão.

A classificação do apoio sanitário atribuída seria de Role 1/Posto de Socorros (PS), mas a capacidade de reanimação/estabilização era básica e não havia possibilidade de internamento nem de realização de exames complementares de diagnóstico.

Fotos 1 e 2 – Equipas que trabalhavam no PS do campo de Bechtel: elementos do 1º e 2º DASan PRT aquando da sua sobreposição, Samaritans´s Purse, contingente MEDEVAC britânico e tradutores. Instalações físicas do PS do campo de Bechtel.

 

No dia-a-dia no PS do campo de Bechtel, o DASan PRT desenvolvia a sua atividade clínica assistencial de cuidados de saúde aos refugiados afegãos, 7 dias por semana, entre as 09h00 e as 18h00.

Um dos maiores desafios nesta missão foi trabalhar lado-a-lado e em coordenação com diferentes equipas da área da saúde, quer militares de outras nacionalidades quer com civis de diferentes Organizações Não Governamentais (ONG).

A principal ONG com quem trabalhamos foi a Samaritan´s Purse. Esta contribuía com 2 médicos e 2 enfermeiros civis de nacionalidade norte-americana, os quais tinham uma rotação de 15/15 dias. Curiosamente, alguns deles eram médicos ou enfermeiros ex-militares ou reformados. Foi gratificante “batalhar” diariamente com eles, dividindo entre nós a observação de doentes. Como no primeiro DASan PRT havia uma especialista em Ginecologia/Obstetrícia e os médicos da ONG acautelavam sempre a existência de um Pediatra ou médico generalista com experiência na área pediátrica, na prática instituída e coordenação entre equipas, o DASan PRT assumia as consultas das mulheres e grávidas e a Samaritan´s Purse assumia as consultas da população pediátrica.

A Samaritans´s Purse é uma ONG com influência religiosa cristã evangélica, mas manteve sempre uma postura neutral dentro do campo, onde a grande maioria dos refugiados eram muçulmanos. A situação fazia-se notar apenas aquando da solicitação por parte dos pacientes de medicação anticoncepcional ou calmantes, nessas alturas os elementos da Samaritan´s Purse solicitavam que fosse o DASan PRT a observar os doentes.

No total, foram efectuadas 3163 consultas médicas, 149 evacuações e orientadas 14 hospitalizações. Sendo que, destas, 2137 consultas foram efetuadas pelo DASan PRT e as restantes 1026 efetuadas pela Samaritan´s Purse.

A maioria das condições médicas eram minor, de prevenção e rotina. Alguns dos motivos de hospitalizações foram por icterícia em recém-nascido, abortos espontâneos, colecistite aguda e cólica renal. No entanto, houve casos mais graves urgentes, nomeadamente: insuficiência respiratória aguda em criança, trabalho de parto, enfarte agudo miocárdio, leucemia aguda e trauma ocular.

As evacuações foram, na sua maioria, asseguradas pelo contingente de MEDEVAC britânico e as hospitalizações foram para hospitais civis em coordenação com representante do sistema nacional de saúde local para o University Clinical Center of Kosovo em Pristina e Hospital de Ferizaj. Uma limitação era que as cartas de alta e relatórios médicos dos hospitais civis no Kosovo vinham sempre em albanês, o que dificultava a compreensão da informação clínica. Houve também situações clínicas que habitualmente seriam tratadas em regime de internamento, mas que os hospitais kosovares davam alta, alegando sobrelotação, falta de camas, entre outros, e estas acabaram por ser tratadas em regime tipo “hospital de dia”, no nosso PS. Tal implicava uma transferência de responsabilidade clínica e, inclusive, por vezes manter doentes com acessos endovenosos nos alojamentos e administrar medicação que necessitava de vigilância, nas limitadas instalações existentes e com escassos recursos.

Fotos 3, 4, 5, 6 – Fotos da atividade clínica do 2º DASan PRT: pormenor de mulher atendida por enfermeiro que tapa as pernas com o casaco. Criança suspeita de maus tratos é tratada a ferida na face. Acompanhamento de grávida pós cesariana. Criança após drenagem de abcesso na coxa é consolada com um chupa-chupa pelo bom comportamento.

 

Devido às limitações em termos de apoio de outras especialidades, realizaram-se algumas reuniões por videoconferência com médicos especialistas do Hospital das Forças Armadas (HFAR), para o apoio à decisão clínica no TO, nomeadamente serviço de Oftalmologia, Gastroenterologia, Cirurgia Geral, Medicina Interna, Neurologia e até mesmo Farmácia Hospitalar, no contexto da adaptação a fórmulas endovenosas de fármacos diferentes das existentes em Portugal.

O gráfico 3 faz referência a distribuição das consultas do DASan PRT por motivo e/ou tipo de patologias identificas.

Gráfico 3 – Distribuição consultas do DASan PRT por motivo/patologias.

 

Houve alguma dificuldade em manter registos clínicos adequados, dado a afluência elevada que, por vezes, havia no PS, mas também porque o mesmo doente poderia ser avaliado um dia pelo DASan e passado uma semana pela equipa dos Samaritan´s Purse. Para além de que era possível que a mesma pessoa fosse registada em diferentes nomes que, falado em afegão, poderiam ser interpretados de forma diferente, dependendo dos tradutores. Daí a importância de registar os dados de sexo, idade/data nascimento e local de alojamento para poder cruzar informação de forma a confirmar a identidade dos pacientes.

A própria necessidade da presença de tradutores para a realização de consultas e tratamentos médicos era também, em si, uma limitação. Poucos afegãos falavam inglês e o campo era frequentado por tradutores com diferentes origens, desde civis britânicos, civis kosovares, a militares canadianos… mas de forma geral todos tinham origens afegãs e alguns já tinham, inclusive, passado pela experiência de serem refugiados. Os tradutores não estão abrangidos pelo sigilo clínico e, ao fim de algumas semanas, alguns deles inclusive já tinham relações de amizade com alguns dos residentes do campo. Tudo isto levava a que tivéssemos que estar mais sensíveis e alerta para situações em que a presença do tradutor não era desejada pelos pacientes. Por exemplo, houve uma mulher afegã, sem parceiro, que optou por planear uma interrupção voluntária da gravidez, a qual foi efectuada de forma discreta e em coordenação com o Serviço de Obstetrícia do Hospital de Pristina.

Para além da Samaritans´s Purse, outra ONG com quem tivemos oportunidade de trabalhar, foi a Terre des hommes, que disponibilizou 2 enfermeiras parteiras kosovares que visitavam o campo semanalmente. Com elas planeávamos visitas domiciliárias às puérperas (avaliação das mulheres no pós-parto), recém-nascidos e apoio na amamentação. Neste acompanhamento houve alguns constrangimentos, causados por costumes afegãos relativos às práticas com os recém-nascidos, por exemplo: têm o hábito de pintar os olhos com uma espécie de rímel preto, davam uma mistura de chás para beber, não valorizavam os cuidados de higiene, queriam insistentemente circuncisar antes de completarem 1 mês de vida… Tentávamos informar os pais sobre os adequados cuidados de higiene, importância da amamentação exclusiva, sobre as complicações de circuncisar crianças recém-nascidas. Tivemos casos, por exemplo, de infecções oculares e até mesmo infecções do cordão umbilical no recém-nascido.

O campo era assiduamente visitado por membros de diferentes ONG, todas com agendas e interesses próprios e com as quais tínhamos que nos interligar. Geralmente, o principal objectivo era efetuar doações, nomeadamente de roupa, calçado, brinquedos, material escolar, etc. Algumas queriam avidamente contribuir com sessões de divulgação e esclarecimento sobre diferentes temáticas, que incluíam assuntos sobre a educação para a saúde. No entanto, alguns dos temas abordados, apesar de pertinentes, na minha opinião, não eram adequados para ensino em contexto de campo de refugiados em si, por exemplo: sessões de esclarecimento sobre o rastreio de cancro de mama, ou cancro de próstata, etc. Tal, só criava ansiedade sobre um novo conhecimento da possibilidade de ter a doença e resultava em vindas ao PS, querendo fazer investigação diagnóstica, que não eram possíveis por falta de meios no local e falta de subsistema de saúde que suportasse tais custos. A evacuação para hospitais kosovares não era para situações médicas de rotina. A única excepção, que foi negociada com a representante do sistema nacional de saúde local, foi o acompanhamento das grávidas. No entanto, outras acções houve, realizadas por ONG que foram muitos úteis, nomeadamente um rastreio oftalmológico. Este, aliado à doação de centenas de próteses oculares usadas. Conseguia-se avaliar que óculos teriam graduação similar à necessidade de cada um.

Uma das acções de educação para a saúde que mais se destacou foi um “Curso de Preparação Pré-Parto”, organizado pelo 2º DASan PRT em cooperação com outras ONG. Curiosamente, inicialmente, o curso foi dirigido apenas às mulheres grávidas, que por questões culturais não se fizeram acompanhar pelos maridos. Surpreendentemente, houve homens que mostraram interesse no assunto e posteriormente foi efectuada 2ª edição em separado para os homens. Foi interessante verificar que as mulheres tinham muito interesse em aprender exercícios pós-parto de prevenção de incontinência urinária e prolapso vaginal (complicações frequentes em mulheres com múltiplos partos vaginais) e os homens sobre quanto tempo após o parto, fosse este por cesariana ou parto vaginal, seria adequado voltar a tentar engravidar.

O interesse sobre o tema surge, porque, culturalmente e religiosamente, os afegãos são incentivados a procriar. O facto de estarem num campo de refugiados não era impeditivo. Aliás, todos os dias faziam-se, em média, cerca de 1-2 testes de gravidez e o número de grávidas no campo era atualizado no relatório Epi-NATO semanal. Esta era uma situação que causava vários constrangimentos, nomeadamente, havia muita dificuldade no acompanhamento clínico das grávidas de 1º trimestre em situações de suspeita de aborto espontâneo, porque recusavam a introdução do ecógrafo endovaginal para avaliação obstétrica hospitalar. Sendo que nas fases mais precoces da gravidez existe dificuldade de avaliação por ecografia abdominal. Tivemos, inclusive, uma grávida que, à chegada de uma consulta de Obstetrícia no Hospital em Pristina, mesmo tendo esta sido acompanhada por uma tradutora e nunca ter demonstrado retinência em efectuar o exame, aquando do seu regresso, alegou ter sido “violada” pelo médico Obstetra com a sonda ecográfica endovaginal. Na altura ativou-se o apoio psicológico do contingente búlgaro.

Fotos 7 e 8 – Curso de preparação pré-parto, onde o DASan PRT lecionou as seguintes aulas com apoio de tradutora do contingente militar canadiano: “Trabalho de parto e anestesia” e “Cuidados de higiene do recém-nascido”.

 

Existiam também contingentes militares de outras nacionalidades a prestar apoio sanitário no Campo de Bechtel. Nomeadamente, o apoio psicológico era búlgaro, o apoio de medicina dentária era holandês e o apoio de evacuação médica terrestre (MEDEVAC) era britânico.

O contingente militar búlgaro de apoio psicológico era constituído por uma equipa de 2 psicólogos militares. Tratava-se de uma população que estava a vivenciar um grande stress psicológico, que abandonaram o seu país de origem num contexto de violência/guerra, alguns com sentimento de culpa por terem deixado familiares para trás e enfrentam agora a possibilidade de não recolocação em nenhum país de destino. Muitos dos motivos de vinda ao PS eram sintomas de stress, nomeadamente: gastrointestinais, cefaleias, amenorreia, distúrbios do sono, crises de ansiedade, ataques de pânico, síndrome depressivo. O apoio psicológico foi importante neste contexto.

O contingente militar holandês de apoio de medicina dentária era prestado por uma equipa militar holandesa composta por 1 médico dentista, 2 técnicas dentistas e uma viatura pesada, com contentor com gabinete de tratamentos dentários, esterilização e ortopantomografia. A população afegã recorria bastante aos tratamentos dentários prestados pela equipa holandesa, libertando o PS da necessidade deste apoio.

O contingente de MEDEVAC britânico no local era composto por 2 médicos, 1 enfermeiro, um paramédico, cerca de 15 socorristas/condutores, e possuía 3 ambulâncias táticas para evacuação. A sua atividade concentrou-se, em regime de turnos, nas evacuações médicas quando solicitados e no atendimento emergente nos períodos nocturnos. A equipa britânica, apesar de numerosa, tinha uma atitude muito contemplativa na atividade clínica diária. Estes alegavam estar limitados por Medical Rules of Eligibility (MRoE), nomeadamente, atuação apenas em situações de emergência com risco eminente de vida, perda de membro ou visão, a conhecida sigla LLE (Life, Limb, Eye). Ou seja, a responsabilidade clínica da avaliação de doentes diários era transferida para os elementos do DASan PRT e Samaritan´s Purse.

Como médica militar, o meu treino e experiência foi sempre vocacionado para apoio sanitário a pessoal militar no contexto de operações militares. Nesta missão, estamos a falar na responsabilidade médico-legal, de médicos militares portugueses, a exercer a sua atividade profissional, num país estrangeiro, em apoio a civis refugiados, sem qualquer subsistema de saúde e com recursos limitados. Mesmo para médicos e enfermeiros militares com experiência em FND prévias, toda esta situação é “fora da caixa”. Efetivamente, quando o DASan PRT foi projectado, não houve qualquer definição sobre regras de empenhamento. No terreno, a todos os militares do DASan, pareceu-nos absurdo estarmos numa missão humanitária e não garantir todo o apoio sanitário que estava ao nosso alcance aos refugiados de guerra. Até porque, nos primeiros meses, a atividade clínica era relativamente pesada, chegando às 50 consultas diárias. Inclusive, o 1º DASan nem teve oportunidade de usufruir de um restday semanal, que só foi possível implementar a partir do 2º DASan, em sistema rotativo, por forma a garantir aos fins-de-semana uma equipa médico-enfermeiro no campo.

Esta questão de diferentes regras de empenhamentos, entre contingentes militares de diferentes nacionalidades, chegou a criar alguns constrangimentos. Inicialmente, o contingente britânico recusava realizar evacuações por motivos que não fossem urgências/emergências médicas. Os meios existentes no campo eram muito limitados para avaliação de doentes semi-urgentes, com necessidade de realização de exames complementares ou avaliação por especialidades médica/cirúrgica. A certa altura, usavam-se as viaturas do pessoal CIMIC para realizar transportes para os hospitais civis. No entanto, houve um crescente receio do pessoal CIMIC em assumir os transportes de doentes nas suas viaturas. Entretanto, após alguns sustos com emergências médicas envolvendo crianças e grávidas, o contingente de MEDEVAC britânico passou a não assumir os transportes urgentes, referindo que as suas viaturas não estavam autorizadas a ultrapassar os limites de velocidade em território kosovar, sendo que as evacuações urgentes passaram a ser assumidas por ativação do sistema de emergência médico civil local. Face a esta situação, o contingente MEDEVAC britânico, passou, desde então, a assumir os transportes dos doentes de ambulatório ou não urgentes para os hospitais civis.

O Medical Adviser da NATO, de nacionalidade britânica, era a entidade técnica responsável pela coordenação do apoio sanitário prestado pelas diferentes entidades militares que estavam no campo e ao qual o Cmdt do DASan PRT enviava os dados estatísticos do relatório Epi-NATO semanal e, por seu intermédio, colaboramos na implementação de planos de vacinação e na elaboração de relatórios médicos de afegãos (principalmente grávidas), quando exigidos pelos serviços de estrangeiros e fronteiras dos países de destino. Também participámos, como apoio técnico, em visitas ao campo por parte de representantes da Amnistia Internacional. Tivemos ainda 2 casos sociais nos quais houve envolvimento do Medical Adviser: uma suspeita de maus tratos em criança e outra confirmação de violência doméstica em mulher, para a qual teve que ser solicitado intervenção da polícia local kosovar.

O reabastecimento de consumíveis classe VIII era adquirido no mercado local, em farmácias civis na cidade de Ferizaj, conforme as necessidades e fazendo uso do NATO common funding. O procedimento habitual era um dos elementos do DASan PRT acompanhava o Camp Manager, com responsabilidade financeira do JFC Naples, para fazer as aquisições. Como a medicação, por vezes, não existia na fórmula pela qual estávamos habituados em Portugal, obrigava a ter que adaptar as prescrições médicas ao que havia disponível localmente. Mas, surpreendentemente, conseguíamos comprar medicação endovenosa na farmácia local, sem qualquer restrição.

O DASan trabalhava em colaboração com a equipa CIMIC do campo, sendo que esta era composta por elementos de nacionalidade italiana e portuguesa. O trabalho do DASan PRT, em colaboração com a equipa CIMIC, consistia principalmente na identificação de necessidades especiais de algumas famílias (exemplo: famílias com recém-nascidos, doentes com mobilidade condicionada). Realização de inspecções a alojamentos quando suspeita de alguma condição médica de origem ambiental, por exemplo, havia muitos casos de pequenos abcessos cutâneos cuja descrição seriam precedidos por aparente picada de insecto e que, após inspecção aos alojamentos, se efectuou planeamento de desinfestação. Também demos apoio ao pessoal CIMIC, na organização de rastreios rotineiros de CoViD à população do campo para prevenção de surtos.

O fato da missão ter sido em plena pandemia CoViD foi também, em si, um desafio. Todos os elementos do DASan PRT eram submetidos a rastreios bisemanais e, no contacto com os pacientes ou no convívio com a população afegã, havia especial precaução com o uso de máscara, pois qualquer surto CoViD poderia atrasar o processo de realocação dos refugiados nos países de destino.

A população do campo foi diminuindo ao longo do tempo, devido a sua realocação em diferentes países de destino. O gráfico 4 faz referência à evolução do número total de NAA no campo, ao longo do tempo.

Gráfico 4 – Evolução do número de NAA, ao longo do tempo.

 

A missão estava primariamente prevista para uma duração máxima de 90 dias, no entanto, nessa altura, ainda existiam cerca de 435 refugiados afegãos por realocar no campo. Na sua maioria, famílias que rejeitavam propostas de países de destino, com esperança de haver novas vagas para os ditos países “favoritos” ou de eleição (nomeadamente, Estados Unidos da América, Canadá e Reino Unido). Esta situação gerou um clima de tensão sobre a população no campo, com ameaças de “manifestações”. Este foi um período de várias mudanças no campo e vários dos contingentes militares retiraram conforme previsto inicialmente, nomeadamente, da retração da equipa de medicina dentária holandesa e da equipa de psicólogos búlgara, redução do contingente MEDEVAC britânico e até mesmo a ONG dos Samaritan´s Purse retirou-se do campo a 19 novembro.

Este foi um período exigente, face a diminuição das valências de apoio sanitário no campo, o DASan PRT passou a ser responsável em exclusivo pela atividade clínica no PS. Neste período, houve a agravante que o 3º DASan era composto apenas por elementos médicos do sexo masculino, com dificuldade de avaliar pacientes do sexo feminino, devido ao contexto cultural. Raramente as mulheres aceitavam ser observadas por elementos do sexo masculino. Mesmo quando se tratava de médicas do sexo feminino, apesar de permitirem serem observadas, faziam-se habitualmente acompanhar por familiar (mãe, irmã, sogra ou mesmo o marido, irmão). Sendo que, em dezembro, o PS volta a ser reforçado por uma equipa médica militar grega.

O DASan PRT foi retraído a 21 de janeiro de 2023, 5 meses após a sua projeção, tendo sido substituído por uma equipa médica militar croata que incluía médico especialista em Pediatria. Aquando da sua saída, ainda restavam cerca de 90 refugiados afegãos por realocar no campo, tendo este encerrado 1 mês depois, em fevereiro de 2022.

Em jeito de conclusão, esta não foi uma FND regular de apoio às operações militares. Tratava-se de missão de cariz humanitário, com forte componente pediátrica e obstétrica/ginecológica, e para a qual os médicos militares não estão geralmente familiarizados.

Foi uma experiência enriquecedora, trabalhar lado-a-lado com profissionais de diferentes nacionalidades, civis e militares com um objectivo comum, de prestar apoio sanitário em prol do bem-estar de uma população refugiada fugida da guerra. No entanto, o fato de haver diferentes regras de empenhamento entre contingentes militares de diferentes nacionalidades criou constrangimentos.

O maior desafio foi, sem dúvida, a realização de consultas médicas num ambiente com barreiras culturais, religiosas, linguísticas, agravado por um contexto de pandemia e de recursos limitados. No entanto, este é o tipo de experiência que torna as nossas vidas, como militares, extraordinárias. Fica a sensação de dever e missão cumpridos, resta-nos partilhar a experiência e conhecimentos adquiridos para que sirva de lições aprendidas para eventuais futuros empenhamentos das Forças Armadas Portuguesas.

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2023-11-04
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Tenente-coronel

Raquel Santos

Comandante do Agrupamento Sanitário do Exército, desde 2022. Competência em Medicina Militar e em Medicina de Emergência pela Ordem dos Médicos. Diretora do Bloco Operatório e Chefe de Serviço de Anestesiologia do HFAR-PP, desde 2020.

REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia