Uma palavra inicial para agradecer o convite do Professor Doutor António Ventura para apresentar o seu Livro “O Morgado de Mateus e o Exército Português em 1801”. Esta obra volta a mostrar-nos o rigor histórico e documental a que o Autor nos habituou, nas centenas de trabalhos publicados, assim como na forma como aborda o estudo e a apresentação dos factos, seja nos seus livros, como foi referido, mas também nas Conferências e Seminários que organiza, dirige ou participa.
Sobre o Autor, a sua apresentação está facilitada perante esta audiência, pela relação estreita que sempre manteve com a Comissão de História Militar, com a Direção de História e Cultura Militar, com o Arquivo Histórico Militar, com a Biblioteca do Exército, mas também com a Revista Militar. Permitam-me que, como Presidente da Direção da Revista Militar, saliente a sua colaboração na organização, mas igualmente a sua participação nos Encontros Anuais da Revista Militar, realizados em cooperação com a Universidade de Lisboa.
O Professor Doutor António Ventura é Licenciado em História, Mestre em História Contemporânea, Título de Agregado em História, Professor Jubilado do Departamento de História da Faculdade de Lisboa, Professor Emérito da Universidade de Lisboa e foi Diretor do Departamento de História do Centro de História da Universidade de Lisboa e da Área de História da Faculdade de Letras. É Académico de Número da Academia Portuguesa de História e Sócio Efetivo da Academia de Marinha.
Ler este Livro, quer para conhecer a personalidade do Morgado de Mateus quer para fazer a sua apresentação pública, é uma viagem literária aliciante, que nos prende a atenção, mas simultaneamente nos causa angústia, quando somos confrontados com a realidade do Exército, avaliado pelos olhos e escritos do Morgado, no período que antecede a Guerra das Laranjas, os acontecimentos militares com ela relacionados e a proposta de Reforma do Exército, que a ela se seguiu.
As referências ao estado do Exército que são feitas, ajudam a entender os esforços diplomáticos que o País desenvolveu pera evitar a guerra e a missão “in extremis” que atribuiu ao Morgado de Mateus, pois a derrota era antecipada, como veio a acontecer, com as consequências históricas para Portugal, que perduram até hoje e que se materializam num espaço fronteiriço não definido.
Sem querer retirar ou diminuir o interesse pela leitura atenta deste Livro, que sinceramente recomendo aos militares, nem entrar em detalhes do seu conteúdo, permito-me referir que a Obra tem duas Partes Distintas, igualmente ricas de factos históricos e de considerações que, de forma instintiva, nos leva a estabelecer reflexões sobre a atualidade que vivemos e a reencontrar problemas e desafios, cuja prevalência parece ter esquecido a História.
Na Primeira Parte, somos conduzidos por forma a reconhecer a personalidade do Morgado de Mateus, D. José Maria do Carmo de Sousa Botelho Mourão, as ações antes e depois da Guerra das Laranjas, a reflexão sobre a derrota e a ação diplomática conducente aos Tratados de Badajoz.
Na Segunda Parte, é nos disponibilizado um conjunto de Cartas do Morgado e demais documentação sobre o estado geral do Exército e dos seus diversos Órgãos, quer sobre o Estado-Maior quer acerca das Armas e Serviços, também sobre a personalidade dos seus Quadros aos diversos níveis hierárquicos e, ainda, um Novo Plano de Reforma para o Exército. Um conjunto final de cerca de vinte páginas de Notas, associadas a uma extensa Bibliografia, ajudam a perceber o rigor histórico da investigação conduzida e dos relatos e afirmações que nos são trazidos pela presente Obra.
Há, contudo, uma referência que gostaria de salientar, desde já, que é talvez menos conhecida e que se prende com um projeto de homenagem a Camões, com a edição de “Os Lusíadas”, conhecida como edição do Morgado de Mateus, envolvendo a componente iconográfica dirigida pelo pintor F. Gérard e com a colaboração de famosos gravadores em cobre, descritos na obra e referenciados nas Notas. O seu patrocínio e orientação da edição de “Os Lusíadas”, para além da sua ação como diplomata e profundo conhecedor da realidade militar da altura, princípio do Século XIX, conferiu-lhe também, um lugar de relevo na nossa História e Cultura Portuguesa.
Na Segunda Parte do livro, considero de realçar o bloco de documentos, agrupados segundo a designação de “As Memórias sobre Assuntos Militares”, onde transparece de forma clara a relação do Morgado de Mateus com o Conde de Goltz, militar prussiano, que entrou ao serviço de Portugal, em 1797, com um contrato assinado em Berlim, em 1801, por seis anos, como Comandante Chefe do Exército e para propor as Reformas necessárias, tendo, no entanto, abandonado o País, em julho de 1802.
Essa relação foi muito além da função que desempenhou como Secretário do Conde de Goltz, pela avaliação crítica que fazia da sua correspondência pessoal e pelas suas apreciações sobre o que era apontado relativamente ao estado do Exército e sobre as propostas que eram apresentadas.
Dessas Memórias, agrupadas segundo um conjunto de Documentos, num total de cinco, é explanado um programa de Reformas para o Exército, agrupadas em Disposições Gerais, Estado do Exército e dos Meios de o Restaurar, o Recrutamento, Transportes e Bagagens do Exército e, por último, um capitulo designado por Etapas (o processo de desenvolvimento da Reforma). O programa de Reforma será completado com uma Reflexão crítica sobre os Hospitais, sobre o Arsenal Real do Exército e sobre o Estado do Exército (Leis Militares, Estado-Maior do Exército, Cavalaria, Artilharia e Engenharia).
O seu sentido crítico leva-o a expressar o que considera, e estou a citar, “uma ignomínia nacional, ter de se recorrer a um estrangeiro para resolver questões que são da responsabilidade nacional”. Com realismo, referia também que essas opções externas ao universo nacional eram perversas pois, “a experiência o comprova que é raro acertar bem, impossível para ele de reformar em tais circunstâncias o exército, e mais difícil de adquirir a confiança do soldado, de vencer a cabala dos nacionais e de fazer uma campanha brilhante com maus instrumentos que não conhece e em um terreno que lhe é novo”.
A sua frontalidade, honestidade, a análise crítica dos comportamentos humanos, aos vários escalões de chefia, analisando qualidades e defeitos, em particular a competência ou a falta dela e o seu impacto na eficiência e eficácia do Exército em geral, e em cada um dos seus departamentos em particular, criou-lhe o reconhecimento e um estatuto de competência e de autoridade em matéria militar, transformando o Morgado de Mateus num Servidor de extrema confiança, quer em particular para o Príncipe Regente quer para o Secretário de Estado da Guerra.
O conteúdo militar das Cartas do Morgado de Mateus já tinha merecido a atenção dos investigadores sobre a matéria, o que levou a que parte delas tivessem sido publicadas, em 1904, na Revista Militar, mas o Professor António Ventura, com a sua investigação histórica e a obra que nos apresenta, permite-nos hoje comparar os textos editados na altura com a realidade incontornável dos manuscritos originais produzidos pelo seu autor e arquivados na Casa de Mateus.
A acutilância dos comentários e os apontamentos de margem, quer relativamente à Instituição em análise quer a diversas personalidades, contemporâneas de uma memória histórica ainda recente, justificam a omissão de algumas referências tidas como mais controversas ou indesejáveis de serem abordadas e levaram à sua não inclusão nos textos publicados, como aliás o Professor António Ventura também refere.
Para terminar esta breve apresentação da obra que hoje nos é disponibilizada, gostaria de referir que considero o último texto do Livro – “o Novo Plano Para o Exército” – aquele que nos dá a Visão, mais completa e estruturada do Morgado de Mateus, para o desenvolvimento de uma Reforma Geral do Exército.
Indo para além da mesma, justifica a importância do processo legislativo, a inserção da Instituição na Sociedade Nacional, a estrutura de Comando e Conselho e os cuidados a ter com as Lideranças, a importância dos Recursos Humanos, avaliando também a dimensão do Contingente em paz e em guerra, as suas possibilidades de crescimento (a sua reflexão sobre as Ordenanças, os Auxiliares ou Milícias e o espírito de defesa que tinha de ser criado nas populações), os valores, a justiça e a cultura organizacional que deveria ser praticada por todos e os recursos necessários que o Príncipe não podia deixar de atribuir, para permitir que o Exército pudesse funcionar, quer em paz quer em guerra, com normalidade.
Sem a designar, apela para o interior do Exército e para o Príncipe, para a exigência da prática daquilo que hoje designamos por Condição Militar, quer no seio da Instituição Militar quer pelo seu indispensável reconhecimento, dignificação e justa compensação, por parte das Tutelas Políticas, pois é a Condição Militar que assegura a aceitação e a prática do sentido do Dever, do Patriotismo, do Comando, dos Valores, da subordinação ao Interesse Nacional e à Hierarquia, da Disciplina, da Responsabilidade e da Disponibilidade para atuar em situações de risco ou nos limites da segurança física individual.
Em termos atuais, o texto apresentado corporiza a definição da ação militar estratégica no domínio da estratégia militar terrestre, definindo condições de emprego de forças militares (cenários), chamando a atenção para as missões a desempenhar, a dimensão do Contingente, o Sistema de Forças e o Dispositivo, alertando também para o cuidado e necessidade dos recursos humanos e materiais, que corporizam essa construção estratégica estruturante.
Ontem como hoje, essa coerência da construção estratégica só será obtida se, na atualidade, tiver a sustentação financeira na Lei de Programação Militar, responsável pelo reequipamento e modernização das Forças Armadas, através da obtenção dos Sistemas de Armas indispensáveis ao cumprimento das missões atribuídas, também na Lei das Infraestruturas Militares para garantir a funcionalidade e a adequação das infraestruturas necessárias ao Dispositivo e condições de vida aos cidadãos recrutados ou mobilizados e, não menos importante, no Orçamento Ordinário, que deve assegurar, anualmente, os recursos financeiros inerentes aos efetivos humanos prontos, em instrução e a recrutar, assim como as atividades orgânicas do Treino, Operação e Manutenção dos Sistemas de Armas e Equipamentos existentes.
No texto é evidente a necessidade crítica, tal como hoje, dos recursos humanos, quer para a dimensão desejada, do Sistema de Forças, quer para a sua substituição, quer para a sua ampliação em situação de crise ou guerra. Igualmente a sua avaliação dos efeitos perniciosos da má Liderança, da Incompetência, do Laxismo, da Corrupção e da Indisciplina na capacidade e credibilidade de uma Instituição como o Exército.
É assim altura de agradecer e felicitar o Professor António Ventura pelo Livro que decidiu publicar, que nos permite conhecer uma figura marcante do pensamento militar, com uma visão estruturante para o Exército, numa altura em que era necessário recuperar a sua operacionalidade e dignidade. A sua postura institucional é igualmente marcante, pela sua frontalidade, coragem e lealdade, sem dúvida um bom exemplo de Liderança a seguir, que a História não apaga nem dispensa.
Este Livro é mais uma contribuição do Professor António Ventura para a História Militar, neste caso em particular do processo evolutivo do nosso Exército em mais um momento, de especial gravidade, na nossa História como país e para um melhor conhecimento da figura e desempenho do Morgado de Mateus, como pensador e conhecedor das questões militares, que merece ser lido, refrescando a oportunidade histórica do seu pensamento militar, com as realidades da atualidade.
Também ele nos recorda a importância de ter presente que nenhuma instituição resiste à erosão dos sentimentos de pertença e à continuada insatisfação dos seus recursos humanos, quer relativa às condições de funcionamento deficiente, às constantes carências de recursos, assim como à degradação do seu prestígio junto da Sociedade onde se insere.
Quem ignora a História corre o risco de repetir erros do passado, esquece os fundamentos da nossa identidade e individualidade nacional, perde as referências da construção da lusofonia e torna-se menos apto a responder às contingências do presente e aos potenciais desafios do futuro. E essa impreparação em termos militares, paga-se, normalmente, caro.
General José Luiz Pinto Ramalho
Presidente da Direção da Revista Militar
Nasceu em Sintra, em 21 de Abril de 1947, e entrou na Academia Militar em 6 de Outubro de 1964.
Em 17 de Dezembro de 2011, terminou o seu mandato de 3+2 anos como Chefe do Estado-Maior do Exército, passando à situação de Reserva.
Em 21 Abril de 2012 passou à situação de reforma.
Atualmente exerce as funções de Presidente da Direção da Revista Militar e de Presidente da Liga da Multissecular de Amizade Portugal-China.