Subjacente à milenária competição entre a “espada” e a “armadura”, entre a agressão e a protecção está obviamente a guerra, a evolução técnica e as estratégias militar, mediática e psicológica. Mas esta “luta” é nos nossos dias bem mais visível devido à evolução da conflitologia e à falta de autoridade a nível mundial, por mais esforços que se façam para que exista uma ordem internacional. Esta situação lembra-nos o que Rousseau escreveu em Carta a Mirabeau sobre a condução da política. Para ele era necessário “encontrar uma forma de governação que coloque a lei, acima do homem… se esta forma não existe é preciso passar a outro extremo…ao despotismo arbitrário… gostaria que o déspota pudesse ser Deus. Não vejo que haja uma solução intermédia… entre democracia e o hobbismo, porque o conflito dos homens e das leis que coloca os estados em guerra contínua é o pior de todos os estados políticos” 1. Esta dúvida de Rousseau relativa ao Estado, ao nível mundial deixa de ser dúvida para passar a ser uma utopia, porque não há um homem, ou um Deus, que imponha a sua autoridade na sociedade internacional.
A autoridade é a capacidade que existe, se pratica e detém para se ser obedecido, que, se sucedendo ao nível de grupos, organizações, empresas, Estados e até aceite por signatários de tratados (pacta sunt servanda), não existe a nível mundial. Essa autoridade não existe porque para corrigir as faltas e desvios à sua implementação não basta a justiça (ela própria não é aceite da mesma forma por todos), nem o clamor mundial, porque depende das interpretações que se façam em relação àquilo que sucede. De facto, não existe, a nível mundial, uma força que obrigue à obediência.
Não vamos trazer a este breve escrito as narrativas contraditórias de quem é ou são os culpados das guerras que observamos, porque são vários, não há inocentes e porque é frequente a pretensão de trazer à superfície, ao presente, o que sucedeu ao longo do tempo, milénios e séculos, e que deveria estar ausente, ser passado.
Quando um indivíduo, um grupo, uma etnia, uma religião, um Estado ou uma Nação é agredido, é lógica a legítima defesa porque ela é necessária. Aliás já Maquiavel escrevia no “Príncipe”, ainda que não apenas no caso da legítima defesa, que “a guerra é legítima quando é necessária”. Idêntica ideia tinha já o bispo do Porto, D. Pedro de Pitões, no século XII, para procurar convencer os cruzados que ali passaram, quando rumavam para a Terra Santa, a auxiliarem D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa, porque em tempos recentes as incursões muçulmanas tinham chegado a Leiria e ameaçado Coimbra. Note-se, porém, que quando não se trate de uma legítima defesa, que é compreensível e aceite até na Carta das Nações Unidas, mas de uma agressão, a guerra não é legítima. Com efeito, existem meios policiais, estratégias, e aparelhos militares para dirimir as discórdias e dissuadir as manifestações de violência, sem ter que recorrer ao uso da capacidade de coacção da “força” que existe nos aparelhos policiais e militares.
Com este breve texto apenas pretendemos sublinhar que, sendo a política apoiada na lei, quem decide o uso da violência organizada para obrigar à obediência dentro do Estado, a nível mundial não há “força” que garanta o exercício da autoridade. Mesmo que se estabeleça ou forje um direito internacional, se formulem normas de aplicação universal, não é possível conseguir a obediência.
Apesar de termos na actualidade conhecimento de vários cenários de guerra, vamos centrar a nossa atenção nos que decorrem entre a Rússia e a Ucrânia e entre Israel e o Hamas. Nestas duas guerras tornou-se muito evidente a “luta” entre a “espada” e a “armadura”. A “espada” que mata ou fere o inimigo e a “armadura” que o protege. Assim, na medida em que a capacidade de destruir aumenta a protecção procura que essa agressão seja ineficaz; quando a capacidade de protecção aumenta, a “espada” procura tornar a “armadura” vulnerável.
Nestas duas guerras a que através dos media temos vindo a assistir, esta “competição” sucede em muitos campos, mas é facilmente observável na “luta” entre os bombardeamentos com mísseis e drones e a protecção concedida por eficazes meios antiaéreos que a Ucrânia utiliza para contrariar a nítida superioridade aérea da Federação Russa. Esta protecção ganha ainda maior relevo no “escudo” que protege regiões de Israel dos mísseis que do Hamas e de outras origens são lançados sobre aquele país. Mas, mundialmente tem vindo cada vez a ter maior impacto a utilização de outro elemento – o refém.
A utilização de reféns para obter um determinado fim não é um fenómeno novo. Desde tempos imemoriais foram feitos reféns para depois se trocarem por prisioneiros ou com o fim de obter outras vantagens. Lembrando a nossa História, no século XV, quando da malograda tentativa da conquista de Tânger, o Infante D. Fernando ficou como refém até que, conforme a promessa feita pelo Infante D. Henrique, Portugal entregasse Ceuta. Como essa promessa não foi cumprida, D. Fernando foi sacrificado, morreu em Fez. Ele é até um símbolo de todos os portugueses que ao longo dos séculos sofreram ou morreram devido a sonhos imperiais.
A utilização de reféns não é pois um fenómeno novo, mas tem vindo a ser utilizada com frequência nos actuais conflitos, agravando a resolução dos mesmos. Note-se que o fenómeno não aparece apenas na guerra, sendo frequentemente utilizado em situações criminosas com a finalidade de obter uma vantagem, numa panóplia que pode ir da extorsão de dinheiro à protecção da vida do agente que tomou o refém.
No conflito entre a Rússia e a Ucrânia e até com mais evidência na guerra entre o Hamas e Israel, o fenómeno refém ganhou a dimensão de através dele se pretender contribuir para aniquilar um país soberano. Na Ucrânia, quando a Rússia impede a população de sair para zonas mais seguras diminuindo assim a capacidade de reacção do agredido ou quando se força um deslocamento de populações para a Federação, o que igualmente o condiciona. Em Israel, quando o Hamas fez uma acção terrorista em território israelita num cenário de selvajaria, horror e de um extremismo dito “religioso”, com a tomada de dezenas de reféns. Neste caso tudo se torna mais grave porque, não dialogando Israel com uma organização terrorista, tem de haver a intervenção de outros actores mundiais; porque entre os reféns há pessoas com outras nacionalidades, além da israelita; porque Israel não aceita entregar os prisioneiros palestinianos que detém, para receber os reféns; porque o governo em Telavive acha que essa troca iria justificar a acção terrorista do Hamas de Sete de Outubro; por não se saber concretamente se os reféns estão em segurança, feridos ou mortos; porque esta guerra pode alastrar no Médio Oriente e até originar uma guerra mundial; porque se compara o número de mortos e feridos de cada lado, mas não se conhecem com exactidão esses números; porque se invoca a desproporcionalidade da resposta israelita ao acto terrorista de Sete de Outubro, não se sabendo bem o que é isso da proporcionalidade; porque os media difundem notícias e não informações; porque muitas notícias são manipuladas e se pratica largamente a desinformação; porque os familiares dos reféns e grande parte da população israelita exigem do Poder em Telavive a sua recuperação; porque o Hamas não é apenas um grupo terrorista, pois faz parte de uma organização que consegue obter dinheiro, apoios, armas, combatentes e construir estruturas civis e militares; porque o Hamas conseguiu preparar áreas protegidas para comando das acções, para plataformas de lançamento de mísseis, para o armazenamento de munições e para a vida, combate e defesa do seu “braço armado” sob instalações civis críticas e humanitárias; porque nenhum dos contendores aceita a existência do outro; e porque o Hamas utiliza os reféns israelitas e a população palestiniana da área de Gaza como escudo, como “armadura”.
A situação acima apresentada pode caricaturar-se da seguinte forma: o Hamas é a guarnição de um carro de combate que com as armas de bordo quer destruir o seu inimigo – Israel; a protecção de que dispõe não lhe é conferida por chapas de aço mas por pessoas (homens, mulheres e crianças) tomadas como reféns ou da população palestiniana da área de Gaza, que envolvem essa guarnição. Esta situação torna quase impossível a reacção de Israel sem causar baixas civis.
No quadro descrito parecem existir apenas quatro hipóteses de solução:
– Israel aceita ser destruído e cria-se um Estado Palestiniano que vai do rio Jordão ao mar e a população israelita começa um novo êxodo.
– O Hamas desiste de destruir o Estado de Israel, aceitando a integração da população palestiniana em Israel ou a criação local do Estado da Palestina.
– Israel responde à agressão, terrorismo e intolerância do Hamas, para o destruir, causando baixas na população palestiniana e sofrendo a crítica da condenação do mundo árabe e ocidental.
– As superpotências e o mundo árabe aliam-se para encontrar uma solução para o conflito.
A quarta hipótese apresentada, que é parecida com as situações em que se adia a resolução de um problema criando um grupo de trabalho, é talvez a que melhor se apresenta para superar a dificuldade de israelitas e palestinianos viverem naquele espaço geográfico. Depois de toda a intolerância e ódio que se vai prolongar por gerações, parece ser difícil conseguir uma solução, mas deve-se tentar encontrá-la.
Raymond Aron, em 1948, no quadro da Guerra Fria, escreveu “a paz é impossível mas a guerra é provisoriamente improvável”2.
Olhando para a guerra entre Israel e o Hamas e a conflitualidade existente a nível mundial, penso que:
– A paz entre aqueles dois beligerantes é altamente improvável e a continuação da guerra é possível.
– A paz no Médio Oriente é dificilmente possível, havendo, a curto e médio prazo, a probabilidade de uma guerra alargada, com vários actores internacionais.
– A nível mundial a paz é dificilmente possível, mas há uma probabilidade baixa do surgimento da guerra.
– A paz entre moderados e tolerantes, versus intransigentes e extremistas, é improvável e a guerra é possível.
– A paz entre democracias e autocracias é provisoriamente improvável, mas a guerra, a médio e longo prazo, é possível.
Penso, portanto, dever concluir que continuando a guerra a ser possível há-que procurar com determinação os caminhos que conduzam à paz. Dito isto por outras palavras, a paz deve envergar uma “armadura” que a proteja da “espada”, da guerra.
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1 Jean Jacques Chevallier, Le grand ouvre politique de Machiavel a nous jours, Paris: Colin, 1979, página 130.
2 Raymond Aron, Le grand schisme, Paris: Gallimard, 1948, página 26.
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1998-2001).
Ex-Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Revista Militar (2003-2011).
Sócio Efectivo da Revista Militar.