Nº 2662 - Novembro de 2023
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
As facções brasileiras e os seus elementos dinâmicos
Dr.ª
Francielle de Oliveira

Introdução

A expansão do número de facções brasileiras na última década, bem como de suas áreas de domínio e da diversidade de suas atividades, faz ressoar o alerta para o grave problema que representam, pois comprometem a segurança pública e desafiam a soberania do Estado brasileiro na gestão do próprio território.

Apesar disso, pouco se conhece de seus dispositivos dinâmicos, visto serem um fenômeno muito contemporâneo. Se prestigia, apenas, a noção comum de que seu surgimento está intrincado com o tráfico de entorpecentes e de armas na “economia ilegal” da América Latina.

Neste ínterim, cerca de trinta facções, espalhadas por todos os estados da federação, constituíram-se em células de poder, relativamente, consolidadas, divididas em blocos de aliança, embora estejam sujeitas a fusões e extinções repentinas, a depender da coesão interna e do tabuleiro de alianças e, também, a despeito da desproporcionalidade que há entre elas.

Logo, esse artigo cumpre apresentar um quadro analítico acerca da evolução do que se conforma como um sistema de facções no Brasil, a partir da dinâmica que estabelecem entre si, pois, se, por um lado, a sua formação, a princípio, foi gestada por fatores estruturais e conjunturais, de dentro e de fora do país, por outro lado, o ritmo com que se transformam e as formas com que passam a agir no território tem muito a ver com a configuração da disputa por poder.

Nesse sentido, essa análise busca deter sua pertinência na dimensão política (e última) do problema, considerando, por sua dinâmica territorialista e instável, o abalo que representa no ordenamento brasileiro e para sua paz social.

Para tanto, as proposições feitas se baseiam no mapeamento feito pela autora, entre 2016 e 2022, das principais facções que atuam em cada estado brasileiro e da evolução de suas redes de aliados e inimigos, através das fronteiras estaduais, em especial, no intervalo de 2012 a 2022. Para esse fim, se serviu de informações cruzadas entre notícias de jornais e, principalmente, de fontes não-oficiais (declarações e relatos de faccionados ou simpatizantes, veiculadas nas plataformas digitais, acerca de reveses em suas alianças).

Sua abordagem prospectiva, notadamente, em um campo com literatura escassa, se detém no desafio de estabelecer critérios de análise acerca da dinâmica que rege a evolução dessas facções. Por isso mesmo, não se conforma como um estudo de revisão bibliográfica, que buscaria apresentar o que já se tem produzido na área e, também, aborda de forma truncada os contextos dos estados brasileiros, sem que se detenha em nenhum especificamente; ao contrário, focaliza sempre aspectos ao nível estrutural e de âmbito nacional.

Finalmente, cumpre dizer que, além dessa introdução e das considerações finais, o artigo está dividido em dois capítulos. No primeiro – “Determinantes do caso brasileiro” – são explorados os fatores estruturais e de conjuntura decisivos para o caso brasileiro, com foco na inserção do Brasil no radical geopolítico latino-americano, marcado por seu papel central na rede global do tráfico de entorpecentes, nos aspectos de sua geografia, de sua formação política e na postura adotada pelas forças de Estado no manejo das lideranças no sistema prisional.

No segundo – Sistema de facções no Brasil – introduz o leitor ao escopo, propriamente dito, deste trabalho, em que são elencados os atributos próprios da dinâmica que rege a atuação das facções brasileiras no que se estabelece como um sistema de alianças. Para tanto, são apontados três elementos que, juntos, caracterizam esse esquema: a) a fragilidade do pacto de adesão, calcado, em grande medida, em relações personalistas, b) o sistema de alianças (em dois níveis) e c) o esquema de representação em bandeiras. Decisivos em todas as movimentações de cada grupo, eles marcam o compasso de evolução desse fenômeno.

 

1. Determinantes do caso brasileiro

Hoje, o Brasil representa um marco mundial no que se refere a células de poder (em formações estáveis) ligadas ao narcotráfico. Muito articuladas entre si, suas facções estão distribuídas em toda a sua extensão, com ritos e dinâmica próprias. A compreensão de como se chegou a esse quadro singular deve ter em conta múltiplos fatores.

A saber, o narcotráfico é a espinha dorsal do crime organizado em todo o mundo. Nos pontos onde sua rede de comércio atravessa, em cada etapa se formam grupos responsáveis por gerenciar as atividades, defendendo a si e aos seus interesses contra os agentes de Estado e grupos rivais.

Com base nisso, se identifica a singularidade do contexto latino-americano e, em especial, sul-americano, no que tange à eclosão de facções. As características que a sua formação geopolítica lhe reserva faz com que a região ocupe posição central no mercado global de entorpecentes. Na Colômbia, Bolívia, Peru e Paraguai é feito, de modo significativo, o cultivo e a extração das folhas de coca e de cannabis, bem como, em grande parte, a sintetização da cocaína, ao passo em que o Brasil é um imenso corredor de escoamento dos narcóticos para o restante do mundo, sobretudo, países africanos, onde, comumente, se faz escala até chegar ao mercado europeu e asiático, ou em rotas diretas até os países europeus.

Portanto, como parte dessa cadeia, o Brasil compartilha com seus vizinhos os desafios vinculados à produção e a exportação dessas substâncias ilegais. Todavia, em seu território, nos últimos vinte anos, a gênese de expansão e de interação de suas facções se deram de forma díspar em comparação com as forças irregulares presentes na região andina (notadamente, forças mais dissolutas e contaminadas com movimentos de guerrilha ainda presentes na região).

Esse contraste se explica, em primeiro lugar, pelo imperativo geográfico do Brasil. Possui um imenso território, do qual faz parte a maior parcela da bacia amazônica, faz fronteira com dez países e tem uma ampla franja costeira com o Atlântico. Seus pontos de contato são diversos. Tudo isto torna o seu espaço muito estratégico e disponível a atuação do crime organizado.

No relatório “Cartografias da Violência na Amazônia” (2023), produzido pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, é apontado o volume significativo de rotas internacionais do narcotráfico que passam pela Amazônia, transformando a porção brasileira em um polo concêntrico de forças irregulares vindas de toda a América do Sul, como ilustrado na figura 1.

Figura 1: Redes do narcotráfico na Amazônia legal

Fonte: Instituto Mãe Crioula (IMC), Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)

 

O Brasil também possui em vantagem dois outros fatores estruturais: a) uma economia de maior porte e um amplo mercado consumidor (enquanto os países produtores, detidos, em grande medida, na função de extrativismo, não têm ampla margem de crescimento e pouco usufruem da valorização subsequente dos preços dos entorpecentes) e, b) uma robustez institucional, em âmbito nacional, que dota o seu regime político de relativa estabilidade, sem que haja dissidências políticas armadas e a formação de guerrilhas em seu interior.

Esta ausência de confrontos diretos, que ameace o alto escalão administrativo, somada à desigualdade socioeconômica, parecem ter corroborado para que o banditismo, altercado em uma dimensão mais econômica do que política, prosperasse no Brasil através do seu imenso vazio geográfico e social, sem que tivesse contornos de guerrilha.

Por fim, há de se considerar alguns eventos circunstanciais, bem como a principal tática empregada pelos agentes de Estado em suas tentativas de administrar o problema nos primeiros estágios.

As facções mais antigas no Brasil são originárias do sistema carcerário. No Rio de Janeiro, se formaram as primeiras: o Comando Vermelho – CVRL – (1979) e o seu rival Terceiro Comando – TC – (1988). Depois, em São Paulo, surgiu o Primeiro Comando da Capital – PCC – (1993) e, no ano seguinte, aquela que completaria a tríade carioca, os Amigos dos Amigos – ADA.

À medida que as atividades desses grupos ganharam expressão, saindo do sistema penitenciário para as ruas, e dos assaltos e sequestros para o narcotráfico, construindo redes com narco-produtores, as autoridades estaduais adotaram a tática decisiva de afastar as lideranças do restante dos grupos, enviando-os para prisões em outros estados da federação, sobretudo, no Nordeste. Essa ação (que continua a ser muito utilizada pelos agentes de segurança pública) teve sérias implicações, pois corroborou para a disseminação do movimento de adesão a facções, novas ou aquelas já existentes, nas cadeias de outros estados.

Os líderes “exilados”, animados com a prospecção de novas rotas, bem como de ampliação do mercado consumidor, se encarregaram logo de construir novas pontes com aliados regionais, ao passo em que esses, também, assimilaram a perspectiva de lucro, bem como das vantagens de organizarem-se nas cadeias e nas ruas.

Nesse sentido, todos os grupos que surgiram depois se mobilizaram em função da presença dos grupos sudestinos em seus domínios, quer tenha sido pela perspectiva de aliarem-se a eles ou de afastá-los de seus territórios, especialmente, à medida que se sofisticava o narcotráfico.

A partir disso, o mapa político do Brasil passou a espelhar o chamado “tabuleiro do crime”, em que as facções, organizadas em alianças, dentro e fora de seus respectivos estados, buscaram construir uma identidade em torno de seus domínios.

Os estados brasileiros, então, repartidos em áreas de influência, ganharam nova conotação estratégica dentro de sua dinâmica, em vista do potencial que representa a posição geográfica de cada um para que se favoreça a infraestrutura de transporte e a prospecção de mercados consumidores.

Dessa maneira, fatores estruturais e de conjuntura, tanto domésticos, quanto a nível internacional, elevaram o problema do estado brasileiro a novo patamar. Todavia, como se busca demonstrar no capítulo a seguir, os elementos dinâmicos, próprios desse novo contexto, por si só, fomentam a expansão desse processo e a deterioração da segurança pública no país, já que enseja a multiplicação e o espalhamento das células, em formações instáveis, alianças frágeis e métodos violentos de defesa de seus domínios.

 

2. Sistema de facções no Brasil

Notadamente, o PCC e o CV são as facções primazes em todo o território nacional. Não à toa, seus nomes são os de maior repercussão na mídia e entre populares. Mas, também, há muitos outros núcleos com expressão relativa, registrados nos quadros de consórcio e rivalidade e que aspiram mais poder, não obstante, as assimetrias e peculiaridades entre eles no contexto de cada unidade federativa.

Fato é que a multiplicação e sofisticação dessas células está em compasso com o alastramento gradual desse fenômeno pelo território nacional. O primeiro tópico desse capítulo discorre acerca dessa evolução, estabelecendo um panorama das principais facções atuantes no país. Em seguida, é feita a abordagem dos elementos dinâmicos entre si (Inter unidades) e da composição de forças nos estratos estaduais. Por último, o capítulo se encerra com um quadro analítico de suas movimentações táticas pelo território nacional no biênio de 2021 a 2022.

 

2.1 Evolução

Durante os anos que precederam o biênio de 2012-2013, as facções brasileiras não existiam em grande número e aquelas que surgiam eram primárias em sua estrutura e modo de atuação. O que estava bem definido era a aliança entre as duas maiores facções (PCC-CV) e um movimento que se despontava de organização do crime no sul e nordeste do país.

As primeiras facções com alguma expressão fora do Rio de Janeiro e de São Paulo surgiram no sistema prisional do Sul, devido à proximidade geográfica e o intercâmbio entre lideranças desses estados. Os Mano (2000) e os Bala na Cara – BNC – (2002), no Rio Grande do Sul; e em 2003, em Santa Catarina, o Primeiro Grupo Catarinense – PGC. À exceção, também, surgiu, na Paraíba, a Okaida – OKD – (2001).

Em meados de 2006 e 2007, se registra a incursão das facções sudestinas no Nordeste, em vista do maior reconhecimento de sua importância estratégica enquanto rota de escoamento. Em reação, surgem grupos locais de expressão: nas cadeias de Salvador, o Comando da Paz – CP –, no Maranhão, o Primeiro Comando do Maranhão – PCM – e o Bonde dos 40 – B40 e ainda, segundo relatos de próprios membros, a facção amazonense “Família do Norte” – FDN –, quando seus líderes se encontraram com integrantes do CV em cadeias nordestinas.

Não obstante, 2012-2013 é um marco significativo do aprofundamento desse processo. Em primeiro lugar, ocorre, em geral, um aprimoramento da organização das facções, tomando como referência as orientações do PCC e, secundariamente, do CV impostas aos seus membros quanto às regras de conduta e a distribuição de funções. Com isso, a definição de estatutos contendo critérios de batismo e expulsão, cores e hinos, etc., se torna relevante na compreensão dos faccionados, sobretudo, dos líderes quanto aos planos de expansão de suas atividades.

Em segundo lugar, outras facções surgem, tanto no norte e nordeste, quanto no centro-oeste. No Acre (um estado considerado relevante por sua localização geoestratégica na fronteira) foi fundado o Bonde dos Treze – B13; e em Goiás, o Comboio do Cão – CDC. Note-se, ainda, em 2015 e 2016, as fundações, respectivamente, do Primeiro Comando do Panda – PCP – em Rondônia e dos Guardiões do Estado – GDE – no Ceará.

Isso tonificou as alianças nos domínios locais e na interface interestadual, como, também, em alguns estados, completou o arco de polarização entre grupos rivais, fundamental para que se estruturasse um sistema em âmbito nacional.

Na Bahia, por exemplo, foi fundado, em 2013, o Bonde do Maluco – BDM –, que rivalizaria com o CP e viria a se tornar a principal facção no estado. Já no Rio Grande do Norte, no mesmo ano, surge o Sindicato do Crime – SDC – para fazer frente à penetração do PCC.

Não sem razão, é a partir desse período que a questão das facções passa a ser vista como um problema nacional e, cada vez mais, de intrincada associação entre o sistema penitenciário e as repartições territoriais nas ruas, inclusive, no microcosmo dos bairros.

Mas foi após duas quebras de aliança entre as principais facções, nos anos seguintes, que o tabuleiro do crime, de fato, se movimentou e encadeou reajustes de alianças em todos os níveis – municipal, estadual e interestadual.

O rompimento da aliança entre o PCC e o CV, em 2016, fez com que as rotas se tornassem mais disputadas e a maioria das facções se viram obrigadas a escolher um lado.

O CV costurou uma aliança com a FDN, que estava em franca expansão no norte do país, bem como com o Bonde dos 40, a Okaida, o SDC, o CP, o PGC, entre outras menores. A estabilidade desse consórcio fez com que o Comando dispensasse uma participação mais direta nas disputas, ao passo em que, através dessas associações, exerceu domínio sobre a chamada “rota do Solimões”, que atravessa o Brasil do norte ao nordeste.

O PCC, por seu turno, deteve o controle da “rota caipira” que transpassa a fronteira do Paraguai pelo Mato Grosso do Sul e chega às regiões centro-oeste, sudeste e sul. Para tanto, se aliou à facção acreana B13. Destaca-se, ainda, no período, sua relação amistosa com os Antibala – no RS – e com o BDM – na Bahia.

Porém, em sua expansão resvalam as ações monopolizadoras e a postura cautelosa em relação às alianças, o que se reflete no menor número delas. Também, se nota o foco na internacionalização de suas atividades na tentativa de aliciar para si o controle das etapas de produção dos entorpecentes.

Em suma, essa ruptura marca a segmentação dos narcotraficantes em dois blocos rivais e a articulação entre as forças microrregionais e interestaduais, o que fez com que a violência se alastrasse em diversos focos insidiosos no país.

Em 2018, um novo choque. Após a debandada de um dos líderes do FDN e seus seguidores para o CV, foi desfeita a aliança entre as duas organizações, o que reconfigurou o tabuleiro do crime no norte e nordeste. À época, o domínio que a aliança detinha sobre a rota do Solimões foi pulverizado entre os dois grupos, acrescido do PCC, que pôde ter mais espaço para disputar acessos na rota e se fixar melhor no Norte.

O rompimento se mostrou devastador para o grupo amazonense. De imediato, seu papel foi drasticamente reduzido na cadeia do tráfico, à medida que muitos dos antigos aliados no Nordeste deram preferência ao CV.

Para o Comando e o PCC, todavia, significou a busca de uma presença mais direta e violenta nos territórios nortistas e nordestinos, embora isso tenha sido, a princípio, mais difícil para a facção paulista.

Em alguns estados, as duas facções continuaram a apoiar grupos regionais, como se esses lutassem por procuração; em outros, constituíram-se em células próprias, muitas vezes, em posição central, disputando com as facções locais ou formando aliança com uma delas. E em outros, ainda, obtiveram superioridade ao ponto de exterminar todas os seus rivais significativos, como é o caso do PCC em Tocantins, no Mato Grosso do Sul e, até pouco tempo, no Paraná; e, por sua vez, do CV no Mato Grosso.

Nos anos seguintes, esse quadro progrediu com a eclosão de novas células – menores – incorporadas aos dois lados e detidas, em grande parte, na disputa pelo domínio de bairros, com constantes reveses de suas posições.

Além disso, o intercâmbio entre as facções de diferentes estados, nas redes em formação, aumentou a porosidade das fronteiras e a integração da dinâmica a nível nacional. O BDM, o GDE e o SDC, por exemplo, passaram a atuar em outros estados, sobretudo, nos contíguos. Em caso mais nítido, as facções maranhenses fizeram do Piauí uma extensão das suas disputas e, hoje, o quadro de forças é o mesmo em ambas as unidades federativas.

Também, cumpre destacar que há iniciativas de criminosos locais de preservarem sua autonomia em relação às facções já consolidadas e de se manter neutros no tabuleiro do crime. Mas, na prática, muitos dos “neutros” acabam consumidos pelas disputas de pontos de venda e, fatalmente, por territórios, estabelecendo-se como uma terceira força, que ora luta sozinha, ora luta com um dos outros dois lados. Isso acontece, por exemplo, no Ceará, na Paraíba e em Alagoas.

No próximo tópico, serão apontados os elementos que dão partida à dinâmica entre essas organizações e que mobilizam, em grande parte, a transformação desse quadro para a expansão do sistema formado.

 

2.2 Elementos dinâmicos inter-unidades

Uma análise que busca decodificar o mecanismo de interação entre as facções brasileiras se depara com a diversidade (idiossincrática) de composição das alianças nos contextos regionais.

Compreender esse e outros problemas dinâmicos é salutar para que se explique a expansão do sistema de facções e do aumento da violência. Para tanto, é preciso considerar, em primeiro lugar, os seguintes aspectos:

a. A fragilidade do pacto de adesão: As facções representam unidades muito instáveis, forjadas sob pactos personalistas, em contextos de disputa interna e, portanto, de muita desconfiança entre seus membros. Nesse sentido, a fidelidade do grupo ao pacto depende, em grande medida, da confiança que depositam nos líderes e, em paralelo, da persuasão dos signos de identidade (criados para que se uniformize o comportamento interno e perante seus rivais). Nomes, elementos iconográficos, hinos e, até mesmo, os estatutos caracterizam a união em bases mais duradouras por meio do estigma de irmandade e de compromisso ao qual se sentem atrelados.

b. O sistema de alianças: a multiplicação das facções enseja o entrelaçamento, cada vez mais complexo, de acordos entre as forças situadas nos diversos estratos. Essas relações se estabelecem entre os grupos hegemônicos, aqueles de expressão estadual e outros de menor monta. Por conseguinte, as facções não hegemônicas, estando expostas à diferença entre as pressões locais e os compromissos firmados com os grupos superiores, têm de observar dois parâmetros na tomada de decisões, do qual se espera coincida a dinâmica externa, travada entre as organizações mais influentes, e aquela que se estabelece em sua localidade. Nesse sentido, se pode dizer acerca de um jogo em dois níveis, que se difere nos interesses e na perspectiva de seus participantes.

c. As bandeiras: se referem aos signos de identificação com que os faccionados se reconhecem dentro do sistema de alianças, em oposição a seus rivais. Consubstanciam-se nas expressões “tudo dois” e “tudo três”, que indicam, respectivamente, a adesão ao CV e ao PCC. Foi primeiro utilizado pelos integrantes do Comando, como referência ao número de siglas que compunham o nome do grupo, em demonstrações de apoio e de altivez. Logo, os seus rivais – do TCP – passaram a se identificar por meio do “tudo três”, seguindo a mesma lógica. O PCC, a seu turno, também passou a ser representado por apoiadores com a bandeira “tudo três”, sobretudo, após o rompimento da aliança com o CV. Por mimetismo, as demais facções no país aderiram aos códigos numéricos e, particularmente, à representação das bandeiras. Assim, de início, independente do jogo externo, um grupo era tudo 2 (comumente, aqueles que tinham alguma afinidade com o CV) e outro tudo 3 (para os mais próximos do PCC). Conforme se aumentou a quantidade de células, outras bandeiras surgiram: “tudo sete”, “tudo quatro”, etc., cujos significados são restritos ao contexto das alianças locais e que representam, em alguma medida, o objetivo desses grupos de se desvincularem de qualquer noção de subserviência às facções “de fora”. Mas após o aumento de tensões que se deu com o rompimento da aliança CV – PCC, as bandeiras passaram a ser usadas com mais ênfase para indicar de qual entre as duas grandes facções se era aliado. Nesse sentido, cada vez mais, o jogo externo passou a determinar a identidade dos grupos em âmbito regional.

Nota-se que os fatores internos e os fatores externos estão associados. Peter Thompson (2014), em análise aprofundada acerca da dinâmica de grupos armados, explica que a) fatores de formação, referentes à mobilização e coesa interna e b) fatores de operacionalização, referentes à tática e a estratégia empregadas na rede de alianças e de rivalidade, são determinantes do tempo de vida dessas células, que tendem à instabilidade, devido à ausência de institucionalidade e à assimetria de informação entre seus membros. Nesse sentido, o autor observa que nutrir motivação e interesses similares entre os faccionados é imprescindível à organização, ponto de vista que corrobora com os apontamentos feitos na alínea a).

Mas no caso brasileiro, os fatores externos não apenas se harmonizam com as fragilidades internas, como em muitos casos, se sobrepõem a essas, através do sistema de bandeiras.

Se vê que a representação das bandeiras já surge no contexto de rivalidade. Em vez de expressar valores internos das organizações, indica apenas a posição delas no tabuleiro do crime. Mais que isso: em um sistema de dois níveis, deve expressar o alinhamento do quadro de forças locais (nos vários substratos) ao quadro externo (composto pelos grupos mais importantes), de modo que os ajustes nos pactos externos sejam sucedidos, através do sistema de bandeiras, por revisões em cadeia, de acordo com as novas orientações.

Hoje, em qualquer lugar, os números “dois” e “três” expressam, antes de mais nada, a posição de cada grupo em relação ao jogo externo (travado entre PCC e CV). Na tabela 1, esse sistema fica ilustrado de forma clara a partir dos arranjos estaduais firmados entre as principais facções (agrupadas por bandeiras e por aquelas que se declaram neutras, mas que também desempenham papel significativo nas correlações regionais de forças).

 

Quadro 1 – As principais facções brasileiras, por Estado e agrupadas por bandeiras

Estados

Principais facções, agrupadas por bandeiras (2022)

(região Norte)

 

Acre

PCC X CV X Bonde dos Treze (B13)

Amapá

Família Terror Amapá (FTA) – TCP – PCC X Amigos para Sempre (APS) – CV

Amazonas

PCC – Cartel do Norte (CDN) – Revolucionários do Amazonas (RDA) X CV

Pará

Comando Classe A (CCA) – PCC X CV // Milícias

Rondônia

Primeiro Comando do Panda (PCP) – PCC x CV

Roraima

PCC X CV X FDN

Tocantins

PCC

(região Nordeste)

 

Alagoas

PCC X CV X Neutros

Bahia

Bonde do Maluco (BDM) – PCC X CP – CV X Ordem e Progresso (OP) X Katiara

Sergipe

PCC – BDM X CV

Pernambuco

Bonde da União – PCC X Trem Bala {Colmando Litoral Sul (CLS} – CV – Okaida – GDE)

Ceará

Guardiões do Estado (GDE) – TCP X PCC X CV X Neutros

Paraíba

Nova Okaida (Okaida RB) – CV X Estados Unidos (EUA) – PCC// Tropa dos Neutros (TDN)

Piauí

Bonde dos 40 (B40) X PCC X CV

Maranhão

B40 – ADA X PCC X CV // Neutros

Rio Grande do Norte

Sindicato do Crime (SDC) X PCC

(região Centro-oeste)

 

Goiás

Amigos do Estado (ADE) – PCC X CV

Mato Grosso

PCC X CV

Mato Grosso do Sul

PCC X CV

Distrito Federal

Comboio do Cão (CDC) – ADE – PCC X CV

(região Sudeste)

 

São Paulo

PCC

Rio de Janeiro

CV X Terceiro Comando Puro (TCP) – PCC // Milicias // Amigos dos Amigos (ADA)

Minas Gerais

PCC – TCP –BDM X CV

Espírito Santo

Primeiro Comando de Vitória (PCV) – CV X TCP – A Família Capixaba (AFC) – PCC

(região Sul)

 

Rio Grande do Sul

Bala na Cara (BNC) – – CV X Antibala (Os Manos, os Tauras, etc.) – – PCC

Paraná

PCC X Tudo 2 (Máfia Paranaense, PGC, PCP, CV)

Santa Catarina

Primeiro Grupo Catarinense (PGC) – CV x PCC

Fonte: elaborado pela autora (2022)

 

Esse é um quadro relativamente estável para o período, embora sujeito a mudanças repentinas, dada a facilidade com que esses pactos podem se romper. O intuito, todavia, é representar a forma como se organizam dentro desse sistema de bandeiras e a gravidade de seu desenvolvimento nos anos recentes.

Não obstante, para ressaltar os problemas de diretriz que surgem ocasionalmente entre os dois níveis, de modo subjacente às posições assumidas, tenha-se em conta que nem sempre as relações nos estratos locais se mantêm subalternas às imposições verticais. Desacordos referentes às decisões estratégicas e, em especial, à eleição dos aliados e inimigos acarretam certas configurações idiossincráticas e, muitas vezes, as dissidências e criação de novas células, tendo em vista que os ressentimentos e a solidariedade construída ao longo de anos entre grupos locais não se desfazem subitamente. Dessa forma, um revés decisivo, como foi o rompimento da aliança entre o CV e o FDN, obriga a revisão local das alianças e gera contradições entre os dois níveis.

A escolha recai primeiro sobre os líderes dos diversos estratos que, rapidamente, tem de decidir entre acolher ou rivalizar contra aqueles que se tornaram inimigos de sua bandeira. E o caminho a seguir nem sempre é claro, tendo em vista que passar a tratar, de repente, como inimigos, aliados com quem já mantinham parceria há alguns anos pode parecer injustificado e vice-versa. Ao restante dos faccionados, por sua vez, resta a decisão de apoiar seus líderes ou de traí-los, aniquilando-os da cúpula da organização ou estabelecendo uma célula dissidente.

A facilidade com que essas cisões (vulgo, “rachas”) podem ocorrer faz com que as facções possam deixar de existir repentinamente, à medida que seus membros se desmobilizam, como também, serem facilmente criadas. Por consequência, é sempre inconstante a quantidade de células e vigente sua tendência à multiplicação e à descentralização (balanceada, em contrapartida, pela capacidade de concentração que têm as grandes facções).

Desse modo, cada mudança nos principais acordos firmados pelo PCC e pelo CV, hoje em dia, repercute significativamente na composição de forças locais e, por conseguinte, na expansão desse sistema, tendo em vista que suas diretivas provocam revisões em todos os níveis nos quais os pactos se estabelecem; ao passo em que seus próprios planos podem ser comprometidos, se não são capazes de afiançar ao seu lado as principais lideranças locais. E como tem ocorrido, em certos casos, buscam mais autonomia estratégica, instalando-se diretamente no território. Nos esquemas ilustrados abaixo (na figura 1), se evidência essa e outras “soluções” encontradas nas composições regionais, como demonstrativo das idiossincrasias próprias dessas relações:

Figura 2: arranjos dinâmicos entre as facções brasileiras

Fonte: elaborado pela autora (2022)

 

Entre essas ilustrações, a mais simples é aquela em que uma única facção fornece e financia, em ações pontuais, várias gangues locais (representado no esquema 1). Esse é o caso em Sergipe, por exemplo, onde ainda não há células bem constituídas e disputas territoriais significativas. Contudo, esse quadro só se estabelece se há uma falta de interesse imediato da organização financiadora naquele território, quando, no mais, está satisfeita com os lucros auferidos do equilíbrio entre os grupos locais (enquanto são pequenos e desprezam outras fontes de fornecimento e de apoio).

No entanto, o engajamento pode se alterar à medida que despontam no quadro regional concorrentes que exerçam o mesmo papel ou se uma das facções locais se expande e busca autonomia. Nesse caso, pode passar a apoiar enfaticamente um dos grupos ou se estabelece ela mesma na região; também, se o território adquire nova importância estratégica nas rotas de escoamento ou no combate aos inimigos em territórios vizinhos.

Quadro similar, mas diferente o suficiente para ser relevante, é aquele em que a facção hegemônica ganha a supremacia no estado de forma direta. Nesse caso, o território não apenas tem a máxima relevância, como se torna um de seus redutos. É o que ocorre nos casos já citados do PCC no Tocantins, no Mato Grosso do Sul, em Roraima, no Acre e no próprio estado de São Paulo, por exemplo.

Mas em um sistema polarizado como esse, entre o CV e o PCC, foi mais comum, até meados da década de 2010, principalmente no Nordeste, que cada uma dessas tenha se aliado, respectivamente, a duas facções de porte mediano que disputavam entre si no âmbito regional (esquema 2). Em torno dessas últimas, por sua vez, estiveram atrelados, de forma esgarçada, grupos menores, filiados por meio do sistema de bandeiras. Porém, há registros, como se vê na figura 3, de inversões temporárias ou duradouras dentro dessa formação.

Não obstante, na maioria dos estados, nos anos recentes, o quadro de forças passou de bipartite para tripartite (ou quadripartite), à medida que alguns grupos têm estabelecido um marco de neutralidade nesses conflitos (esquema 7) e, ainda, com a já referida tendência do PCC e do CV de abandonar certas alianças e passar a competir contra os demais em certas regiões (esquema 6).

Outra peculiaridade ilustrada no sétimo esquema é a bifurcação de uma mesma célula em dois braços (A¹ e A2). Essas divisões anômalas resultam da divergência entre líderes, dentro da organização, que desfrutam de certa autonomia em domínios territoriais próprios, quanto a quem são seus inimigos e aliados. Desse modo, se alude, por vezes, ao fato de que parte de uma facção em um estado é “tudo 2” ou “tudo 3”, enquanto outra é neutra e negocia com determinado rival no âmbito geral de sua bandeira (vê-se que assumir uma posição de neutralidade significa, de forma corrente, manter negócios com aqueles que seus aliados tratam como inimigos).

Esse exemplo ressalta que mesmo unidos, de modo geral, sob uma bandeira, toda facção é formada de uma malha de micro relações que dão diferentes matizes nas instâncias decisórias. Algumas unidades conseguem estabelecer uma ordem de comando mais direta e verticalizada, enquanto outras se mantêm mais dissolutas e horizontalizadas, dando margem à prevalência de interesses locais e ao personalismo nas relações, embora isso, gradualmente, passe a ser minimizado pela maior racionalidade na tomada de decisões, à medida que as facções aprimoram sua organização interna e a universalidade nas diretrizes transmitidas ao longo das redes de alianças.

Já nos esquemas 4 e 5 estão representadas as formas de associação indireta, muito comuns em diversos estados, entre alguma das grandes facções e as organizações locais. Como está ilustrado na primeira dessas imagens, uma segunda facção (de expressão nacional) (Z), que tem consórcio direto com a primeira (X) e o grupo local (A), estabelece o elo. Para os criminosos locais, isso implica a ausência de obrigações em relação às diretivas da primeira, embora sejam simpatizantes. Assim, os negócios, de fato, são travados com o seu parceiro imediato, apesar de haver contribuições em rede vindas da outra ponta.

No cenário atual, tanto o TCP quanto o ADA são as principais organizações capazes de atuar como interlocutores do apoio do PCC ou do CV em certas regiões. Comumente, são recebidos com menos desconfiança e resistência, fornecendo assistência logística e financeira, de forma discreta, sem que estejam tão imiscuídos nos confrontos armados. Todavia, à medida que se exige deles mais engajamento bélico, seus papéis podem mudar.

Outros possíveis candidatos a esses postos intermediários têm surgido, à medida que se tornam influentes na dinâmica de estados vizinhos, a exemplo do BDM, do SDC e do GDE, embora, também, se saiba de incursões suas nas regiões centro-oeste e sudeste junto aos seus aliados cariocas ou paulistas.

O esquema 5 apresenta uma outra variação desse processo, no qual as posições estão um pouco diferenciadas. Dessa vez, o intermediário (A) não é uma organização de alcance nacional, que se aproxima, em alguma medida, da facção hegemônica (X), mas sim um grupo local. Além disso, seu parceiro regional (C), não ele, é quem luta diretamente contra a célula Y, que já se estabeleceu diretamente no território.

Após muitas mudanças em seus arranjos, até março de 2022, no Amazonas, havia se formado um esquema similar. O PCC enquanto aliado do RDA, estava associado indiretamente ao CDN, ao passo em que esse, por sua vez, travava luta contra o CV.

Mas se o objetivo é sumarizar em um exemplo a combinação desses casos, é preciso destacar a experiência das facções maranhenses, pois sua formação oscilou em muitas dessas variações no decorrer dos anos. Entre 2006 e 2017, em seu quadro mais estável, as duas principais facções regionais – B40 e PCM – (a esse tempo já estabelecidas) eram aliadas, respectivamente, do CV e do PCC, que ainda não estavam diretamente na região. Todavia, durante o ano de 2017, houve uma interiorização das facções paulista e carioca e o rompimento das alianças, atrelado ao enfraquecimento do PCM, de modo que as quatro se tornaram mutuamente rivais.

Já no ano seguinte, se seguiu mais um revés nesse quadro: o B40 se tornou rival do CV (seu antigo aliado), ao passo em que se associou, indiretamente, com o PCC através de uma aliança com o ADA (que também havia penetrado na região). O Comando, por sua parte, contou com o apoio do PCM e de outros grupos de menor expressão.

Mas a parceria entre o B40 e o PCC foi breve. O ímpeto dos faccionados regionais de preservar sua autonomia, frente à tendência monopolizadora do PCC, fez com que o B40 passasse a enfrentar ao mesmo tempo o PCC e o CV, tendo mantido apenas o seu vínculo com o ADA.

Não obstante, outro ponto focal surgiu ao lado dessa divisão tripartite: grupos menores se reuniram para estabelecer um marco de neutralidade, negociando ou rivalizando com outras partes de modo inconsistente.

Diante disso, é notório que apesar da penetração de células externas, o B40 conseguiu se tornar a principal facção no Maranhão, a despeito do desafio de enfrentar todos os outros grupos. Isso está em consonância com a resiliência demonstrada por muitas facções nordestinas como o SDC (RN), o GDE (CE) e a OkaidaRB (PB) (ainda que mantenham alianças importantes com outros grupos de expressão, sobretudo, o CV).

Por fim, cumpre destacar a tendência em alguns estados, como Goiás, à pulverização das forças, com a formação de diversas gangues – ou seja, células menores, menos coesas e de atuação restrita aos bairros –, filiadas a uma das bandeiras. Em Pernambuco, por exemplo, essas gangues relacionam-se de modo a formar blocos autodeclarados como “tudo 2” ou “tudo 3”, abdicando de qualquer esforço de identidade mais consistente (como se vê no esquema 8).

Isso significa que se, por um lado, a descentralização aponta uma maior autonomia dessas gangues nos estratos inferiores, por outro lado, estão cada vez mais alinhadas, através do sistema de bandeiras, às diretrizes do PCC ou do CV, e buscam espelhar em sua realidade os compromissos e desafetos que lhes são repassados. Em troca, contam com vantagens na rede de comércio e algum apoio bélico na defesa de seus bairros; mas, em muitos casos, essa filiação é controversa, pois operam desconectados dos comandos centrais das grandes facções, tomando de empréstimo nomes e a bandeira desses grupos para angariar algum prestígio.

A frouxidão entre muitas dessas ligas é ainda mais decisiva no longo prazo. Submersos nos conflitos regionais e sujeitos à troca de lideranças e à fácil desmobilização dos seus membros, muitas das gangues acabam por desaparecer ou por se recompor em novas alianças (por vezes, vinculados a uma nova bandeira).

Robert J. Bunker (2010, p.10), ao avaliar recentes transformações na estrutura e no modus operandi dos carteis mexicanos, relata a dificuldade dos líderes de terem controle das ações de seus membros e de aplicar penas às infrações, à medida em que essas organizações se horizontalizam, em vários núcleos, com membros freelancers. Por conseguinte, uma consequência mais drástica da pulverização é, segundo o autor, a tendência à desobediência e aos raxas (firebreaks) em contextos de maior estresse.

Mas se visto num amplo espectro, essa pulverização (representada por células pouco coesas e instáveis) denota a sofisticação do sistema brasileiro e sua extensão pelo território nacional, ao invés da sua dissolução. Hoje, de uma forma ou de outra, a dinâmica de facções se apresenta nos diversos recantos do país, alcançando mesmo as cidades pequenas; haja vista que a violência organizada, uma vez exemplificada, tende a servir de incentivo à formação de outras células, que se adaptam às formas de atuação já conhecidas.

O cenário só deve se tornar diverso (dessa instabilidade) no caso improvável de que o PCC consiga aniquilar seus principais rivais e consolidar sua posição hegemônica por toda a rota do tráfico, o que quer dizer, por todo o território, de forma direta ou em parcerias regionais estáveis. Essa unanimidade não é prevista devido ao tamanho expressivo do CV e à diversidade dos quadros prefigurados nos contextos estaduais.

Ora, através do sistema de bandeiras, essa tendência à instabilidade dinâmica apenas é agravada, à medida que as alianças se impõem de fora para dentro, representando um constrangimento universal sobre todo o sistema.

A partir disso, se mantém e se fortalece o atrelamento entre os dois níveis. Logo, nos períodos em que há paz relativa no jogo externo, as disputas locais tendem a se tornar menos conflagradas e vice-versa. Mas esses períodos são curtos e destoantes nos vários estados, pois, as duas maiores facções continuam a se mover no tabuleiro com o objetivo de afiançar sua primazia e a perpetuar, por conseguinte, a dinâmica de conflitos em todos os substratos, interferindo como combustores da formação de novas células.

Logo, à vista disso, já se pode compreender o caráter das forças irregulares narcotraficantes que se estabelecem no solo brasileiro e as tendências de sua progressão. A seção subsequente se dedica, justamente, a destacar os principais movimentos que caracterizam os últimos dois anos e, assim, apontar os caminhos céleres com que se desenvolvem sobre o território nacional.

 

2.2.1 Anos recentes (2021-2022)

Sob o olhar atento de um analista, os desdobramentos dos últimos dois anos apontam algumas “viradas de chave” importantes. De 2021 até meados de 2022, se iniciou uma inversão significativa, já que o CV, naquele momento, avançou sobre as regiões centro-oeste e sul, ao passo em que o PCC buscou mais contato com o extremo norte do país, objetivo alcançado com relativo sucesso. Destaque-se Roraima, onde já se tornou unânime.

Segundo o relatório Cartografias da Violência na Amazônia (2023), embora ainda não se possa falar de uma organização hegemônica na Panamazônia [como um todo], pode-se dizer que

o grupo que mais chega perto desse patamar [atualmente] é o Primeiro Comando da Capital – PCC, que além do domínio territorial de áreas no interior do Brasil, possui presença significativa na Bolívia, na Guiana, na Guiana Francesa, no Suriname e na Venezuela (2023, p. 55).

Todavia, no segundo semestre de 2022, se vê uma potente guinada do CV nos dois eixos, deixando tanto o PCC quanto as forças regionais opositoras em posição temerária. É nesse contexto que o quadro mais recente tem seus pontos de tensão arranjados.

Para além da intensidade de conflitos entre as facções nas fronteiras – amazônica e litorânea –, inclusive após a extensão da linha de atividades do CV para os países vizinhos, há no mesmo período, nas regiões nordeste, centro-oeste e sul intenso fogo cruzado entre grupos associados às duas bandeiras.

Por um lado, se identifica no Sul, o progresso dos aliados CV-PGC do estado de Santa Catarina para o Paraná (onde prevalece o PCC, sob risco); já no norte e nordeste, se afirma a já citada tendência à tri partidarização dos conflitos entre os grupos hegemônicos, os regionais e aqueles que se declaram neutros. Nas notícias mais recentes, se sabe da ruptura da aliança (longeva) que o PCC manteve entre 2013 e 2022 com a facção acreana B13, tornando-se rivais, enquanto ambos, também, lutam contra o CV. O quadro se repete, por exemplo, no Ceará, no Maranhão e Piauí, e Alagoas.

Porém, nos estados em que parece vital para o PCC manter parcerias estratégicas, devido à dificuldade de penetração entre os criminosos regionais ou pela extensão e/ou valor estratégico do território, o grupo parece mais disposto a um papel auxiliar. No Amazonas, por exemplo, onde o CV capturou a maior parte dos domínios do extinto FDN, o PCC apoiou, estrategicamente, o reagrupamento de força remanescente do FDN (que levou à formação do RDA), dispostos a resistir ao avanço da facção carioca. Tanto esse novo grupo, quanto, secundariamente, o CDN, contam com o apoio do cartel paulista. Já na Bahia, a aliança com o BDM se tornou ainda mais vital, após o fortalecimento do CV no estado.

Mas o Comando também sofre dificuldades, afinal de contas, em estados importantes, como o já citado Amazonas, no Ceará, no Maranhão, etc., têm enfrentado sozinho outras facções.

Todavia, o ponto chave dessa reflexão está na avaliação de que a tri partidarização representa uma resistência regional, com um terceiro (e às vezes, até quarto) polo criado, mas que não deve se sobrepor no longo prazo à célere expansão das duas facções maiores e a pulverização a elas atrelada, através do sistema de bandeiras, mesmo com a expansão do escopo de atuação de células regionais médias.

 

Conclusão

As facções brasileiras são um fenômeno que se localiza tanto no sistema penitenciário, quanto nas ruas. Se deve, estruturalmente, ao papel que cumpre a América Latina na rede global do narcotráfico, enquanto produtora e exportadora em atacado, bem como, à desigualdade que caracteriza a formação socioeconômica da região.

Não obstante, há qualitativos referentes ao Brasil que acentuam o desenvolvimento de suas facções em células mais numerosas e sofisticadas. Como o texto buscou apontar, isso se deve, em grande parte, à extensão territorial do país e à porosidade de suas fronteiras, inclusive, por sua ampla faixa costeira; bem como pela vantagem comparativa que tem sua economia e como mercado consumidor, que gera alta prospecção para essas organizações. Quanto à estrutura de Estado, a sua representatividade institucional por todo o território, sem movimentos internos de contestação, coibiu a articulação de guerrilhas e fortaleceu o banditismo de viés financeiro.

Por fim, cumpre destacar a atitude governamental em ter espalhado as lideranças das primeiras facções – PCC e CV – para as cadeias de outros estados da federação, o que se refletiu na incorporação de novas células de faccionados.

Todavia, é perceptível que o desenvolvimento dessas células não se basta como um fenômeno da “economia ilegal”. O seu poder de coação, através da violência, em porções do território, exprime o caráter determinante de qualquer célula de poder e, por conseguinte, aloca a repercussão de suas ações, primeiramente, na esfera política.

Nesse quadro, é decisivo o poder em mãos das lideranças de manter os membros agregados e de dirigir as ações do grupo, sobretudo, no que tange às diretrizes de sua expansão e de suas alianças. As constantes alterações a que estão sujeitas suas relações culmina na instabilidade de seus domínios e em ondas de violência.

Todavia, a resiliência desse sistema criminoso (apesar da sua instabilidade inerente) sugere, no longo prazo, uma perspectiva pessimista (ainda que seja improvável que esses grupos se desenvolvam em guerrilhas que reclamam qualquer direito à governança), já que a disputa é o elemento primordial sobre o qual se movem suas relações personalistas, tanto no âmbito interno, de cada unidade, quanto no sistema de alianças, e que empurra os faccionados para a constante reconfiguração de suas posições. Nesse sentido, é também a disputa o que determina o territorialismo e a violência.

Por isso, não se pode esperar que no longo prazo a sofisticação dessas células, com a inserção de novas fontes de financiamento e sua maior organização interna, racionalizem seu processo ao ponto de que se estabeleça uma paz duradoura e a estagnação de suas relações. Mesmo a hegemonia do PCC não é capaz de levar a esses termos porque haverá sempre a disposição de rivais de se organizarem e disputarem fatias das redes de comércio ilegal, entre outras fontes.

Além do mais, como se buscou mostrar, o sistema de alianças se estrutura em dois níveis, o que faz com que as investidas das grandes facções repercutam grave nas microrregiões e de lá se abasteçam mais de seus membros, reforçando o padrão de estruturação e atuação sob a forma de facções.

Portanto, o caráter estrutural e endêmico torna este um problema grave e imediato para o Brasil. A busca de soluções que se segue, em todo caso, exige o reconhecimento apurado dos elementos dinâmicos próprios de células de poder territorialistas, com atenção às especificidades constituídas no conjunto brasileiro. Assim, se espera avaliar a sua linha de progresso para que se aperfeiçoem os meios de combate.

 

Referências Bibliográficas

BUNKER, Robert J. Strategic threat: Narcos and narcotics overview. Small Wars & Insurgencies, v.21, n.1, p.8 – 29, mar. /2010. Disponível em: < https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/09592311003589229>. Acesso em: 14 out. 2023.

FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Cartografias da violência na Amazônia. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, v.2, nov.2023. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2023.

THOMPSON, Peter G. Armed groups: the 21st century threat. Londres: Rowman & Littlefield, 2014.

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Dr.ª

Francielle de Oliveira

Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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by COM Armando Dias Correia