Correndo certos riscos vamos apresentar algumas tendências estratégicas que se notam ou prefiguram, e fazemo-lo porque “nunca foi bom que, para usar a expressão de Humboldt, os químicos tivessem medo de molhar as mãos” 1. Tem riscos, porque ao apresentarmos tendências há sempre um pouco de adivinhação e a “bola de cristal” não é fiável; porque se pode tomar a nuvem por Juno, pensar que as ilusões são certezas; porque pode ser apenas algo passageiro aquilo que pensamos ser uma tendência pesada; e também porque o deslumbramento com as tendências pode distrair-nos do presente, quando este é importante e é nele que elas se desenvolvem. Mas procurarmos descortinar as tendências tem a vantagem de, olhando os sintomas, tentarmos ver para além do presente; de, utilizando um método prospectivo, vislumbrarmos trilhos que poderão ser seguidos; e de despertarmos a nossa curiosidade para as implicações que as tendências poderão ter não só nas estratégias gerais, como nas estratégicas genética, estrutural e operacional. Com estas vantagens valerá a pena correr riscos.
Antes de partirmos para a apresentação das tendências estratégicas parece importante lembrar o quadro geopolítico em que nos encontramos. Depois de algumas centenas de anos, mas com aceleração em décadas do século XX, as fronteiras entre Estados e coligações, ainda que com algumas perturbações, foram-se consolidando a ponto de, numa visão optimista, pensarmos que descobríramos os caminhos para a paz. Mas esta visão kantiana tem vindo a ser desmentida nos conflitos que vemos acontecerem em todo o mundo. Regredindo no tempo, parece vermos renascer o debate das escolas alemã e francesa, de Haushofer e Ancel, sobre o traçado das fronteiras, ganhando peso a ideia de estas serem “isóbaras do poder” entre Estados e coligações, e perderem solidez, suscitarem dúvidas, gerarem tenções, passarem a estar em causa. Um outro elemento também do quadro geopolítico e o de o Poder mundial não estar dependente da posse do heartland, como dizia Mackinder, ou do domínio do mar, como pretendia Castex, ou ainda do espaço aéreo, como referia Douhet, mas estar cada vez mais do lado do brainland.
Como elemento prévio da apresentação de tendências, convém referir as realidades que nos parecem ser constantes e que, pela sua permanência e cruzamentos com elementos evolutivos, são factores de mudança do pensamento estratégico, do processo da adaptação da acção estratégica ao pensamento e da forma de adequação do posicionamento da política em relação à conflitologia e à utilização das formas de coacção.
A apetência para a fundamentação histórica resulta de a História ser um repositório de comportamentos de Poder e da evolução das sociedades, e de a Estratégia não ser passível de experimentação. O registo feito pela História contém elementos tão preciosos sobre a conflitologia e a guerra que não há nenhum tratado ou antologia da Estratégia que a não percorra, ou que nela não alicerce muitas das suas orientações. A História surge assim como o repositório de factos e o laboratório possível para a formulação das doutrinas estratégicas, apesar de não haver identidade de situações históricas, mas apenas semelhanças, o que impede a simples utilização do raciocínio analógico, ou o transporte de modelos no Tempo. Mas a necessidade da sua utilização resulta de a Estratégia se movimentar na área das ciências humanas e de a guerra não poder ser experimentada para verificarmos a validade das hipóteses que se conceberam. Logo, a necessidade que a Estratégia tem da História, o cuidado que deve ter na sua utilização e a obrigatoriedade de se pensarem as doutrinas para além dos conhecimentos registados no passado e que a História nos ensina.
O desejo da modernização deriva de a percepção das mutações do ambiente internacional, dos equilíbrios e dos desequilíbrios do Poder, das concepções e práticas políticas e do engenho humano terem tornado disponíveis (hoje de forma exponencial) novos conhecimentos, novas técnicas e novas armas. Porque no âmbito da Estratégia o que se quer preservar é a segurança, como bem essencial, e o que se quer neutralizar são vontades hostis, os diversos actores da cena política internacional procurarão utilizar em seu proveito as evoluções políticas e os progressos de pensamento e da tecnologia por forma a tentar manter ou ganhar a iniciativa em relação aos presumíveis adversários. Esta corrida à actualização dos conceitos e dos meios de agir ou reagir, de que hoje há uma melhor percepção, pela maior mobilidade do conhecimento, produz uma dinâmica de constante modernização na procura permanente de melhores eficiências e eficácia.
A utilização da força, em potência ou em acto, para alcançar determinados objectivos políticos carece de vontade política mas, porque a vontade política, particularmente fora das autocracias, necessita de consensos ou de suportes para se exprimir, é natural que se procure legitimar as acções estratégicas que se pretenda empreender. A legitimidade pode ser obtida apenas no interior do grupo político que quer agir, pode ser procurada na adesão de outros grupos políticos e pode ser procurada na obtenção de consensos internacionais.
A Reconquista Cristã na Península e as Cruzadas legitimam-se na Fé; o império napoleónico na “libertação das nações oprimidas”; a expansão da Alemanha nazi no Lebensraum e na raça ariana; o belicismo israelita na sobrevivência do estado judaico; a luta palestiniana no direito de existir; a resiliência ucraniana na legítima defesa e na afirmação da sua identidade. A tendência para a legitimidade é portanto a procura da razão grupal, nacional ou internacional, por forma a permitir o empenhamento de combatentes e não combatentes de uma unidade política ou coligação, e o apoio ou a simples neutralidade de outros poderes.
Sublinhadas que foram estas “quase constantes”, procuremos então apontar algumas das tendências que já se manifestam ou vislumbram.
O alargamento das fronteiras, sejam elas de segurança, dos interesses ou da atenção estratégica, é uma tendência que se tem vindo a afirmar e que resulta da ambição, das variações de poder, das razões étnicas ou religiosas, do fenómeno da globalização e dos avanços da tecnologia. Já foi assim quando das nossas Descobertas, ao estabelecermos fronteiras do Índico ao Novo Mundo, também função da mundialização que iniciámos e da tecnologia que aplicámos. Hoje, porém, a tendência adquiriu uma nova dimensão. De facto, pelas razões apontadas, as entidades políticas deixaram de estar fixadas na sua fronteira territorial clássica, porque os seus interesses, relações e tensões vão muito para além dela, excedendo até os espaços terrestre, marítimo e aéreo, indo além da Terra, e abrangem o conhecimento. Além disso, através da tecnologia consegue-se que as ideias e a Força sejam projectadas a grandes distâncias e com enorme rapidez. Estas circunstâncias fazem com que as preocupações, os interesses e a segurança vão muito para além da fronteira política.
A aspiração de segurança global resulta da maior consciência das destruições e horrores da guerra e da necessidade da paz e da tranquilidade para usufruto do bem-estar e para a progressão do desenvolvimento; da universalidade de certas ameaças que não estão hoje forçosamente concentradas nos vizinhos próximos, podendo os centros da droga, das máfias, do terrorismo, da acção cibernética estarem em qualquer parte do mundo; e resulta também da necessidade de cooperação de acções concertadas para fazer face a certas ameaças. Aliás, mesmo no que se refere a ameaças não estratégicas, como as catástrofes naturais, também se nota a necessidade de conhecimento e de combate concertado, como se verificou na “luta” contra a epidemia da “Covid”, como se nota na ténue tentativa de travar as alterações climáticas e como se observa na criação de sistemas de alerta para avisar do perigo de um tsunami.
A reformulação dos arranjos estratégicos é igualmente uma tendência que se tem vindo a afirmar. Se desde sempre sucederam arranjos consolidados através de alianças, a variedade de interesses que afectam os diversos actores da cena internacional, a universalidade de certas causas, a incerteza que caracteriza muitas situações e a instabilidade das premissas que levam a agir estrategicamente, originam arranjos ad hoc, dentro e até fora das alianças existentes. Exemplos disto são as forças de apoio à paz das Nações Unidas, nas quais os países se empenham de forma variada consoante os seus interesses e disponibilidades e as guerras que são dirigidas por um país, mas executadas por outros actores da cena internacional, países, forças mercenárias, ou organizações terroristas.
Estas três tendências – alargamento das fronteiras, segurança global e novos arranjos estratégicos – deveriam denunciar duas outras tendências: agir antes do tempo e actuar mais longe no espaço. Agir antes do tempo para evitar a guerra ou para a fazer em situação mais vantajosa, porque são evidentes os erros que se cometeram por não se ter agido em antecipação, dando origem a situações como a da invasão da Ucrânia pela Rússia e a da inacção de Israel face ao crescimento do Hamas. Isto é, quando se prevê que certos acontecimentos ou conflitos, mesmo que distantes, possam alastrar e perturbar a nossa segurança e defesa, deve procurar fazer-se a sua contenção através dos vectores diplomático, económico, psicológico e militar. Actuar mais longe no espaço, para além da área considerada “santuário”, que compreendia normalmente o território dentro das fronteiras e que era defendido a todo o custo, por forma a evitar a proximidade geográfica da ameaça. Estas duas tendências têm por finalidade evitar que se actue demasiadamente tarde e com maiores custos. Assim, as preocupações das entidades políticas com a sua segurança e com a paz devem levá-las a dedicar uma maior atenção estratégica às tensões e aos conflitos, mesmo que distantes, para, quando necessário, agirem com oportunidade.
A aproximação da política à acção militar é uma tendência que não tem a ver com a intimidade sempre necessária das direcções política e militar, quando da utilização das forças armadas, mas porque se exige hoje o acompanhamento actualizado das acções militares, estratégicas, tácticas e até individuais. Esta necessidade resulta da repercussão que certas atitudes e acções podem ter, a ponto de influenciarem toda a acção estratégica, como um acto despropositado de um militar (sevícias feitas a um prisioneiro); danos colaterais infligidos ou apresentados como tal e que produzem uma condenação generalizada contra quem os originou; a apresentação pública de prisioneiros; etc. Tal resulta do conhecimento quase imediato que os media têm de alguns acontecimentos, da sua transmissão instantânea e do peso que as opiniões públicas têm na acção política, logo na Estratégia. Por estas razões a política tem que estar permanentemente informada daquilo que está a acontecer militarmente no terreno, bem como das notícias que surjam sobre a acção militar, para que possa reagir atempadamente não só no campo militar como nas outras estratégias.
Uma maior ingerência nos assuntos “internos” de outras unidades políticas é também uma tendência que tem vindo a crescer. Tendo surgido a ideia de haver o direito de ingerência em determinadas situações, este está a transformar-se num quase dever moral, o que obriga os países, as organizações e a comunidade internacional a utilizarem nestas situações os vectores diplomático, económico e até militar. Este direito/dever atenta obviamente contra a soberania do Estado, mas é suportado pela ideia que há uma hierarquia de valores e que por vezes emergem situações atentatórias desses valores mais fortes do que a inviolabilidade da soberania estatal. O direito/dever de ingerência resulta de situações como a da violação dos Direitos Humanos de que o mais grave e infelizmente praticado é o genocídio, que contraria o direito à vida de grupos, etnias e comunidades, ou o fabrico e detecção de armas de destruição maciça, ou a luta que pretenda a neutralização de organizações terroristas, como se verificou na Síria ou em Israel, ou no ius in bello, como na Ucrânia e em Gaza. O perigo que existe nesta tendência é o de que, a coberto da defesa dos Direitos Humanos (nem sem-
pre as situações são claras), se esteja a intervir na defesa de outros interesses menos “humanitários”. Por vezes é muito difícil determinar quando deve ou não haver ingerência nos assuntos “internos” de um Estado, quando deve ser obrigatório ou aceitável que essa ingerência seja feita e quem a deverá fazer.
A multinacionalidade da acção estratégica sempre existiu, mas é também uma tendência em crescimento porque a mundialização facilita a concertação de políticas e razões entre diferentes Estados, o que aumenta a “legitimidade” da acção estratégica, seja ela diplomática, económica ou militar. Além disso, aumenta a eficácia dos vectores estratégicos não militares, o que permite que acções conjugadas tenham maior capacidade coactiva. Esta multinacionalidade no âmbito operacional influencia também a estratégia estrutural e genética: a estrutural, para facilitar a direcção estratégica e a coordenação; a genética, para racionalizar a procura dos meios e potenciar a complementaridade das aptidões de cada entidade política interveniente.
As hesitações do uso da coacção militar, função da permanência, oportunidade, instantaneidade da informação e desinformação que são o principal orientador da opinião pública. Porque a decisão do uso da força pertence à política, porque a decisão política não depende apenas da direcção política mas também da vontade das populações, se não houver um apoio sustentado a uma acção militar, a coacção não aparece ou tem que ser suspensa.
Ainda no âmbito da estratégia militar tem surgido frequentemente a tentação para se falar em baixas zero. Se a procura de não ter baixas sempre foi desejável e por vezes tal possa acontecer, como, de acordo com Fernão Lopes, sucedeu com a força portuguesa em Atoleiros, esta tendência não passa normalmente de uma utopia, porque a acção militar depende da missão e do objectivo. Há objectivos que são menos importantes do que a vida de um homem, o que levou Bismarck a dizer que os Balcãs não valem os ossos de um granadeiro da Pomerânia, mas, quando há empenhamento militar, é normal a exigência do sacrifício de vidas. O sonho, a utopia, esta tendência para baixas zero nasce das possibilidades tecnológicas actuais e do peso das opiniões públicas na política. O deslumbramento com os progressos tecnológicos está ligado aos avanços feitos no campo das informações, sendo hoje possível obter através de satélites localizações pontuais; da elevada precisão de certas armas; da utilização de aviões e veículos não tripulados; dos avanços feitos na defesa, desde os coletes de protecção individual aos sofisticados sistemas de defesa contra mísseis; da capacidade de visão nocturna, etc.
Por tudo isto, pela natural aspiração à tranquilidade e à paz, pela influência que as opiniões públicas têm nas decisões do Poder, pelo aumento da sensibilidade ao “preço de sangue” que se paga na guerra, pelo grande apetite pelos direitos e animosidade aos deveres, e a grande atenção que os media dedicam aos conflitos, à tragédia, ao mórbido, à dor, ao insólito – admitindo-se a intervenção militar, tenta-se ignorar os sacrifícios que ela obriga, exigindo-se “baixas zero” e estranhando-se quando tal não acontece. Como conclusão desta tendência, pode dizer-se que, quando um Estado tem pouco poder e o objectivo não é vital, ou deixa de fazer a guerra ou fá-la juntamente com outras potências, podendo apesar disso ter baixas; se o objectivo é vital, certamente haverá baixas. De qualquer modo, esta tendência aconselha uma maior utilização da estratégia indirecta.
A tendência do comprometimento das populações na guerra têm-se vindo a acentuar. O corpo de batalha isolado e a separação dos exércitos da população, pertence à História. Até ao século XX, a população estava em guerra através dos combatentes que a faziam, ou da inclusão das suas povoações nos objectivos e campo de batalha. Durante o século XX, a acção militar passou com mais evidência a procurar afectar o moral da população inimiga, introduzindo-a no campo de batalha. Hoje, porém, pela importância das opiniões públicas, pelas diferentes etnias frequentemente presentes nos conflitos; pela utilização que se faz das populações como apoio ao esforço de guerra; pelo crescimento da urbanização; pela falta de separação, que por vezes sucede entre combatentes e população; pela frequente utilização de mulheres e crianças como combatentes – o comprometimento das populações na guerra é cada vez maior, dificultando a acção dos exércitos regulares e a utilização do poder militar.
A tendência imperial de certas potências marca o momento actual e continuará certamente a revelar-se no futuro. Não é uma tendência moderna e vimo-la frequentes vezes ao olhar para a História. Mas é moderna a sua vocação universal, pois, se esta existia já no Império Britânico, apoiada na supremacia marítima, hoje adquiriu proporções económicas e militares nunca antes registadas.
Os EUA estão em todo o mundo, nos MacDonalds, na música, no traje, no cinema e militarmente pela simples presença ou intervenção efectiva, encontrando, apesar disso, dificuldades face ao moral e determinação que certos povos manifestam. Lembrando e comparando os Impérios Romano e Americano, vemos as semelhanças na capacidade de organização e numa pretensa superioridade em relação aos outros povos, na obtenção de plena cidadania através do serviço das “legiões”, na força dos exércitos, na resistência com que por vezes se deparam, nas “estradas do império”, no valor da língua, dos costumes e instituições que “exportam”. As diferenças estão no facto de o Império Americano ser mundial e a capacidade de movimentação estratégica das ideias e da força ser hoje feita nas “estradas da informação”, no alcance das armas, no transporte aéreo, na língua inglesa que, apesar da influência latina, ultrapassou o latim e as línguas latinas, no paradigma democrático que apregoa e está longe dos valores e instituições que Roma promoveu.
Esta tendência é também evidente nas acções estratégicas, nomeadamente a militar, que a Federação Russa tem vindo a desenvolver nos últimos anos, o que causa naturais apreensões junto da Europa, na NATO e, de um modo geral, nas democracias.
A China, com o desenvolvimento económico e científico registado nos últimos anos; com o aumento de produção e riqueza; com o desenvolvimento das suas forças armadas, nomeadamente na componente naval; com o potencial humano que possui; com o crescimento notável da sua economia; com a autocracia que pratica e ambiguidade e determinação que a caracteriza – diz-nos que o Império do Meio irá certamente aspirar a ser o Império do Mundo.
Por fim, a tendência que nos causa maior apreensão é a da imprevisibilidade de certas decisões políticas e estratégicas, pelo efeito de surpresa que causam, por virem ao “arrepio” das condutas e normas que anteriormente estavam estabelecidas. Esta tendência cria a disrupção da ordem internacional, ela mesmo já do anterior fragilizada, e tem como consequência o aumento de inusitadas situações de tensão, conflito e guerra com todas as consequências graves que daí advêm. Esta tendência deve fazer aumentar a nossa atenção e expectativa estratégica, levando-nos até a procurar prever aquilo que à primeira vista se nos afigura como imprevisível.
_____________________________________
* Neste artigo pretendo actualizar algo que já escrevi há uns anos no livro Da Estratégia, Lisboa: Tribuna da História, 2010.
1 Marc Bloch, Apologie pour l’Histoire ou Métier d’Historien, Paris: Armand Colin, 1941.
Ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1998-2001).
Ex-Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Revista Militar (2003-2011).
Sócio Efectivo da Revista Militar.