Nº 2663 - Dezembro de 2023
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Portugal e a Defesa Nacional: os equívocos e os erros do passado
Tenente-general
Joaquim Formeiro Monteiro

Em 20 de Maio de 1801, Portugal foi invadido pelos espanhóis, liderados por Manuel Godoy, valido da coroa de Espanha, que no espaço de duas semanas, e praticamente sem luta, nem oposição credível por parte das tropas portuguesas, conquistaram as principais praças-fortes do Alentejo, com excepção de Elvas.

Foi a denominada “guerra das laranjas”, que terminou com o tratado de Badajoz do mesmo ano, e do qual resultou a perda definitiva (?) da praça de Olivença, que se havia rendido, sem disparar um único tiro…

Na verdade, o desastre militar e a incompetência política que lhe esteve na génese reflectiu bem a falta de capacidade e a desmoralização das forças lusas, à época.

O Exército estava desorganizado, mal comandado, os quadros incompletos, os efectivos diminuídos, as fortalezas desmanteladas e defendidas escassamente em homens e armas, e estas estavam envelhecidas e em deficiente estado, na maioria dos casos, segundo testemunhos da época.

No final, após a assinatura e ractificação do tratado de Badajoz, por parte do príncipe regente D. João, Portugal teve de aceitar de forma humilhante as gravosas condições que lhe foram impostas para conseguir pôr termo às hostilidades, não se procurando identificar, depois, nem as causas, nem os responsáveis pelo desaire, não tendo sido, assim, os seus fautores nem acusados, nem punidos.

Enquanto isso, o poder político, face ao estado de abandono a que tinha votado as questões da força armada e da defesa do reino, limitou-se a reivindicar, embora de modo frouxo e pouco firme, os territórios perdidos, tentando escamotear e fazer esquecer as suas próprias responsabilidades no desastrado comportamento das tropas portuguesas e na amputação do território nacional, cuja integridade estava fixada desde 1297, pelo tratado de Alcanizes.

Seis anos mais tarde, em 30 de Novembro 1807, Portugal é de novo invadido, agora, por forças do Exército francês, ficando a sua independência mais uma vez comprometida, e apenas recuperada em 1812, com a imprescindível ajuda das forças inglesas, sob o comando de Arthur Wellesley.

Hoje, esses factos históricos que tanto nos desmereceram, deveriam obrigar a reflectir sobre aquilo que se passa, actualmente, em Portugal, no domínio da Defesa Nacional e das Forças Armadas (FA).

Porque, cerca de dois séculos depois, o grave e preocupante estado em que se encontram as FA portuguesas permite perceber uma certa similitude com um passado recente e traumático, em que a presente realidade parece tender assumir foros de uma indisfarçável semelhança, ressalvando, embora, os diferentes enquadramentos social e político em presença.

Senão, atentemos aos factos:

Em termos de efectivos, as FA portuguesas tinham ao serviço, no final do ano de 2023, 21080 militares, cerca de 32% abaixo dos efectivos autorizados por lei, com a particular e grave situação do Exército, com os seus efectivos com cerca de 50% de perdas, com especial destaque para o número de Praças, com valores da ordem dos três mil elementos, relevando-se o facto dos efectivos combinados das forças de segurança, PSP e GNR, na mesma data, deterem cerca de 53.500 elementos, mais do que duplicando a totalidade dos efectivos das FA …

Em relação aos meios, vêm-se progressivamente estreitando as verbas orçamentais destinadas à manutenção e operação dos sistemas de armas e dos equipamentos, muitos deles, já de si, envelhecidos e no caminho da obsolescência, limitando, de forma grave, as capacidades de combate, apoio de combate e de apoio logístico das FA, ao mesmo tempo que se descurou, de forma perigosa, a constituição de reservas de guerra e de munições.

Por outro lado, as infra-estruturas há muito tempo que obrigavam a consideráveis obras de requalificação e de restauro, e cuja não execução, em tempo oportuno e numa escala devida, se tem traduzido, com forte impacto, nas deficientes condições de vida corrente e de funcionamento das Unidades, Estabelecimentos e Órgãos, levando, não raras vezes, ao seu abandono e à sua subutilização.

Entretanto, o anunciado aumento dos orçamentos relativos à Lei de Programação Militar (LPM), recentemente aprovada, eivado que foi da habitual retórica mediática, continuou a ser, por via do seu limitado financiamento, manifestamente insuficiente para a aquisição dos meios e equipamentos indispensáveis à modernização das capacidades das FA.

Sobre o moral das Tropas, tem-se vindo a assistir a uma profunda desmotivação que grassa entre Oficiais, Sargentos e Praças ao serviço, que, embora, continuando a cumprir com denodo e rigor as missões atribuídas, têm vindo, de forma continuada, a ser alvo de discriminação política e social, como resultado do limitado reconhecimento da singularidade da sua missão e do reiterado não cumprimento, por parte do poder político, da especificidade do seu estatuto.

Semelhante realidade encontra-se, especialmente, espelhada nas graves deficiências da assistência na doença e no apoio social complementar, bem como na flagrante discriminação da escala remuneratória dos Militares, no domínio da administração pública, em particular quando comparados com outros corpos especiais, aos quais deveriam estar equiparados.

Foto: Miguel Machado

 

Contudo, o governo tenta mistificar a situação, quando anuncia medidas sobre a melhoria das renumerações, limitando–se, simplesmente, a acompanhar, obrigatoriamente, os aumentos salariais aprovados para a função pública, a par de propagados aumentos nos subsídios de condição militar, que se limitaram, tão somente, à reposição da igualdade em relação ao que já se verificava com os profissionais das Forças de Segurança.

É, deste modo, que se vai assistindo, por parte dos Militares, a um doloroso e paulatino abandono das suas carreiras e dos seus contratos de prestação de serviço, procurando, fora das fileiras, uma justa retribuição das suas competências e qualificações.

Ao mesmo tempo, vêm sendo anunciadas, com pompa e circunstância, salvíficas medidas com vista à resolução dos problemas de recrutamento, donde se destacam:

– miríficos programas de incentivos para a atracção e retenção de voluntários para o serviço militar, que simplesmente não têm funcionado, face à exiguidade do que é oferecido, bem como ao não integral cumprimento do quadro de incentivos proposto.

– Ambiciosos planos de acção, tendo em vista a profissionalização do serviço militar, até agora em regime de voluntariado e de contrato, e cuja trave mestra anunciada assenta na criação de um quadro permanente de Praças que, face à pressentida magreza salarial, bem como aos escassos apoios sociais conhecidos, a par de uma progressão de carreira sem condições de motivação suficientes, estará, certamente à partida, condenada ao insucesso.

– E, mais recentemente, quase em desespero de causa, assiste-se à determinação, por parte do MDN, de um inédito conjunto de alterações aos critérios de selecção para o ingresso no serviço militar, com tabelas gerais de aptidão pautadas por uma menor exigência física, médica e sensorial.

Deste modo, passou a admitir-se que candidatos, com menor capacidade para a prestação de serviço e passíveis de menor resiliência, pudessem ser incorporados, fragilizando, desta forma, a sua aptidão para o serviço, nomeadamente para as acções relativas ao combate, quando exigidas, e para as quais as Forças Armadas deveriam estar particularmente preparadas.

Assim, se poderá entender, de forma particularmente evidente, o rotundo falhanço das políticas do actual MDN, relativamente às Forças Armadas e aos Militares que nelas servem, aliás em linha com os seus antecessores, de que tem resultado uma progressiva desmotivação dos Quadros e Tropas, pela ausência da respectiva realização profissional, a par das deficientes condições sócio económicas a que estão sujeitos, realidade naturalmente reflectida no fracasso do processo de recrutamento para o serviço nas fileiras.

Depreende-se, assim, que as medidas anunciadas, com o alargado apoio mediático do costume, não lograram melhorar nem a organização, nem o funcionamento das Forças Armadas, não lhes conseguindo garantir, dessa forma, as melhores condições de empenhamento, indispensáveis ao cabal cumprimento do quadro de missões que lhes estão constitucionalmente consignadas, bem como daquelas que derivam dos compromissos internacionais a que o País se encontra obrigado.

 

Chegados aos dias de hoje, confrontamo-nos, então, perante o resultado acumulado da inacção e da ausência de políticas suficientes e credíveis, face à problemática da Defesa Nacional, por parte de sucessivos governos, que, tal como no passado, têm vindo a esbater e subalternizar a importância das questões relativas às Forças Armadas, como vector decisivo para o desígnio e a coesão nacionais.

Ao escamotear, sucessivamente, as limitações e os condicionamentos que são impostas às Forças Armadas na sua organização e funcionamento, os responsáveis políticos têm induzido o seu acelerado processo de desconstrução, bem espelhado no contínuo agravamento das capacidades do Sistema de Forças Nacional, e levando à sua progressiva descredibilização.

Poderá argumentar-se que hoje estaremos longe da situação que Portugal viveu há cerca de dois séculos atrás, quando a sua soberania e independência foram gravemente violadas pelas forças estrangeiras, em tempos diferentes, quando invadiram e ocuparam o País.

No entanto, hoje haverá outros inimigos que materializam um novo quadro de ameaças com que a Europa e Portugal, nela inserido, se confrontam, e para o qual o País poderá não estar devidamente preparado para poder participar no esforço colectivo que lhe será exigido, tendo em vista uma adequada e eficaz resposta, face às sérias limitações e insuficiências que se abatem sobre as suas FA, e aos sérios condicionalismos daí resultantes para o seu Sistema de Forças.

Deste modo, como resultado de um acto eleitoral que se aproxima, tornar-se-ia imperativo que a governação que daí resultar pudesse dispôr, finalmente, de uma renovada visão para uma política de Defesa Nacional e das Forças Armadas tão racional e esclarecida, como coerente e credível, tendo em consideração os desafios para os quais o País, no âmbito da Defesa e da Segurança, deveria estar preparado para enfrentar.

Sem este propósito, o processo de irrelevância e de descredibilização ao qual as FA vêm estando sujeitas não poderá ser revertido, concorrendo, de forma inequívoca, para a sua desagregação como instituição matriz da soberania e da independência nacional.

Seguramente, que apenas desta forma, se poderão evitar os equívocos e os erros do passado, que se traduziram, por norma, em situações de perda de soberania, de liberdade e de independência, que muito custaram ao País e aos portugueses, e que condicionaram, decisivamente, por largos anos, o seu desenvolvimento e o seu estatuto no concerto das nações.

Contudo, a História nem sempre tem de se repetir…


 

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2024-04-13
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by COM Armando Dias Correia