Nº 2663 - Dezembro de 2023
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Kaplan, Albuquerque e o império americano: uma visão neorealista do Oceano Índico
Mestre
Nuno Sanches de Baena Ennes

1. Kaplan e Monsoon*

Robert Kaplan, aliás, Robert David Kaplan, é um autor norte-americano, nascido em 1952, em Nova Iorque, professor convidado na Academia Naval dos Estados Unidos (EUA), senior fellow no Center for a New American Security, e membro do Conselho de Política de Defesa do Pentágono (Defense Policy Board) e do Painel Executivo da Marinha dos EUA (U. S. Navy’s Executive Panel).

Licenciou-se em 1973 (Universidade de Connecticut), e logo deixou os EUA para viajar pelos países da Europa de Leste e alguns países do Próximo Oriente. De regresso aos EUA em 1974, foi repórter do Rutland Daily Herald, em Vermont. Em 1975, voltou a sair dos EUA, para viajar pelos países Árabes e Mediterrânicos, tendo permanecido no estrangeiro cerca de 16 anos. Serviu um ano nas Forças de Defesa de Israel1 e viveu nove anos na Grécia e em Portugal2-3.

O seu ensaio The Coming Anarchy, publicado em Fevereiro de 1994, na The Atlantic4, sobre como o aumento demográfico, os conflitos étnicos, doenças, urbanização e o esgotamento dos recursos está a debilitar o tecido político mundial, foi vivamente debatido, e já foi considerado um dos textos fundamentais relativamente ao mundo pós-Guerra Fria, ao mesmo nível de The Clash of Civilizations, de Samuel Huntington, e de The End of History and the Last Man, de Francis Fukuyama. Vinte anos depois, Kaplan publicou a sequela Why So Much Anarchy? 5. Também foi largamente discutido o seu ensaio Was Democracy Just a Moment?, publicado em Dezembro de 1997, como tema de capa da The Atlantic 6, onde defendeu que a democracia em expansão em todo o mundo não conduziria necessariamente a mais estabilidade.

Figura 1 – Kaplan.

 

Para além da The Atlantic, durante mais de três décadas, o seu trabalho tem sido publicado no The Washington Post, The New York Times, The Financial Times e The Wall Street Journal, entre outros jornais e publicações.

É autor bestseller de vinte livros sobre questões internacionais e viagens, incluindo Adriatic (2022), In Europe’s Shadow (2016), Asia’s Cauldron (2014), The Revenge of Geography (2012), e Monsoon (2010)7, estes três últimos uma trilogia focada na Ásia, especialmente na importância estratégica do Oceano Índico8.

Monsoon: the Indian Ocean and the future of American power, é sobre a região do Oceano Índico e o futuro do fornecimento de energia e das rotas comerciais marítimas no século XXI. Kaplan defende aí que o Índico tem sido um centro de poder desde há muito tempo, e o desvio para o Atlântico pode ser visto como uma anomalia que será corrigida. A preservação pelos EUA do seu poder passa pela ligação dos seus objectivos com os povos do mundo em desenvolvimento e especificamente os dos países da «Ásia das Monções», incluindo Índia, Paquistão, China, Indonésia, Myanmar, Omã, Sri Lanka, Bangladesh, e Tanzânia. Kaplan mostra quão crucial esta área se tornou para o poder norte-americano e defende que é aqui que a política externa norte-americana deve concentrar-se se os EUA quiserem manter-se relevantes num mundo sempre em mudança.

 

2. Afonso de Albuquerque: Y quien mas hiziere passe a delante9

Afonso de Albuquerque nasceu em Vila Franca de Xira, na Quinta do Paraíso, em 145310, filho de Gonçalo de Albuquerque, 3.º Senhor de Vila Verde dos Francos, e de D. Leonor de Menezes, por ambos os lados sendo aparentado com algumas das melhores famílias do Reino11.

Foi educado na corte de D. Afonso V, onde cresceu e travou amizade com o Príncipe D. João, futuro Rei D. João II, e recebeu uma instrução cuidada, de que são exemplo a Matemática e o Latim Clássico. Adquiriu vasta experiência militar, servindo ao longo de mais de dez anos no Norte de África12 e nas guerras contra Castela, nas quais acompanhou o príncipe D. João, tendo participado na batalha de Toro (1476). Participou, ainda, na esquadra enviada, em 1480, em auxílio de Fernando II, Rei de Aragão, Sicília e Nápoles contra o avanço turco na península Itálica.

Mas é com D. Manuel I e apesar das reservas iniciais deste Rei quanto a Afonso de Albuquerque que este teria a sua primeira missão na Índia, para a qual foi enviado em 1503. Participou, então, em várias batalhas contra Calecute.

Estava de regresso ao Reino em 1504 e no início de 1506, após ter participado no delinear da estratégia para o Oriente, foi-lhe confiada uma esquadra de cinco navios na armada de dezasseis navios chefiada por Tristão da Cunha, destinada à Índia com o objectivo de tomar Socotorá e aí iniciar uma fortaleza na esperança de bloquear o comércio no mar Vermelho e vigiar as costas da Arábia. Afonso de Albuquerque seguia como Capitão-mor da costa da Arábia e até Moçambique estaria debaixo da bandeira de Tristão da Cunha. Levava, porém, uma carta régia com a sua nomeação para, depois de cumprida a primeira missão, substituir como governador o vice-rei D. Francisco de Almeida, que terminaria o mandato dois anos depois.

A 6 de Abril de 1506, partiu de Lisboa, pilotando o seu próprio navio, pois o piloto designado desaparecera antes da partida, fugido para Castela. E em Agosto de 1507, após uma série de ataques bem sucedidos às cidades árabes da costa oriental africana, tomou Socotorá, dando início à construção aí de uma fortaleza, para bloquear parcialmente o Estreito de Bab el-Mandeb e negar aos negociantes árabes a capacidade de chegar à Índia através do Mar Vermelho.

Navegou, então, rumo à ilha de Ormuz no golfo Pérsico, um dos centros chave do comércio no Oriente, onde chegou a 25 de Setembro de 1507, precedido pela fama e terror dos seus feitos13. E, a 27, tomou posse da ilha na sequência de uma das maiores batalhas da história da marinha portuguesa, iniciando logo a construção de um forte, com a participação nos trabalhos dos seus homens de todas as condições.

Figura 2 – Afonso de Albuquerque e a Conquista de Malaca.

 

Porém, na sequência da crescente contestação dos seus capitães, que reclamavam dos duros trabalhos e difíceis condições, vários navios desertaram para a Índia. Com a frota reduzida e sem mantimentos, Afonso de Albuquerque deixou Ormuz, em Abril de 1508, voltando a Socotorá.

Após nova passagem por Ormuz rumou então à Índia, chegando a Cananor, em Dezembro de 1508, onde abriu perante o vice-rei D. Francisco de Almeida a carta régia que o nomeava governador. D. Francisco de Almeida recusou passar de imediato o cargo14.

Afonso de Albuquerque retirou-se, então, para Cochim, onde ficou a aguardar indicações do Reino, mas acabou por ser enviado por D. Francisco de Almeida para a fortaleza de Santo Ângelo, em Cananor, onde permaneceu isolado até à chegada do Marechal do Reino, D. Fernando Coutinho15. Este era o mais alto dignitário do reino até então enviado para a Índia, e, com uma armada de quinze naus e 3.000 homens, trazia ordens para a reposição da normalidade, e para que Calecute fosse tomada. Assim, Albuquerque iniciou a governação a 4 de Novembro desse ano. E logo mostrou a sua energia e determinação.

Em 1510, após um ataque falhado a Calecute, atacou de surpresa Goa, que tomou e tornou no centro da presença portuguesa na Índia. Seguiu-se Malaca (1511)16, que tomou e a partir da qual enviou missões diplomáticas a Pegu, Sumatra e Sião (1511), às Molucas (1512)17, e à China (1513). Em Fevereiro de 1513, tentou a tomada de Áden e com isso novamente o domínio do mar Vermelho, mas acabaria por retirar sem sucesso, sendo esse o único ponto estratégico cujo domínio falhou18. Em 1515, submeteu definitivamente Ormuz, entrada do Golfo Pérsico, após o que aí permaneceu, concluindo a construção da fortaleza e desenvolvendo esforços diplomáticos para o seu plano de domínio dos pontos estratégicos que permitiam o controlo marítimo e o monopólio comercial da Índia19.

Na carta final escrita ao Rei, datada de 6 de Dezembro de 1515, diz: «Deixo a India com as principais cabeças tomadas em Vosso poder, sem nela ficar outra pendença senão cerrar-se e mui bem a porta do estreito»20.

Cada vez mais doente, com disenteria21, morreu depois de regressar a Goa, a 15 de Dezembro de 1515.

Informado de que Lopo Soares de Albergaria, seu inimigo, tinha sido enviado para lhe suceder, acompanhado por vários capitães e feitores que lhe eram igualmente adversos, teria dito ainda: «tempo é de acolher à Igreja; e assim fico eu mal com El-Rei por amor dos homens, e mal com os homens por amor de El-Rei»22.

A intriga que em Lisboa agia contra ele parecia vencer. Victória efémera, pois para a história, imparcial, Afonso de Albuquerque haveria de ficar como «O Grande», «César do Oriente», «Leão dos Mares», «O Terrível» e o «Marte Português»; para muitos a maior figura da acção portuguesa na Índia, a ele se refere Kaplan nos termos seguintes: This viceregal “Caesar of the East” took Hormuz and captured Malacca, from where he sent out expeditions to scout and control the East Indies, to the extent possible. He built a fortress on the island of Socotra to partially block the Strait of Bab el Mandeb and deny Arab traders the capacity to reach India via the Red Sea. […] D’Albuquerque wrested a tenuous empire out of the horrid expanse of the seas. It is something that, in strategic terms, a global maritime system, loosely led by the Americans […] has no choice than to try to achieve 23.

 

3. O Oceano Índico: características e importância estratégica

O Oceano Índico, com uma área de 70 560 000 km2, cerca de 10 000 km de largura entre as pontas do sul da África e da Austrália, e comportando cerca de 20% das águas oceânicas mundiais, é o 3.º maior oceano, atrás do Atlântico e do Pacífico.

Limitado a norte pela Ásia, a oeste pela África, a leste pela Austrália, e a sul pela Antártida, o Índico é um oceano marcado por três características principais. Antes de mais, quanto à dinâmica das respectivas águas: mais calmas do que as do Atlântico e do Pacífico (tornando-o mais adequado para o comércio), mas, também, mais complexas do que as dos outros oceanos, devido às monções. Depois quanto aos acessos principais: embora seja possível o acesso através do Cabo da Boa Esperança/Canal de Moçambique e dos Estreitos de Sunda, de Lombok e de Ombai-Wetar, os acessos principais implicam a passagem pelos Estreitos de Bab el-Mandeb, de Ormuz e de Malaca24, pontos de estrangulamento (choke points) onde pode o comércio marítimo ser garantido, mas também impedido ou mesmo bloqueado por uma potência (naval) dominante. Terceira característica: a maior parte do comércio no Índico é extra-regional.

Figura 3 – Chokepoints.

 

De um ponto de vista económico. Com uma população de mais de 2 biliões de pessoas (cerca de 1/3 da população mundial), em 2017 o Índico tinha já 16,8% das reservas mundiais comprovadas de petróleo e 27,9% das de gaz natural e as economias da região representavam 35,5% da produção global de ferro e 17,8% da produção mundial de ouro25. Em 2016, a pesca na região representou 28% das capturas globais, e tem estado em crescimento contínuo desde 1950, o que criou uma base importante para as indústrias de exportação em vários países da região, por exemplo na Indonésia e na Índia, cujas produções representaram cerca de 4,5% das exportações globais de peixe congelado em 2017. Acresce que têm início no Oceano Índico algumas das mais importantes rotas comerciais marítimas que ligam o Médio Oriente, a África e a Ásia Oriental com a Europa e as Américas, e asseguram o transporte de mais de metade do petróleo mundial transportado por mar, estando incluídos nestas rotas três dos sete principais choke points por onde passa o trânsito mundial de petróleo26. Na região existem também 23 dos 100 maiores portos mundiais de contentores, cujo tráfico aumentou de 46 milhões de TEU, em 2000, para 166 milhões, em 201727.

A caracterização ajuda a perceber a importância estratégica do Índico, e como a segurança mundial depende da estabilidade política e da paz naquela importante artéria do comércio global, ameaçada por terrorismo, pirataria, e tráfico de seres humanos e droga.

 

4. Os americanos e o Índico

Os europeus, aliás, os portugueses inauguraram no Índico o mundo moderno, o da globalização. Em 1497, Vasco da Gama dobrou o cabo da Boa Esperança, tornando-se o primeiro europeu a navegar até à Índia nos tempos modernos. E os navios portugueses, armados com pesados canhões, rapidamente dominaram o comércio da região. A supremacia portuguesa na região perduraria até meados do século XVII, sendo então essa posição partilhada com outras potências europeias. Holandeses, franceses e ingleses procuraram sucessivamente controlar o comércio com o Oriente através do oceano Índico. Até que a Grã-Bretanha tornou-se a principal potência, e em 1815 já havia dominado completamente a área. A abertura do canal de Suez, em 1869, viria reavivar o interesse dos europeus no Oriente, mas nenhum outro país conseguiu voltar a estabelecer com sucesso a hegemonia no comércio da região. Os ingleses, que deixaram a Índia depois da Segunda Guerra Mundial28, seriam por fim substituídos parcialmente na região pela Índia independente, pela URSS e pelos EUA.

Durante a Guerra Fria, as duas superpotências reforçaram a sua influência marítima na região, directa ou indirectamente, por meio de instalações portuárias. E nas quatro décadas que aquela durou o Índico foi palco de uma intensa rivalidade entre ambas. O fim da Guerra Fria e a perspectiva excessivamente optimista do «fim da história»29 levou a que a presença naval norte-americana na região fosse sendo gradualmente reduzida. Ao ponto de Kaplan considerar que os norte-americanos (e, de um modo geral, o Mundo Ocidental) têm estado alheados do Índico, prisioneiros da projecção de Mercator30 e da compartimentação geopolítica do mundo feita durante a Guerra Fria31. E ambas são coisas ultrapassadas; porque o Atlântico continua a ser importante, mas o futuro está no Índico32, que Kaplan considera um continuum33, aquilo a que chama um small, intimate ocean 34. Assim, como escreveram Darshana M. Baruah e Caroline Duckworth, we’re thinking about the Indian Ocean all wrong 35.

Kaplan acrescenta quanto aos EUA que, ao longo dos últimos 30 anos e especialmente da década das guerras do Iraque e do Afeganistão, envolvidos naquilo a que chamou a dirty land war 36, estiveram com os olhos postos noutra parte do mundo37. E quando voltaram a olhar para o Índico as circunstâncias, naquela zona crucial para a economia mundial, tinham-se alterado drasticamente. Como após cada monção38, tinha-se iniciado um novo ciclo, marcado pela presença e crescente interesse de outros, por vezes conflituantes entre si, e com os EUA.

Desde logo, a Índia e a China, dois países completamente diferentes e rivais entre si39, ambos em rápido processo de modernização40, candidatos a potências mundiais, e à procura do seu espaço no mar, e especificamente no Índico. A China deslocando-se para este no sentido vertical41; a Índia, duplamente, no sentido vertical e no sentido horizontal42. Mas também outros países, como a Rússia43, a Turquia, e até o Japão.

Kaplan realça que o interesse dos EUA no Índico não se limita ao petróleo e outros recursos naturais, abrangendo o comércio em geral, pois também outros bens, designadamente de consumo, chegam aos EUA por estas rotas. E, assim, conclui vinculando a segurança dos EUA directamente à segurança no Índico, sendo essa uma primeira razão para que defenda um maior envolvimento dos EUA com a região44. A que se junta o crescimento da China, que um maior envolvimento dos EUA na região poderia, segundo Kaplan, ajudar a travar. E isso teria ainda a virtude de ir ao encontro das expectativas de países da região com os quais os EUA têm relações especiais de amizade45.

Como operacionalizar uma maior presença dos EUA no Índico? Kaplan alerta para que devendo ser (também) presença militar46, não o pode ser através das tradicionais grandes bases militares47. No futuro, a presença militar ali deve fundamentalmente estar no mar: a marinha é attractive to peace loving nations; navies visit ports, armies invade 48; e ser complementada com cooperative security locations disponíveis para prestar também ajuda humanitária. Uma forte componente de soft power, portanto, como vem sendo praticada pela China naquela região.

Por isso, se Kaplan aponta Afonso de Albuquerque como um exemplo a ser seguido pelos EUA49, não sugere com isso que os EUA sigam à risca os métodos daquele, designadamente procurando tornar o Índico num mare clausum e assenhorear-se do respectivo comércio. Mesmo que a obra de Kaplan tenha como ideia central a anarquia como estado natural do mundo e que a única coisa que pode impedir o caos é o Império – seja ele Romano, Britânico, Americano, … –, por força das circunstâncias concretas do Índico tem de ser outro o exemplo de Afonso de Albuquerque a ser seguido: o de um estadista capaz de ter uma ideia clara dos objectivos e necessidades do seu país naquela região do Oriente, de observar a realidade, de (se) fazer as perguntas certas quanto a essa mesma realidade50 e de procurar as respostas e as soluções mais adequadas para o interesse que lhe cumpria servir, para além das circunstâncias imediatas. Em suma, o exemplo do estadista capaz de definir e prosseguir uma «grande estratégia»51.

Figura 4 – Monsoon.

 

E isso é importante para os efeitos da mensagem que Kaplan quer passar. Porque, refere, os EUA terão no Índico o grande desafio de aprender a dialogar com as várias civilizações que vão dar cartas ali, e designadamente fazer as pazes com o Islão52, o que poderá implicar o abandono do espírito missionário da democracia53. Os EUA deverão estar preparados e ser capazes de lidar com aquilo a que Huntington chamou os choques civilizacionais54. O Índico é uma região de muito nacionalismo e menos de valores universais, ao contrário do Mundo Ocidental.

Kaplan não é um declinista, um arauto da decadência dos Estados Unidos naquela região. Tão pouco um idealista, que defenda a presença dos EUA naquela região numa atitude de pura e generosa cooperação internacional55. O seu pensamento reflecte a concepção hobbesiana de uma humanidade em estado permanente de discórdia, quando não conflito, por força da natureza humana: ambiciosa, vingativa, rapace. Uma humanidade que vive num mundo anárquico (não hierárquico), cujos constrangimentos estruturais são determinantes dos comportamentos no plano das relações internacionais e impelem os Estados a actuarem como power maximizers e alimentarem o dilema de segurança.

Kaplan é pragmático quanto à forma como olha para a realidade, mas, para o que aqui importa, do ponto de vista da teoria das relações internacionais, é sobretudo neorealista, sendo, aliás, um admirador do fundador do realismo ofensivo, John J. Mearsheimer56. E é a luz desse neorealismo que considera que os EUA viverão numa situação de equilíbrio de poderes entre designadamente a Índia e a China, mas também outros países da região, como o Vietnam57, ainda que considere que haverá espaço para que os EUA sejam ali primeiros inter-pares.

Assim, dos três sistemas admitidos pelos neorealistas como possíveis de acordo com a distribuição de capacidades, Kaplan defende que o Índico será multipolar. E este, pelo riscos que tem associados (possibilidade de mudanças sistémicas e de conflito entre os grandes poderes), não é para os neorealistas o modelo mais estável.

O sistema de domínio Ocidental instituído no Índico pelos portugueses no séc. XVI parece assim ter chegado mesmo ao fim, e em seu lugar emerge o século da Ásia, de um ponto de vista económico, militar e demográfico.

Por isso, Kaplan conclui: the age of simple American dominance, as it existed through all of the Cold War decades and immediately beyond, will likely have to pass. A more anxious, complicated world awaits us; e, de facto, Americans can no longer afford to ignore this important area of the world.

 

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* O presente texto teve por base um ensaio elaborado pelo autor, no ano lectivo 2021/2022, no âmbito do mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais: Segurança e Defesa, do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa.

1 Kaplan tem origem judaica.

2 Em Maio de 1991, publicou o ensaio: Portugal, Europe’s California: https://robertdkaplan.com/robert_d_kaplan_atlantic_monthly_articles.htm (última consulta, assim como todas as demais indicadas adiante: 16-Dez.2023).

3 As viagens e os livros de Kaplan lembram as viagens e livros de Tomé Pires (Suma Oriental) e Duarte Barbosa (Livro de Duarte Barbosa), as narrativas contemporâneas mais completas do Índico, dos seus portos e das suas regiões económicas, juntando descrições económicas, geográficas e históricas.

4 https://www.theatlantic.com/magazine/archive/1994/02/the-coming-anarchy/304670/

5 https://www.forbes.com/sites/stratfor/2014/02/06/why-so-much-anarchy/?sh=2dfc87242b27

6 https://www.theatlantic.com/magazine/archive/1997/12/was-democracy-just-a-moment/306022/

7 Para uma bibliografia completa de Kaplan: https://robertdkaplan.com/robert_d_kaplan_books.htm

8 https://robertdkaplan.com/robert_d_kaplan_reflections.htm

9 Inscrição no túmulo de Afonso de Albuquerque: BETHENCOURT, Francisco, CHAUDHURI, Kirti, História da Expansão Portuguesa, Volume I: A Formação do Império (1415-1570), Círculo de Leitores, s.l., 1997, p. 177.

10Geneall, consultado em https://geneall.net/pt/nome/2092/d-afonso-de-albuquerque-governador-da-india/

TALIXA, Jorge, «Novo nó da A1 de Vila Franca destrói casa onde nasceu Afonso de Albuquerque», in Público, 6-Jan.-2000, consultado em https://www.publico.pt/2000/01/06/jornal/novo-no-da-a1-de-vila-franca-destroi-casa-onde-nasceu-afonso-de-albuquerque-138323

11A título de exemplo: sua mãe era prima co-irmã de D. Joana de Castro, casada com o 2.º Duque de Bragança, D. Fernando; era sobrinho de D. Joana de Castro, casada com D. Fernando Coutinho, 4.º Marechal de Portugal; por sua irmã, Constança de Albuquerque, casada com D. Fernando de Noronha, era tio de D. Isabel de Castro, casada com o descobridor do Brasil Pedro Álvares Cabral; sua prima co-irmã Catarina de Sousa e Albuquerque casou com o Cronista-mor do Reino, Duarte Galvão. Para uma perspectiva mais completa da ascendência de Afonso de Albuquerque, ver: BRAAMCAMP FREIRE, Anselmo, Brasões da Sala de Sintra, Livro Segundo, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1973; e SANCHES de BAENA, Visconde de, Resumo Historico e Genealogico da Familia do Grande Affonso de Albuquerque, Lisboa, Typographia Editora de Mattos Moreira e C.ª, 1881. Para mais, quanto a Afonso de Albuquerque: FERREIRA, João José Brandão, «Afonso de Albuquerque: Um Guerreiro Estratega ou um Estratega Guerreiro?», in Revista Militar, n.ºs 2575/2576 (Agosto/Setembro de 2016), consultado em: https://www.revistamilitar.pt/artigo/1152

12Participou nas expedições a Tânger, Anafé e Arzila, onde permaneceu alguns anos como oficial da guarnição.

13A chegada a Ormuz tinha sido antecedida da conquista ou destruição de todas as cidades costeiras de Omã para não deixar inimigos atrás de si.

14Com fundamento em que o seu mandato terminava apenas em Janeiro de 1509 e pretendia ainda vingar a morte do seu filho, D. Lourenço de Almeida, morto durante a Batalha de Chaul (1508).

15Ver, acima, nota n.º 11. Quanto a D. Fernando Coutinho, ver ainda: NASCIMENTO, Paulo, «Coutinho, D. Fernando», in Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, vol. 1, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, p. 311.

16Ponto mais oriental do comércio do Índico e porta para os mares da China, era a mais rica cidade que os portugueses tinham tentado tomar até então.

17As ambicionadas «Ilhas das especiarias».

18Para a história fica ainda ter sido essa a primeira frota europeia a navegar no Mar Vermelho a montante do estreito Bab-el-Mandeb, feito que Afonso de Albuquerque, em carta de 4-Dez.-1513, descreveria a D. Manuel I: «Dias havia que por todo o estreito era sabida nossa vinda e avisados os logares, em tal maneira que certifico a Vossa Alteza que barco nem almadia nunca navegou o mar, nem as aves não pousavam no mar, tam assombrado foi o Mar Roxo com a nossa entrada, e tam êrmo!» (CORTESÃO, Jaime, «O Império Português no Oriente até 1557», in História de Portugal, Edição Monumental Comemorativa do 8.º Centenário da Fundação da Nacionalidade, sob a direcção literária de Damião Peres, Vol. IV, Portucalense Editora, Lda., Barcelos, 1932, p. 52).

19Cortesão (História de Portugal, pp. 17-8) indica três empórios que eram visitados por mercadores de todo o Oriente e eram a sede do tráfico mais intenso: Malaca, que servia como que de baliza entre o mundo comercial dos países do Índico propriamente dito e os do Extremo Oriente, assentava no ponto de cruzamento das rotas marítimas que iam de um ao outro mundo, e era de todos o mais importante; Calecut, no terço extremo da península Industânica, que era o centro de uma região produtora de pimenta e oferecia aos navegadores que iam ou vinham de Malaca um porto cómodo de escala e tornara-se o grande mercado mais próximo a todos os que os buscavam pelo acesso do Mar Vermelho ou do Golfo Pérsico; Ormuz, que se tornara ponto de reunião entre todos os mercadores muçulmanos que vinham por terra dos portos de Síria e do Mar Negro, o que lhe dava uma importância aproximada das duas outras cidades. Dois outros portos ainda: Cambaia, no golfo do mesmo nome, servindo uma das regiões mais ricas em produtos naturais e manufacturados; e Aden, chave do Mar Vermelho; ambos portos com muito celebradas feiras.

20CORTESÃO, História de Portugal, pp. 53-4.

21CORTESÃO, História de Portugal, p. 53, indicando, a p. 54 da mesma obra, como causa provável da morte, esgotamento pelo excesso de trabalho, a diversidade da alimentação e os malefícios do clima.

22CORTESÃO, História de Portugal, p. 53.

23Monsoon: the Indian Ocean and the future of American power, Nova Iorque: Random House Trade Paperbacks Edition, 2011, p. 55.

24Estes são as principais vias de acesso ao Índico e de circulação do comércio marítimo na região.

25Estes dados e os seguintes foram obtidos através do Lakshman Kadirgamar Institute (LKI) of International Relations and Strategic Studies, em: https://lki.lk/publication/the-importanceof-the-indian-ocean-trade-security-and-norms/

26Os já referidos estreitos de Bab el-Mandeb, de Ormuz e de Malaca. Completam a lista os Canais de Suez e Panamá e os Estreitos Dinamarqueses e Turcos (dados obtidos através da U.S. Energy Administration Information – EIA), em: https://www.eia.gov/international/analysis/
special-topics/World_Oil_Transit_Chokepoints

27Dados obtidos através do LKI.

28Mantiveram, porém, o Território Britânico do Oceano Índico (ver: https://biot.gov.io/).

29Quanto ao fim da história, ver FUKUYAMA, Francis, The end of history and the last man, Londres: Penguin Books, 2012; também o anúncio feito pelo então presidente dos EUA, George Bush, em 11-Set-1990, de que de que a new world order can emerge, […], an era in which the nations of the world, East and West, North and South, can prosper and live in harmony (consultado em https://millercenter.org/the-presidency/presidential-speeches/september-11-1990-address-joint-session-congress, minutos 7:26 a 7:49).

30Mostra o mundo num rectângulo, com o Atlântico no meio e o Pacífico e o Indico nas pontas.

31Médio Oriente, Ásia Central, Ásia do Sul…

32Em que para este efeito inclui o Oeste do Pacífico.

33Kaplan baseia-se nos movimentos migratórios de um local para outro do Índico que ali constatou, concluindo que o Índico é uma grande família e que a globalização aconteceu ali antes de ter acontecido nos outros sítios.

34Kaplan, recupera pensadores de final do séc. XIX e princípio de XX como H. J. Mackinder; N. J. Spykman; e A. T. Mahan.

35BARUAH, Darshana M.; DUCKWORTH, Caroline, “We’re Thinking About the Indian Ocean All Wrong”. Carnegie, 2-Mai.-2022, consultado em https://carnegieendowment.org/2022/05/02/we-re-thinking-about-indian-ocean-all-wrong-pub-87028. Tendo em vista a actualização da forma como se olha para o Índico, a Carnegie Endowment’s Indian Ocean Initiative lançou o Carnegie Map for Strategic Importance of the Indian Ocean, disponível em: https://carnegieendowment.org/publications/interactive/indian-ocean-map

36Entrevista a Connie Martinson (Parte 1), disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8Rnz7InC_ZM&t=4s

37Kaplan assinala a ausência também dos europeus, que explica com um desinvestimento em defesa pela ausência de ameaças na Europa e pelo desempenho tradicional de tal função pelo EUA. Os europeus seriam assim, nesta matéria, free-riders em relação aos EUA: ver a conferência no John Adams Institute, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6klXVgswet0. Note-se, porém, a aprovação em 2021 de uma Estratégia da UE para a cooperação na região do Indo-Pacífico e a referência a essa região na Bússola Estratégica para a Segurança e a Defesa, aprovada em 2022.

38Kapklan sublinha que «monção» (Monsoon) não é necessariamente sinónimo de tempestade e pode significar novos ciclos, e previsibilidade, designadamente para a navegação (o que não acontece com o Atlântico e o Pacífico), porque o fenómeno implica invariavelmente que durante seis meses os ventos soprem no sentido Nordeste-Sudoeste e no sentido contrário nos seis meses seguintes.

39Contrariamente ao que acontece entre a Índia e o Paquistão, a Índia e a China não têm história comum e desenvolveram duas culturas muito diferentes, separadas por uma grande muralha natural – os Himalaias. A rivalidade entre as duas é recente, e consequência do progresso técnico-militar. Não impede, porém, que as respectivas economias sejam complementares e que venham a ser a maior relação comercial do mundo, afirma Kaplan.

40A marinha da Índia poderá vir a ser a terceira maior do mundo. A China terá hoje tantos submarinos como os EUA, o que levou Kaplan a defender que os EUA devem ser contra a Rússia na Europa Central, mas ajudar esta no Leste Asiático, a fim de destabilizar a China e levá-la a desinvestir no mar, preocupando-se mais com as suas fronteiras terrestres. Ambos os países têm ainda projectada a construção de grandes infra-estruturas navais de apoio naquela região. A Índia, por exemplo, bases navais nas ilhas da Assunção (Seychelles) e Agalega (Maurícias) e em Madagascar. A China tem, desde 2017, em Djibouti a sua primeira instalação militar no exterior e está a desenvolver os seguintes projectos portuários de águas profundas: Gwadar (Paquistão), Chitagong (Bangladesh), Kyaukphyu (Myanmar), no âmbito da Rota Marítima da Seda. Como refere Kaplan, a China quer ter no séc. XXI o equivalente às coaling stations que os britânicos tiveram no séc. XIX, que lhe garantam a segurança das rotas do petróleo do Médio Oriente através do Índico, passando pelo Estreito de Malaca até aos portos chineses, sem para isso depender de terceiros, designadamente dos EUA.

41A China, diz Kaplan, olha para Mar do Sul da China como os EUA olharam para o Mar das Caraíbas, entre 1898 e 1914. E evitará o risco de um confronto militar com os EUA, mas, em alternativa, vai «finlandizar» o Sudoeste Asiático, fazendo sobre os Estados da região o mesmo tipo de pressão que a URSS fez sobre o seu vizinho escandinavo durante a Guerra Fria, designadamente em matérias de política externa.

42Onde os interesses de ambos os Estados se cruzem estarão os pontos nevrálgicos da rivalidade no séc. XXI.

43Em 2020, a Rússia anunciou uma nova base militar no Sudão, por um período de 25 anos.

44Mesmo que isso implique ter de lutar contra a resistência a tal política, no Congresso e na própria opinião pública dos EUA.

45Será o caso da Indonésia, Índia, Coreia do Sul, Japão e Austrália, que têm em comum o desafio chinês e por isso desejam uma maior presença, não hegemónica, dos EUA que contrabalance a China, num quadro de esforço concertado com as democracias da região.

46A este propósito, cita um oficial de Singapura, de acordo com o qual: it is all about military force and naval presence – it is not about passionate and well-meaning talk.

47Kaplan refere-se-lhes como as Burguer King old style base, que indispõem as populações locais.

48Ver a conferência de Kaplan no John Adams Institute, indicada na nota 37, acima.

49Monsoon, p. 55.

50Albuquerque não tomava qualquer decisão sem ouvir o seu conselho, embora a título não vinculativo.

51Grand strategy. A este propósito, ver: MURRAY, Williamson, SINNREICH, Richard Hart, LACEY, James, The shaping of grand strategy: policy, diplomacy, and war, Cambridge University Press, New York, 2011, pp. 1-33.

52Kaplan considera que também aqui existe uma oportunidade, porque os milhões de muçulmanos daquela área estarão ansiosos por atingirem níveis de conforto/económicos que lhes permitam ter vidas próprias da classe média.

53A China poderá para isso ser um exemplo a seguir pelos EUA, pois onde quer que vá apenas pretende ser bem sucedida na estratégia definida para o caso concreto, sem querer saber da natureza do regime com o qual tenha de lidar.

54HUNTINGTON, Samuel P., Le Choc des Civilisations, Editions Odile Jacob, Paris, 1997.

55Note-se nas suas intervenções a ausência de referência a um papel relevante a ser desempenhado pelas organizações internacionais enquanto facilitadoras da cooperação entre Estados. Manifestação do cepticismo neorealista quanto a isso.

56Ver: «Why John J. Mearsheimer is right (About some Things)», em https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2012/01/why-john-j-mearsheimer-is-right-about-some-things/308839/

57Que no século XXI será o maior aliado dos EUA no Sudeste Asiático, como o Reino Unido ou a França o são na Europa.

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by COM Armando Dias Correia