Nº 2665 - Fevereiro/Março de 2024
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Crónicas Bibliográficas

A Verdadeira Guerra

A invasão da Ucrânia e a Defesa Nacional Portuguesa

Nuno Rogeiro

 

Com franca satisfação, correspondo ao honroso convite do Sr. Dr. Nuno Rogeiro, de participação na apresentação da sua mais recente obra.

Todos sabemos que o título do livro – “A Verdadeira Guerra – A Invasão da Ucrânia e a Defesa Nacional Portuguesa” – incorpora um tema incontornavelmente atual e importante. E que esse conteúdo não apenas traduz uma visão da guerra da Ucrânia, como se alarga a uma reflexão sobre as respetivas consequências para a Defesa Nacional de Portugal.

Será, ainda, forçoso admitir que um dos principais méritos da obra é o de contribuir para um mais amplo esclarecimento da opinião pública sobre o amplamente considerado mais ameaçador problema atual da comunidade das nações.

Relembra-se que a atual conjuntura internacional compreende enorme turbulência e reiterada violência. E que a maioria das situações graves impacta nas posturas dos atores envolvidos, alterando decisivamente a vontade, o modo e a frequência do respetivo relacionamento. Atente-se, por exemplo, na presente guerra no Médio Oriente, entre Israel e o Hamas, que especialmente à União Europeia tem colocado o enorme desafio de fomentar coesão de propósitos e capacidade de ser relevante na cena internacional.

No caso da invasão da Federação Russa à Ucrânia, não só amplamente se legitimou a férrea vontade deste país para defender o seu povo e o seu território, como se robusteceu a convicção da liberdade de ação da Europa. De facto, a guerra em causa redundou numa acrescida comunhão de propósitos entre os países da União Europeia. Ao mesmo tempo, conforme também todos assistimos, contribuiu para a reafirmação e expansão da Aliança Atlântica, esta consubstanciada em adesões de novos países, uma já realizada – da Finlândia – e outra a ser materializada, a breve trecho – da Suécia.

O Sr. Dr. Nuno Rogeiro dispensa apresentações. É um renomado analista geopolítico e perito em assuntos estratégicos, constantemente preocupado em informar-se com rigor, oportunidade e legitimidade. E que, subsequentemente, tem sabido disponibilizar os seus conhecimentos e as suas análises a quem se interessa por estas importantes matérias.

Afigura-se pertinente relembrar a publicação, há cerca de 20 anos, do livro de Nuno Rogeiro, intitulado “Guerra e Paz”. Neste livro foi observada a Defesa Nacional Portuguesa, num contexto geopolítico irremediavelmente marcado pelos atentados de 11 de setembro de 2001. Que, como todos sabemos, englobaram a invocação, pela primeira vez na história da NATO, do artigo 5.º – Defesa Coletiva – da respetiva Carta.

Ora, o contexto geopolítico atual encontra-se profundamente centrado na Ucrânia-Rússia e, mais recentemente, na Faixa de Gaza-Israel. Conflitos que redundaram em guerras, reiteradas demonstradoras da imprescindibilidade das componentes militares de defesa. Ou, melhor dizendo, da sua mais que previsível inutilidade, se não devidamente dimensionadas, apetrechadas e treinadas.

Significa, no caso da guerra da Ucrânia, que os membros da União Europeia e da NATO foram drasticamente chamados a corresponder, à sua maneira, às atuais ações bélicas da Rússia. Atente-se, curiosamente ou não, que este país é o herdeiro daquele que, no pós-2.ª Guerra Mundial, constituiu o principal catalisador da criação da Aliança Atlântica.

A presente obra de Nuno Rogeiro divide-se em três partes.

Na primeira, é proporcionada uma visão panorâmica do conflito, até aos desenvolvimentos mais recentes. São examinados os acontecimentos globais contemporâneos, perspicazmente enquadradores das complexidades da invasão da Ucrânia. A abordagem segue duas narrativas possíveis: “Uma, baseada na realidade. Outra, na suposição e na conspiração”. Releva-se a afirmação do autor a este propósito, que “a guerra também se trava no campo de xadrez, onde se jogam memórias e falsas memórias”.

Nuno Rogeiro acrescenta haver na invasão da Rússia “uma mistura do velho e do novo, do ultrapassado e do inventado”. O leitor é convidado a questionar as motivações subjacentes, os interesses geopolíticos e as ramificações de longo prazo desta invasão. Através de uma abordagem reflexiva, deduzem-se os factos e a compreensão das camadas mais profundas da dinâmica internacional. Rogeiro salienta, também, a redescoberta da “possibilidade de antigos inimigos se transformarem em aliados, face a um perigo tradicional ainda maior”. Assim como cita os avanços tecnológicos, que criam um campo de batalha novo, onde se cruzam “drones”, camponeses armados, HIMARS e helicópteros KA-52.

Na segunda parte do livro, Nuno Rogeiro explora as implicações desta grave crise internacional na Defesa Nacional de Portugal.

Começa com o histórico de fenómenos bélicos anteriores, em concreto a forma como Portugal se envolveu na Guerra do Iraque, onde uma coligação de “crentes”, como apelida, invadiu aquele país depois de uma mini-cimeira nas Lajes. E lembra a opção de participação na posterior estabilização do país, com forças da Guarda Nacional Republicana em vez das Forças Armadas, justificada pelas dúvidas em relação à legalidade da intervenção sob liderança americana.

O autor percorre, depois, diversas áreas inerentes às Forças Armadas Portuguesas, nomeadamente os equipamentos, as missões internacionais, as estruturas de comando, o pessoal e a disciplina. Não esquece a vertente criminal, claramente associada a acontecimentos recentes e inerentes à segurança militar, que colocaram a Defesa Nacional no espaço mediático, durante largos períodos.

Da invasão da Ucrânia, Rogeiro infere que Portugal foi apanhado “numa altura internamente ingrata, fruto de anos de desinvestimento, desconsideração e minimização na parte militar de defesa”. A Defesa Nacional atravessava, então, um processo de transformação, em sede de revisão da Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas, e de espera até à publicação dos consequentes diplomas do Estado-Maior General das Forças Armadas e dos Ramos.

O autor escalpeliza, também, a reação da sociedade portuguesa perante o apoio do país à Ucrânia, elencando divisões políticas internas, o posicionamento atlântico e mediterrânico, bem como as respostas nacionais no contexto da NATO. Aborda, ainda, o financiamento das despesas militares, que considera carente de medidas de contingência, semelhantes às adotadas durante a pandemia da COVID 19, de modo a melhor habilitar o Estado Português para superar este momento internacional grave. Dá como exemplo, a propósito, a recente aprovação da revisão da Lei de Programação Militar. Apesar de ter registado um aumento significativo de cerca de 17% face à lei anterior, entende que poderia ter sido considerado um aumento bastante maior, na ordem de 25 a 30%, derivado do compromisso da NATO firmado na Cimeira de Gales.

Em aditamento à abordagem realizada sobre as Forças Armadas, Rogeiro escalpeliza outras áreas não essencialmente militares, designadamente no domínio da energia, na sua opinião um aspeto fulcral no início e evolução da invasão russa e da guerra. Destaca, nesse quadro, a importância da posição geográfica portuguesa, no extremo ocidental da Europa, mais próximo e mais vantajoso para o trânsito marítimo dos principais fornecedores, em particular de gás natural liquefeito.

Nuno Rogeiro apresenta a terceira e última parte da obra, que apelida de “sobre desenlaces”, onde aborda os “futuríveis” e conclui de forma “não conclusiva”.

Estipula fundamental perceber o que se seguirá a esta guerra no contexto da Europa, apesar de, até ao momento, se tratar de uma grande guerra na sua periferia. Traça cenários sobre o futuro da Rússia, em particular de Vladimir Putin, assumindo que nenhuma hipótese elencada merece ser descartada, porque, acrescenta, “o caixote do lixo da História é pródigo em material reciclado”. Assume, igualmente, o tempo como um elemento da guerra pois, sem a sua noção, nenhum exército percebe completamente o que o condiciona. Assim como aborda o posicionamento da China, a questão do nuclear e a apresentação de cenários sobre o futuro de cada um dos contendores, no pós-guerra.

A conclusão, “não conclusiva”, que retira é “não ser preciso ser vidente, mas apenas previdente, para saber que a invasão da Ucrânia marcará profundamente os próximos anos, também para Portugal, e em particular para o seu aparelho de defesa”.

Em suma, os leitores poderão encontrar uma dissertação envolvente, enriquecedora e, acima de tudo, esclarecedora. “A Verdadeira Guerra” não apenas informa sobre os eventos cruciais da nossa época, como também desafia as perceções convencionais, proporcionando uma mais ajustada compreensão da correlação de forças que molda o mundo contemporâneo. Ao mesmo tempo, realça a imprescindibilidade de políticas de defesa robustas, para se prevalecer neste mundo, cada vez mais imprevisível e turbulento.

Mais uma vez, está de parabéns o Sr. Dr. Nuno Rogeiro, pela audácia de levar as suas ideias à estampa. Apresenta-as de forma sintética e cativante, sem complexos ou preconceitos. E assume didatismo, com naturalidade, pois tenta descodificar, eticamente e do modo mais simples possível, o fenómeno violento e complexo que constitui qualquer guerra.

Que desta guerra, há quase 22 meses devastadora da Ucrânia, não se perca o espírito da vitória, e se retirem todos os ensinamentos possíveis, à vista da solidariedade internacional, e sempre para o bem de Portugal!

 

General José Nunes da Fonseca

Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas

Sócio efetivo da Revista Militar

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José Nunes da Fonseca
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