Nº 2667 - Abril de 2024
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Ainda a crise da COVID-19: sete “pecados mortais”
Tenente-general
Abel Cabral Couto

Nota prévia

Este artigo foi gizado, e começou a ser escrito, em Setembro de 2021, quando a generalidade dos especialistas antevia o fim próximo da pandemia e parecia adequado tentar-se uma análise crítica do que acontecera, a nível mundial, com vista ao estabelecimento das linhas gerais de uma doutrina, que permita evitar catástrofe semelhante no futuro. E entendia, como um dever cívico, dar um contributo, por modesto que fosse, para tal finalidade.

Duas razões principais me levaram à suspensão dessa iniciativa. Pouco depois de iniciar a escrita, intuí a possibilidade de uma crise política no País e considerei o risco de, sendo um artigo crítico, lhe serem atribuídos propósitos muito diferentes dos que estavam na sua génese. Por outro lado, dadas as minhas condições físicas e as limitações que impunham, não só à obtenção de certos dados fundamentais, como ao próprio processo de escrita e organização do texto, surgiram-me naturalmente fortes dúvidas quanto à racionalidade do esforço em face da sua potencial utilidade: para lá do mérito ou demérito das ideias, é certo que a Revista Militar tem uma circulação limitada e dificilmente atinge os “pecadores” e que o tema seria objecto de milhares de artigos de entidades mais qualificadas. Ora, quanto à crise política, verificou-se, mas foi resolvida; têm sido abundantes os textos publicados sobre a crise, mas, ao que creio, essencialmente de natureza técnica ou táctica ou cobrindo apenas aspectos sectoriais da crise. Mas, talvez por insuficiência minha, não tenho tido muito eco de textos que visem uma análise político – estratégica da crise, particularmente em língua portuguesa. Acreditei, assim, que este artigo não perdera oportunidade. E, quanto à sua potencial utilidade, a alimentar a esperança havia sempre a história do grão de trigo que, tendo regressado à luz do dia no meio de entulho retirado de obras de conservação no interior de uma das Pirâmides do Egito, teria germinado, ao fim de alguns milénios… E, finalmente, em regra as lições mais consistentes são tiradas depois de pousada a poeira das emoções e das paixões, das susceptibilidades pessoais e dos factos insignificantes. Infelizmente, o agravamento progressivo e irremediável de situações familiares levou-me a protelar a conclusão do artigo muito para além do que havia previsto.

 

1. Introdução

O artigo baseia-se nos efeitos principais da pandemia verificados, a nível global, até fins de 2020, quando foram criadas vacinas aprovadas pelas autoridades competentes, dado que só até aí são possíveis comparações consistentes: a partir daquele momento, a evolução da pandemia e os seus efeitos passam a ser fortemente influenciados pelos processos de vacinação, tornando-se a evolução também dependente da disponibilidade de vacinas e do seu tipo, de capacidades técnicas e logísticas variadas, dos critérios de vacinação e prioridades estabelecidos, da atitude cultural das populações, etc.

Resta referir que na análise crítica me cingi aos tópicos que considero mais relevantes e estruturantes, subordinando-me ao espartilho do título do artigo.

 

2. Recordando

Em artigo anterior, escrito já em plena crise, ainda que no seu dealbar1, propus as linhas gerais duma estratégia anti-pandémica, em que a propagação de um vírus seja feita pelo ser humano. Salientámos, então, que o vírus COVID-19 não circula nas correntes atmosféricas, marítimas, fluviais, etc., nem é transportado pelas aves, peixes ou outros animais de larga circulação – isto é, por vias ou agentes incontroláveis –, mas exclusivamente pelo ser humano, que o acolhe e abriga, com custos que podem ser vitais, e o projecta até uma curta distância, pela boca e nariz. E que tem um “período de vida” relativamente limitado. E, assim, o vírus pode “viajar” a grandes, médias ou curtas distâncias, conforme o meio de transporte utilizado pelo “transportador”, incluindo a forma pedestre. Por conseguinte, em teoria, o problema estratégico é simples: trata-se, essencialmente, de regular eficazmente a circulação humana, pois se for possível impedir a entrada de um indivíduo infectado no seio de uma comunidade (seja uma família, um lar social, um quartel, uma povoação, uma cidade, uma região, um país, etc.), o vírus não atingirá essa comunidade. Ou, dito de outra forma, no contexto das características do mundo actual, trata-se de regular parcialmente a globalização, não no que respeita à circulação de ideias e de bens ou mercadorias, mas apenas a certos segmentos da circulação humana, constituídos pelos infectados e pelos suspeitos de o poderem estar. Ora a regulação da circulação humana é uma questão do dia a dia, para a qual existem meios e técnicas experimentados: na situação em análise, consiste, fundamentalmente, numa mudança de amplitude, de grau ou intensidade.

E daqui uma conclusão que vai ao arrepio de muitas das preocupações e discussões dominantes: a tarefa fundamental deve ser a de evitar ou travar a expansão do vírus, limitando ou impedindo, temporariamente, a circulação de determinados seres humanos. Existem outras vias, menos eficazes e nem sempre disponíveis ou exequíveis, tais como o uso de máscaras, a manutenção da distância social e a vacinação e que consideramos complementares. E, assim, o “centro de gravidade” do problema, o “ponto decisivo” situa-se no campo das forças de segurança, em sentido lato.

Mas a regulação da circulação, na situação em apreço, exige restrições, mais ou menos severas e generalizadas, à liberdade de circulação, e esta é um dos direitos fundamentais do cidadão e que repercute em outros dois direitos correlatos: o de reunião e o de manifestação. Assim, em regimes democráticos, a limitação daqueles direitos, de uma forma racional, eficiente e eficaz, exige um enquadramento legal adequado. Daqui uma outra conclusão relevante: um segundo factor de primordial importância situa-se no campo do Direito. Isto é, sem um quadro legal adequado, não é possível uma acção político-estratégica racional, coerente, eficiente e eficaz. Sem tal enquadramento, haverá sempre custos humanos, económicos e sociais muito elevados.

No mesmo artigo propusemos o conceito de “espaço-fortaleza” como todo aquele em relação ao qual se procura assegurar a sua impenetrabilidade contra tudo o que seja considerado indesejável. O espaço-fortaleza mais elementar, natural, intuitivo, desde os primórdios, é o nosso lar, que procuramos (pobres ou ricos) tornar impenetrável a tudo o que ameace a nossa segurança e bem-estar: frio, infiltrações de água, maus cheiros, insectos ou outros animais, assaltantes, indivíduos desconhecidos ou com doenças contagiosas, etc. Torna-se assim, naturalmente, no nosso local de refúgio, quando surge um perigo exterior. E procuramos alargar o objectivo a todo o prédio ou condomínio em que vivemos. A partir daí entra-se no domínio público e o conceito pode estender-se a um bairro, a uma povoação ou cidade, a uma região ou parte de um país, a um país ou, por acordo, a um conjunto de países contíguos, e que estabelecem, desta forma, uma grande fronteira comum.

A liberdade de circulação transfronteiriça é uma excepção e não a regra à escala mundial. Num espaço-fortaleza a sua transposição só é permitida em poucos locais, encerrados e controlados; as saídas são geralmente facilitadas, mas as entradas exigem a satisfação de determinadas condições, que devem ser conhecidas pelos interessados. Verifica-se uma situação inversa num “espaço de contenção”, no qual o controlo incide essencialmente sobre as saídas.

E, no mesmo artigo, propus três modalidades de acção estratégica: a mais desejável e eficaz – uma estratégia preventiva; se a ameaça se concretizar – uma estratégia de contenção e de neutralização, em áreas limitadas; como recurso, uma estratégia de combate generalizado em superfície.

 

3. Alguns dados fundamentais sobre a crise pandémica

Os dados aqui incluídos referem-se às ocorrências e mortes pela COVID-19 verificadas em regiões e países seleccionados, até 20 de Dezembro de 2020, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Apresentam-se também, para as mesmas regiões e países, os efeitos da pandemia no PIB e na dívida pública (DP).

A figura 1 representa, em função do número de casos verificados, a intensidade da pandemia, à escala mundial, na semana de 21 a 27 de Dezembro de 2020, segundo a OMS, de acordo com um código de cores.

Figura 1 – Situação Mundial (número de casos), entre 21 e 27 de Dezembro de 2020.

Fonte: www.WHO: COVID-19 Weekly Epidemiological Update

 

 

PAÍS

Nº Casos

Última Semana

Nº Casos

Acumulados

Nº Casos

Milhão Hab

Mortes

Acumuladas

Mortes

Milhão Hab

Taxa

Mortalidade %

Variação

PIB

Variação

Div. Pub

ÁFRICA

África do Sul

82434

994911

16775

26521

447

2,7%

-6,0%

22,8%

Angola

523

17149

522

399

12

2,3%

-5,6%

22,3%

Argélia

3076

97857

2232

2722

62

2,8%

-5,1%

12,9%

Cabo Verde

131

11698

21040

112

201

1,0%

-20,8%

31,4%

Nigéria

5643

83576

405

1247

6

1,5%

-1,8%

18,2%

Tanzânia

0

509

9

21

0

4,1%

-4,6%

1,9%

Zâmbia

1051

19671

1070

382

21

1,9%

-2,8%

48,5%

AMÉRICAS

Argentina

43180

1574554

34839

42422

939

2,7%

-9,9%

15,7%

Brasil

285582

7448560

35042

190488

896

2,6%

-3,3%

10,2%

Canadá

43952

539298

14289

14781

392

2,7%

-5,0%

31,8%

Colômbia

92635

1574707

30948

41690

819

2,6%

-7,3%

25,4%

Cuba

1014

11038

975

141

12

1,3%

-10,9%

 

EUA

1334155

18648989

56341

328014

991

1,8%

-2,2%

22,8%

México

70697

1372243

10643

121837

945

8,9%

-8,6%

12,8%

Peru

11786

1005546

30497

37368

1133

3,7%

-11,0%

29,8%

MEDITERRÂNEO ORIENTAL

Arábia Saudita

1218

362066

10400

6176

177

1,7%

-4,3%

43,9%

Egipto

6424

131315

1283

7352

72

5,6%

-3,6%

7,7%

Irão

42891

1194963

14227

54574

650

4,6%

-3,3%

3,5%

Jordânia

13559

286356

28065

3729

365

1,3%

-1,6%

13,0%

EUROPA

Alemanha

146849

1640858

19584

29778

355

1,8%

-3,8%

15,4%

Áustria

13730

348359

38679

5752

639

1,7%

-6,6%

17,6%

Bélgica

11959

638874

55125

19192

1656

3,0%

-5,3%

14,6%

Chéquia

46459

670599

62620

11044

1031

1,6%

-5,5%

25,7%

Dinamarca

19561

151167

26098

1153

199

0,8%

-2,4%

25,5%

Espanha

36436

1854951

39674

49824

1066

2,7%

-11,2%

22,5%

Finlândia

1502

34084

6152

524

95

1,5%

-2,4%

15,1%

França

89093

2507532

38416

62197

953

2,5%

-7,5%

17,7%

Grécia

4629

135114

12963

4553

437

3,4%

-9,3%

14,6%

Holanda

77582

754171

44014

10974

640

1,5%

-3,9%

12,6%

Irlanda

6618

85394

17294

2200

446

2,6%

-6,6%

1,8%

Israel

12342

383715

44332

3138

363

0,8%

-1,6%

19,8%

Itália

100676

2038759

33720

71620

1185

3,5%

-9,0%

15,4%

Noruega

2157

44932

8288

421

78

0,9%

-1,3%

13,7%

PORTUGAL

22209

392996

38541

6556

643

1,7%

-8,3%

15,7%

Reino Unido

251786

2256009

33232

70405

1037

3,1%

-10,4%

22,5%

Rússia

201871

3050248

20901

54778

375

1,8%

-2,7%

39,4%

Suécia

21038

396048

39216

8279

820

2,1%

-2,2%

12,1%

ÁSIA SUDESTE

Índia

156627

10187850

7382

147622

107

1,4%

-6,6%

18,0%

Indonésia

48889

706837

2584

20994

77

3,0%

-2,1%

30,1%

Tailândia

1689

6020

86

60

1

1,0%

-6,1%

20,4%

PACÍFICO OCIDENTAL

Austrália

168

28296

1110

908

36

3,2%

-2,1%

22,3%

China

608

96324

65

4777

3

5,0%

2,1%

16,1%

Coreia do Sul

7211

56872

1109

808

16

1,4%

-0,7%

15,6%

Japão

21432

217312

1718

3213

25

1,5%

-4,1%

9,4%

Nova Zelândia

28

1788

371

25

5

1,4%

0,0%

36,1%

Singapura

116

58519

10003

29

5

0,0%

-3,9%

16,6%

Vietname

29

1440

15

25

5

1,7%

2,9%

2,9%

 

 

Observando a figura 1, verifica-se que a pandemia foi particularmente intensa em toda a região euro-asiática e euro-atlântica (genericamente, de Vladivostoque a Vancouver), com a excepção da Noruega e da Finlândia, e com prolongamentos em parte da América do Sul e na República da África do Sul. Duas pistas de investigação se podem avançar: a pandemia é a manifestação (mais uma...) de uma crise mais funda, de natureza civilizacional; ou, dada a coincidência geral com a zona temperada norte, as condições climáticas são determinantes no desenvolvimento duma pandemia deste tipo.

Salienta-se também que, cerca de um ano depois, a pandemia estava debelada na China, onde o vírus se desenvolvera à vontade durante pelo menos um mês, enquanto a intensidade atingia valores máximos no sofisticado mundo ocidental.

Assinala-se, ainda, que, contrariamente a muitos receios e previsões, a pandemia se revestiu de pequena intensidade na maior parte dos países em vias de desenvolvimento, não tanto por mérito das políticas seguidas, mas por características derivadas do seu subdesenvolvimento. De facto esses países têm uma dinâmica social, interna e externa, muito baixas, (excepto, na maioria dos casos, na capital) e uma demografia em que a larga maioria da população é jovem e, portanto, mais resistente ao vírus.

Vejamos alguns dados da figura 2. Tomando como base de comparação o número de mortos acumulados por milhão de habitantes, salta desde logo à vista, nas várias regiões consideradas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a enorme diferença nos resultados entre países com características climáticas, económicas, sociais e culturais semelhantes. Tal é o caso, por exemplo, do Uruguai em relação ao Brasil ou Argentina; da Suécia ou Reino Unido, em relação à Noruega ou Finlândia; da Bélgica ou Holanda em relação à Dinamarca; de Cabo Verde em relação ao Senegal; da Coreia em relação à China, etc. Estas enormes diferenças só me parecem explicáveis, fundamentalmente, pelas diferentes políticas e estratégias adoptadas e pelo rigor com que foram aplicadas. Verifica-se também que países com os mais elevados recursos económicos, financeiros e tecnológicos figuram entre os que sofreram consequências mais catastróficas, como é o caso dos EUA, do Reino Unido, da França, da Itália, etc. Assinala-se, ainda, que, de um modo geral, os países desenvolvidos com maior taxa de mortalidade são também os que tiveram maiores quebras no seu PIB, o que mostra a inanidade do chavão, muito utilizado, de que a luta eficaz contra a pandemia não podia pôr em causa a defesa da economia.

A memória dos homens é curta e tende-se a esquecer a gravidade da dimensão que a crise atingiu em vários países. Em alguns, não há registo histórico de algo semelhante; mas mesmo em países historicamente fustigados por guerras e crises, basta referir que, em relação ao número de militares mortos no primeiro ano da 2ª GM, nos principais países envolvidos, a pandemia provocou, em 10 meses, baixas semelhantes. Dir-se-á que muitas destas mortes ocorreriam, a breve prazo, devido a graves patologias já existentes; mas também muitas outras ocorrerão por falta de tratamentos atempados, devido aos bloqueamentos nos serviços de saúde ocorridos nas exigências criadas pela pandemia.

Como referimos, é notória a grande disparidade dos resultados entre muitos países. Tal parece comprovar que não há fatalismos, determinismos ou inevitabilidades, mas sim políticas e estratégias mais ou menos, na concepção e na acção, lúcidas e aplicadas com oportunidade e determinação e, assim, eficazes.

Mesmo pondo de lado os países cujas estatísticas podem merecer reservas, julgo de salientar alguns dos países que obtiveram sucessos notáveis, pelo que considero que as políticas e estratégias que adoptaram devem ser objecto de cuidadoso estudo, nas suas múltiplas facetas e momentos. Tal é o caso da China, da Nova Zelândia, da Nigéria, de Singapura, da Noruega, de Cuba e mesmo da Tanzânia.

 

4. Sete “pecados mortais”

Consideramos que a pandemia, e as dimensões da crise que a mesma gerou, resultaram de erros, faltas ou insuficiências nos seguintes domínios, considerados mais significativos:

– Avaliação da ameaça;

– Quadro legal;

– Objectivos e estratégias;

– Conduta da estratégia operacional;

– Oportunidade e adequação das medidas;

– Descentralização;

– Universalidade.

Abordaremos seguidamente cada um destes tópicos.

 

5. Avaliação da ameaça

Em fins de Dezembro de 2019, foram reveladas ao Mundo informações e imagens sobre um novo vírus que surgira numa remota província chinesa. As informações cobriam o essencial sobre as características do COVID-19 e as imagens, de alguns efeitos e consequências, eram surpreendentes e aterradoras. As reacções foram variadas. O grosso dos comentários focou-se na letalidade: para muitos, o vírus tinha um cariz espartano, com um papel semelhante ao da antiga Rocha Tarpeia; para muitos outros, não era mais que uma variante de uma vulgar “gripezinha”; e, entre uns e outros, de forma geralmente velada, muitos o associavam à visão duma China baseada em fortes reminiscências de “O Mandarim do Eça”. E, nas primeiras semanas de 2020, ouviram-se de altos responsáveis políticos e sanitários afirmações surpreendentes: que o vírus dificilmente atingiria a Europa e o Mundo desenvolvido, em geral; discussões sobre se o risco era o de uma endemia ou pandemia; se o uso de máscara era benéfico ou prejudicial, etc., etc. E, entre nós, apresentava-se como evidência de um alto grau de preparação para qualquer eventualidade, a existência de meia dúzia de quartos especiais num hospital de referência. Em síntese, no mundo, em vastos sectores com elevadas responsabilidades, a ameaça foi avaliada de forma inepta e com grande displicência. E na Europa, durante dois meses, pouco ou nada se fez para a enfrentar, e muito menos para tentar evitá-la.

É evidente que uma adequada avaliação da ameaça é uma condição necessária, embora não suficiente, para a concepção de políticas e estratégias sólidas e eficazes. Como é sabido, a avaliação incide sobre os seguintes aspectos: natureza, incidência, probabilidade, intensidade, duração e periculosidade (efeitos e consequências). Passamos a abordar, genericamente, apenas três – incidência, probabilidade e periculosidade –, que foram objecto de opiniões mais dissonantes e controversas, e que influenciaram fortemente a forma como decorreu a pandemia.

Quanto à incidência, refere-se apenas que, desde o início, deviam ter sido tida em especial atenção, os grandes aglomerados humanos que vivem sob condições de habitabilidade muito deficientes (de imigrantes e não só). Facilmente se antevia que se viriam a tornar em focos poderosos de propagação nas grandes áreas industriais e urbanas.

Como referido, a propagação do vírus faz-se segundo formas que são controláveis, pelo que a probabilidade de ocorrência de um surto depende da adequação e rigor de aplicação das medidas preventivas que forem adoptadas. Mas, em face da dimensão e extensão das medidas preventivas aconselháveis, da delicadeza política de muitas delas, da forte pressão de interesses instalados, e da potencial dificuldade de um sucesso absoluto, gera-se facilmente em vários sectores uma crença na inevitabilidade da concretização da ameaça, tese politicamente sempre cómoda. Ora a “crença na inevitabilidade” gera a inevitabilidade, ao considerar inúteis as medidas preventivas: o grau de probabilidade torna-se igual a 1. Mas a questão agrava-se, na medida em que existem correntes, com forte respaldo científico, que advogam que as medidas preventivas não só são inúteis, mas também indesejáveis, na medida em que recomendam a livre circulação do vírus, a fim de rapidamente se alcançar a chamada “imunidade de grupo”, abrangendo toda a população.

A periculosidade da ameaça foi geralmente expressa pelo número de casos e de mortos ocorridos num determinado período de tempo, muitas vezes acompanhada de dados sobre a situação do internamento nos hospitais, elemento importante para se avaliar a capacidade de resposta do sistema. O efeito sanitário é, naturalmente, flutuante, não só em função das estratégias de combate adoptadas e da atitude das populações, mas também das mutações do Vírus (novas variantes), que alteram a sua virulência e a velocidade de transmissão.

Mas a COVID-19 tem uma característica perturbadora: o seu carácter insidioso, devido à grande possibilidade de existência de infectados (propagadores) assintomáticos, o que amplia enormemente o seu valor e tem efeitos psicológicos significativos. Cada indivíduo é suspeito, até prova em contrário, numa como que inversão dos princípios sobre o ónus da prova. Toda esta situação gera graves consequências, em todos os domínios (económico, social, etc.). Todas estas dimensões da ameaça devem ser consideradas e avaliadas, ab initio, com vista ao estabelecimento de políticas e estratégias adequadas. Mas, na maior parte dos países, tal não aconteceu.

 

6. Quadro legal

A luta eficaz e eficiente contra as grandes catástrofes, seja qual for a natureza destas, implica sempre a necessidade de adopção de medidas de excepção, que, em grau variável, restringem os direitos, liberdades e garantias de cidadãos. Mas, mesmo em países democráticos, as soluções adoptadas pelos legisladores para se enfrentar tal exigência, são muito variadas. E assim, sem competência para propor soluções, limito-me a referir as que me parecem ser as exigências legais mais significativas de uma luta eficaz contra grandes catástrofes, em geral, e contra uma pandemia, do tipo da COVID-19, em particular.

Considero fundamentais as seguintes necessidades:

– Rápido encerramento das fronteiras;

– Rápido estabelecimento, se necessário, de linhas e de áreas de contenção, (que podem coincidir com divisões administrativas, no todo ou em parte) com restrições, no mínimo, à liberdade de circulação;

– As limitações às liberdades, direitos e garantias dos cidadãos devem ser, tanto quanto possível, selectivas (idealmente de precisão cirúrgica...), assentar exclusivamente em critérios de ordem sanitária, sem atenderem a nacionalidades, cargos, estatutos sociais, etc., serem rigorosamente cumpridas e durarem apenas o tempo considerado necessário pelas autoridades competentes;

– O interesse colectivo deve primar sobre o individual, inclusive nos locais de trabalho, públicos e privados, embora considere que sem prejuízo pecuniário para o trabalhador;

– As medidas operacionais devem ser descentralizadas, tanto quanto possível, com adequada margem de adaptação às situações concretas locais.

Neste contexto geral, os Governos devem poder decidir, rapidamente, sobre o encerramento das fronteiras, independentemente de acordos internacionais existentes, e sobre as medidas de controlo da circulação que devem ser implementadas, bem como sobre o estabelecimento de linhas e de áreas de contenção e sobre as restrições que, no interior dessas áreas, devem ser observadas. Numa área de contenção, devem ser definidas as condições de criação e extinção, conforme aconselhável, de “cercas sanitárias”. O legislador fixará as medidas de controlo das decisões e acções do poder executivo, a realizar a posteriori, com vista à sua ratificação, anulação ou correcção.

Consoante os países, a satisfação, no todo ou em parte, das condições acima referidas pode ser contemplada pela declaração do estado de calamidade ou do estado de emergência, em todo o território ou em áreas restritas.

No caso de Portugal, julgo que deve ser tida em especial atenção a existência de Regiões Autónomas (R.A.). Julgo que nesta matéria devem gozar de total autonomia, sem prejuízo do apoio do Governo Central julgado necessário.

 

7. Objectivos e estratégias

Os objectivos dos vários países para enfrentarem a pandemia talvez possam, nas suas grandes linhas, ser sistematizados como segue:

– Gerir a pandemia, até à criação de uma vacina ou de um fármaco anti-viral eficaz;

– Criar uma vacina e, até lá, gerir a pandemia;

– Alcançar rapidamente a chamada “imunidade de grupo”;

– Conter a pandemia nas grandes cidades e geri-la;

– Evitar a pandemia e, se necessário, contê-la e debelá-la.

O objectivo “gerir (politicamente) a pandemia” pode ser decomposto em dois: manter o número de casos e de mortes num valor psicologicamente aceitável pelo grosso da população; e controlar, à custa de medidas de apoio à população e empresas, a crise económica e social gerada pela pandemia, de modo a evitar-se qualquer grave instabilidade política e social.

Foi no domínio da estratégia genética que se verificaram sucessos espectaculares, que evitaram uma muito maior catástrofe à escala mundial. De facto, em menos de um ano, quatro países criaram vacinas, de eficácia variável, mas positiva. Para o efeito, esses países mobilizaram o melhor do seu capital científico e, conforme os regimes, financiaram-no adequadamente. Regista-se que a UE não foi capaz de produzir uma vacina própria, o que considero ser mais um indicador da sua decadência.

No campo da estratégia estrutural, saliento apenas a rápida criação de adequadas estruturas de armazenamento, distribuição e conservação, à escala mundial, de um produto tão sensível como as vacinas.

As estratégias operacionais adoptadas foram, naturalmente, concedidas em função dos objectivos prosseguidos. Foi o domínio em que se verificaram os grandes insucessos, embora se possam apontar, como vimos, uns muito poucos casos de sucesso, que diria espectacular.

Para economia do texto, reduziremos as estratégias operacionais adopta-
das nos vários países a três grandes grupos, de que a maior parte são apenas variantes:

– de protecção contra o vírus e de tratamento dos seus efeitos;

– de prevenção do vírus e, se necessário, de rápida contenção e aniquilamento de qualquer surto;

– uma estratégia que designo de “iô-iô” ou de “aperta e alarga”, no fundo, intermédia entre as duas anteriores.

A primeira estratégia derivou, essencialmente, de quatro ordens de argumentos ou razões: crença (sincera ou não) numa inevitabilidade da pandemia; desvalorização da ameaça (uma “gripezinha”); numa absolutização do individualismo e dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (ao Estado cabe, sobretudo, fazer recomendações…); ou numa incapacidade de tornar efectivas medidas restritivas e de controlo das populações. Nesta estratégia o acento tónico foi colocado na garantia duma satisfatória capacidade de resposta do sistema sanitário, bem como de uma taxa de mortalidade socialmente aceitável, e, conforme as possibilidades, em medidas psicológicas, económicas e sociais capazes de manterem a estabilidade social e política. Graficamente, a evolução da pandemia é representável por uma curva sinusoidal, com patamares, em que os intervalos entre os nodos foram designados por “vagas” ou “ondas” mais dependentes de decisões políticas que das características do vírus.

Destas estratégias, apenas a segunda teve verdadeiro sucesso.

 

8. Conduta da estratégia operacional

Considero que residiu aqui um dos maiores ”pecados mortais”, já que defendo que a conduta de toda a acção de combate à pandemia deveria ter competido à Protecção Civil, por razões conceptuais, de eficiência operacional e organizacional e de coerência intra europeia.

Como é sabido, a Segurança Nacional assenta em três pilares, que constituem um sistema: a Segurança Externa ou Defesa, a Segurança Interna e a Protecção Civil. Os dois primeiros pilares respeitam a ameaças resultantes da vontade humana; o terceiro respeita a ameaças naturais ou humanas involuntárias, ou aos efeitos indirectos sobre populações, serviços e patrimónios de acções no campo dos outros dois pilares. Ora uma pandemia é uma ameaça natural e, embora se traduza num problema de saúde pública, confundir a luta contra uma pandemia com a acção de um Ministério da Saúde é confundir o todo com uma parte.

Em segundo lugar, é a Protecção Civil que dispõe de Centros de Operações, desde o nível central ao local, capazes de funcionarem 24 horas por dia, e guarnecidos por pessoal que deve estar habilitado nos vários domínios da acção – recursos humanos, informações, operações ou emprego dos meios, recursos materiais e infraestruturas ou logística, transmissões e comunicação pública. Além disso, dispõe de uma organização que desce do nível nacional ao local, que é onde a luta verdadeiramente se trava e que tem a autoridade e a capacidade de coordenar a acção dos vários intervenientes potenciais (forças de segurança ou militares, organizações humanitárias, delegados de saúde, empresas de interesse público, etc.). Acresce que, ao nível concelhio, o presidente da comissão de protecção civil é o do Município, entidade eleita, com autoridade e responsabilidade assim acrescidas, e escrutinada. Finalmente, para além das Forças Armadas e Policiais e Negócios Estrangeiros, só a Protecção Civil dispõe de uma cultura geral sobre segurança que, evidentemente, não se encontra noutras organizações ou departamentos.

E, ao nível da União Europeia, toda a cooperação, quanto a pessoal, equipamentos, etc., foi mediada através do canal europeu da protecção civil.

Em consequência desta incultura e impreparação, verificaram-se incongruências, deficiências e erros que devem ser evitados no futuro. Meramente a titulo de exemplos, apontam-se alguns factos.

Julgo lamentável a forma como, durante muitos meses, foi representada cartograficamente a situação da pandemia em muitos países. Em Portugal, por exemplo, era assinalada a vermelho toda uma região, quando, na realidade, na maior parte dos concelhos dessa região não tinha surgido ainda qualquer caso (apesar de nada ter sido feito para tal resultado...). E, como é evidente, representações incorrectas ou nebulosas da realidade, dão origem a medidas, senão erradas, pelo menos às cegas. E só numa fase já muito avançada da pandemia se chegou, a nível europeu, a uma representação cartográfica até ao nível dos concelhos, utilizando um código de cores e estabelecido com base em critérios científicos aceitáveis. E, entre nós, não faltaram vozes autorizadas, e com pergaminhos na matéria, proclamando a necessidade de, a nível local, o mapeamento descer até prédios e apartamentos; mas creio que foram pouco ouvidas, certamente devido ao “pecado original”.

Em Portugal, o primeiro estado de emergência foi decretado, observando-se a rotina legal, cerca de duas a três semanas depois de reconhecida a pandemia, vigorando em todo o País, incluindo as R.A. Na altura, cerca de dois terços do território ainda não tinha sido atingido pela pandemia. De acordo com a estratégia adoptada, seguiram-se outros estados de excepção. Mas uma entidade, que tem a interessante e sugestiva designação de “Alta Autoridade para a Emergência e Protecção Civil” (que lucidamente associa a “emergência” à “protecção civil”), parece não ter sido ouvida nem achada em todo o processo…

Ao nível local, eram os Presidentes das Câmaras que, mal ou bem, enfrentavam as situações. E geralmente invocavam, e bem, a sua condição de Presidentes da Comissão Municipal de Protecção Civil.

Regista-se, como facto altamente positivo, a mobilização que foi feita do capital científico das principais áreas de interesse, que permitiu a criação de modelos da conjuntura e previsionais da evolução das principais variáveis, conducentes à possibilidade da tomada de decisões atempadas e mais ajustadas. Regista-se ainda (embora tenha ocorrido após o período analisado neste artigo) a forma, felizmente muito louvada e reconhecida, como decorreu a campanha de vacinação subsequente.

Considero que Portugal possui uma boa legislação sobre a Protecção Civil e que têm sido notáveis os progressos feitos nos campos organizativo, de formação do pessoal e na adequação dos meios. E faço quatro sugestões:

– A primeira já foi contemplada por decisões recentes, embora desconheça se na medida adequada. Refere-se à necessidade de, pelo menos nos distritos tradicionalmente mais críticos, existirem (talvez dois) comandos de reserva, capazes, ou de reforçar um comando institucional, quando os meios atribuídos excedam a sua capacidade de comando e controlo, ou de coordenar a acção de comandos institucionais, quando a ocorrência incida sobre vários concelhos vizinhos;

– Considero que os Presidentes de Câmaras, pela primeira vez eleitos para tais funções, devem frequentar um estágio intensivo e objectivo no âmbito da Protecção Civil;

– Julgo que, nos grandes centros urbanos, a organização da Protecção Civil deve descer ao nível da Junta de Freguesia, pelo menos através da criação de uma célula, capaz de manter actualizada a informação básica de referência e uma carta da situação;

– A Secretaria de Estado da Protecção Civil devia empreender a elaboração progressiva de pagelas compiláveis sobre os comportamentos a adoptar pelos cidadãos em situações características (fugas de gás, inundações, sismos, precipitação radioactiva,grandes secas, incêndios florestais, epidemias, etc.), bem como sobre a constituição de reservas de primeiros socorros, de água, de produtos alimentares, de mantas contra pequenos incêndios, etc. Essas pagelas deveriam ser distribuidas gratuitamente pelos estabelecimentos de ensino, lares, corporações humanitárias, bibliotecas públicas, etc., e, aos poucos, ir-se-ia constituindo um “Manual do Cidadão sobre Protecção Civil”, que deveria ser descarregável do computador.

A problemática da Protecção Civil tende a adquirir uma acuidade e dimensão crescentes e com fenómenos novos e mais gravosos, em consequência da evolução civilizacional e das alterações climáticas. Em muitos países já existem Secretarias de Estado. Mas creio que, a prazo, se imporá a necessidade de um Ministério da Protecção Civil. E o edifício conceptual ficaria completo.

 

9. Oportunidade e adequação das medidas

Em qualquer fenómeno negativo de fluxos, o tempo é uma variável crucial. Há que agir rapidamente, com dois objectivos fundamentais: localizar a sede ou foco do fenómeno e estancá-lo ou bloqueá-lo. Caso contrário, o fenómeno expande-se, adquire rapidamente maiores dimensões, torna-se de difícil controlo e produz fatalidades. É assim com uma rotura de gás ou de uma conduta de água, com um foco de incêndio ou com uma hemorragia. E deve ser assim com uma pandemia. A oportunidade da acção é, pois, um princípio fundamental, não só no início, mas durante todo o decurso da pandemia. Há que decidir e agir depressa. Desta forma, e a título de exemplo, anunciar no dia D medidas consideradas convenientes em D-10 e para entrarem em execução efectiva em D+10, é ignorar não só que, entretanto, centenas ou milhares de pessoas são infectadas, que muitas morrem e que parte dessas mortes podia ser evitada, mas também que empresas e empregos se perdem, etc.

Mas é preciso, também, que as medidas sejam adequadas, o que se afere pela sua natureza, tanto quanto possível, preventiva, pela sua precisão ou ajustamento, bem como pela sua coerência, duração, suporte científico, aceitabilidade pela generalidade da população e pela sua comprovada eficácia. Ora uma observação regular do que se ia passando em vários países ocidentais, por exemplo, detectava facilmente casos clamorosos de medidas atrasadas, às cegas, incoerentes, mal definidas ou explicitadas, etc., etc.

 

10. Descentralização

Como referimos, a conduta da acção deve ser fortemente descentralizada. Só ao nível local há um adequado conhecimento da situação e das capacidades dos vários sectores envolvidos no combate à pandemia. E tem de existir uma autoridade responsável pela coordenação e controlo das medidas que vão sendo tomadas. Muito depende da organização político-administrativa de cada país e da organização do poder.

Ora em muitos países verificaram-se fortes descoordenações na acção, sem cadeias de comando ou controlo claramente definidas, com muitas autoridades sectoriais “desaparecidas em combate” e incontactáveis em momentos críticos, etc.

 

11. Universalidade

Como é sabido, o vírus não distingue nacionalidades, etnias, géneros ou estatutos económicos, sociais, políticos, etc. Mas, em muitos países, verificaram-se claras diferenças, quanto às medidas de controlo e ao tratamento, entre nacionais e estrangeiros residentes, ou entre nacionais e estrangeiros provenientes do estrangeiro, ou entre os chamados trabalhadores transfronteiriços, com graves consequências para os habitantes dos territórios de origem, etc. Por outro lado, no que respeita à circulação aérea, os critérios adoptados tinham muitas vezes em atenção a origem dos voos mas não as escalas, ou a proveniência dos passageiros, etc. Além disto, e em meu entender surpreendentemente, mantiveram – se acordos internacionais de liberdade de circulação entre territórios com políticas, objectivos e estratégias de combate à pandemia muito diferenciados. Creio que estes factos são, em grande parte, responsáveis por enormes disparidades nos efeitos da pandemia entre territórios vizinhos e com idêntico grau de desenvolvimento.

 

12. Um caso de sucesso: Nova Zelândia

Passamos a abordar, sucintamente, a forma como ocorreu e foi enfrentada a pandemia na Nova Zelândia, no período em apreço.

Em Janeiro, antes da ocorrência de qualquer caso, foi criado um Centro de Coordenação e Controlo de todas as medidas que fossem sendo tomadas, o qual, mais tarde, ficou a cargo de um Ministro especificamente nomeado para o efeito. E foi incentivado e facilitado o regresso de todos os nacionais residentes ou ausentes no estrangeiro, os quais eram também incentivados a, voluntariamente, observarem um período de quarentena nas suas residências. Alem disto, foi proibida a entrada de quaisquer viajantes provenientes da China. O 1º caso ocorreu em 28 de Fevereiro, com uma mulher regressada do Irão, dois dias antes, logo seguido de um outro, com uma mulher regressada de Itália. Deram origem a um surto com propagação comunitária rápida. Em 19 de Março, foi determinado o encerramento das fronteiras para não-residentes, limitando as possibilidades de entrada no país a um número reduzido de aeroportos e portos, devidamente controlados. E, a partir de 10 de Abril, todas as pessoas chegadas por via aérea e autorizadas a entrar, tinham de observar uma quarentena obrigatória, devidamente controlada, em hotéis adaptados para o efeito. Entretanto, em 21 de Março, fora criado um sistema de alerta, de 4 níveis, combinando recomendações com medidas restritivas, de intensidade e amplitude crescentes com a subida do nível e adaptadas à intensidade da pandemia nos vários espaços político-administrativos. Durante este primeiro surto, foi determinado o confinamento geral da população não empenhada no funcionamento e fornecimento de serviços e bens essenciais, o qual durou dois meses. Em fins de Maio, este surto foi considerado debelado, sem ocorrência de qualquer novo caso. Durante o surto, foi aplicado um programa vigoroso, mas racionalizado, de testes, seguindo o esquema clássico: detectar-isolar-rastrear-testar-detectar… Este primeiro surto traduziu-se na ocorrência de cerca de 1.500 casos e de 22 mortes.

Em 11 de Agosto, depois de 100 dias sem novos casos, surgiu um novo surto. As investigações feitas concluíram que foi devido a duas cidadãs inglesas, que viajaram via Hong-Kong, e que, explorando o facto de terem nascido e vivido neste território, apresentaram documentação que não foi devidamente escrutinada. A reacção foi fulminante e exemplar: todo o pessoal do serviço de fronteiras do aeroporto foi suspenso de funções, submetido a averiguações e substituído por pessoal das Forças Armadas. Estas foram ainda encarregadas de procederem a uma inspecção rigorosa de todo o sistema de controlo das fronteiras e de apresentarem, num prazo relativamente curto, um relatório com propostas de correcção de deficiências encontradas. Explorando a experiência já colhida, este surto foi rapidamente contido, desenvolvendo-se numa área relativamente limitada.

O número de casos subiu para cerca de 1.900 e o de mortos para 25. Durante o resto do ano verificaram-se mais alguns casos isolados, entre a tripulação de um pesqueiro e com a tripulação de um avião regressada dos EUA. Em fins de 2020, existiam cerca de 500 casos activos, em todo o país, e o número de mortos mantinha-se em 25.

Em princípios de Novembro, em face da situação do país comparada com o resto do Mundo, o Governo decidiu incentivar e facilitar a entrada de viajantes de vários países que comprovassem terem feito uma reserva de 15 dias em hotéis de luxo, devidamente identificados, submetendo-se a uma quarentena em condições privilegiadas. Após a qual se poderiam instalar onde e durante o tempo que desejassem. A Nova Zelândia substituía, assim, um turismo de massas por um de luxo, de longa duração, tornando-se local de refúgio de muitos afortunados do mundo, desejosos de evitarem os riscos da pandemia e de gozarem de condições quase sem restrições. Nos finais do ano foram restabelecidas as comunicações regulares com a Austrália e, pouco depois, com os EUA e Reino Unido.

Durante este período foi intensificada a luta contra a emigração clandestina, habitual na região. Os infractores foram instalados em campos de refugiados, organizados em aldeamentos turísticos, sem utilização, existentes em algumas das pequenas ilhas existentes do país, e até lhes ser dado outro destino (geralmente o repatriamento).

Refere-se ainda, que a protecção da população nativa – maori – foi objecto de especial atenção, a fim de não ser atingida pela pandemia.

O Governo, trabalhista, foi dirigido por uma jovem primeira-ministra, extrovertida, com grande capacidade de empatia e que evidenciou as qualidades de liderança adequadas para enfrentar a situação: lucidez (na avaliação da ameaça e na escolha dos objectivos, políticas e estratégias), coragem política, rapidez de decisão, convicção quanto à justeza dos objectivos e decisões, firmeza e determinação na acção, capacidade de comunicação e convicção e fé no sucesso. Com surpresa, demitiu-se finda a pandemia, exausta, física e psicologicamente, pelo esforço despendido. Mas reservou um lugar na História do seu país.

 

13. Duas sugestões complementares

A pandemia originou, em muitos países um esforço generalizado de criatividade e inovação, na busca de soluções, rápidas, económicas, simples e eficazes para alguns dos novos problemas surgidos. Tal foi o caso, por exemplo, em domínios como o da criação e fabrico de máscaras, de vestuários de protecção, de viseiras, de desinfectantes, de ventiladores, de organização de turnos de trabalho, do ensino a distância, do teletrabalho, etc. Em muitos casos, o mercado acabou por determinar as soluções mais adequadas; noutros, as experiências tornaram-se em rotina e foram incorporadas no sistema normal. Mas houve que improvisar alterações, por vezes significativas, muitas vezes consideradas temporárias, na organização dos espaços interiores de hospitais, centros de saúde, centros de terceira idade, lares, prisões etc., para um eficaz combate da pandemia. Receio que a experiência adquirida se possa perder. Julgo, assim, que no caso nacional, as várias organizações deveriam ser incentivadas a registarem e a manterem arquivadas as alterações e adaptações feitas nas suas instalações, e que os Ministérios que as tutelam deveriam proceder a uma análise crítica das várias soluções aplicadas nas instalações mais relevantes (hospitais, prisões, estabelecimentos de ensino, etc.), com vista ao estabelecimento de normas a observar na construção de novas instalações no futuro.

Julgo também que deveria ser considerada a criação de um sistema de alerta semelhante ao neo-zelandês. Entre nós já há algo de semelhante no Instituto do Mar e da Atmosfera. Tal facilitaria a satisfação de uma das condições fundamentais do sucesso: a adopção de medidas rápidas, oportunas e adaptadas às diferentes situações duma pandemia, a nível territorial.

 

14. Comentário final

E concluo recordando um episódio que observei na televisão, numa tarde e relativo a um lugar que já não posso precisar.

O presidente da junta de uma freguesia isolada do Alto Minho, intuindo, com a sabedoria dos tempos medievais, que o vírus só podia vir de fora e que, se tal acontecesse, teria efeitos devastadores numa população maioritariamente envelhecida e de escassas capacidades, propôs às autoridades que entendeu o isolamento da povoação e que não fosse permitida a entrada de qualquer pessoa estranha. Não foi, evidentemente, atendido. Mas, firme e determinado, e seguro das suas razões, não esteve com meias medidas: acompanhado de uns quatro conterrâneos mais possantes, todos munidos dos tradicionais ferros de desmontar, maços e guilhos, resolveu escachar um grande rochedo que existia à beira da estrada municipal que servia a povoação e perto da sua confluência com a estrada nacional. E, depois de o autarca, num estilo vicentino, ter imprecado, perante a câmara televisiva, os poderes constituídos, desde o supremo ao municipal, o grupo lançou mãos à obra e, com os blocos obtidos, obstruiu a via de acesso à povoação. Mas foi estabelecido um sistema simples que garantia o normal abastecimento da população. E com curiosa solicitude, as autoridades competentes sancionaram a situação, colocando as habituais barreiras metálicas na berma da estrada nacional, junto do ramal municipal. Como este episódio não teve seguimento, presumo que tudo continuou de forma feliz… E assim o lúcido e determinado autarca da modesta freguesia cumpriu o seu dever primeiro: o de, na medida do possível, zelar pela segurança e vida daqueles que o elegeram. Aqui lhe presto homenagem.

 

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1 Ver “Revista Militar n.º 2620, de Maio de 2020”. O Artigo foi enviado para publicação em 10 de Abril.

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Tenente-general

Abel Cabral Couto

Nasceu em Mateus, Vila Real, em 11 de Março de 1932, onde fez o curso de liceu que terminou em 1949, com 18 valores.

Cursou Artilharia, na Escola do Exército (1949/1953). Depois fez outros cursos: Geral e Complementar de Estado-Maior, do Instituto de Estudos Militares (IAEM); Emprego de Armas Especiais, na Escola do Exército dos Estados Unidos da América, em Oberamergau e Superior de ­Comando e Direção, do IAEM.

Frequentou o curso de licenciatura em Ciências Físico-Químicas da Faculdade de Ciências de Lisboa.

Atualmente, é general do Exército na situação de reforma.

Professor catedrático convidado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (desde 1987) e membro do Conselho

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