Nº 2667 - Abril de 2024
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Belly of Wars
Major-general
Nuno Correia Barrento de Lemos Pires

Belly of Wars: o que é?*

“Belly of Wars” é um novo construto que significa em português “barriga de guerras”. Surgiu no seguimento do atual contexto securitário internacional, reportando-se ao conjunto de guerras/conflitos, que partilham vários denominadores comuns – tais como disputa por recursos fundamentais, ameaças híbridas, presença/intervenção de atores revisionistas e contínua ação de grupos terroristas transnacionais –, com consequências (diretas e indiretas) a nível mundial, quer no mar, quer em terra (numa perspetiva contínua de Sea-Land-Sea).

A “mancha” na Figura 1 representa a “barriga” que vai do Ártico ao Sahel, passando pelo Leste Europeu e o Médio Oriente. Esta representação gráfica permite identificar vários atores estatais (tais como a Rússia, o Irão, a Síria, o Iémen, o Mali ou o Níger), empresas militares privadas (como a Wagner, atualmente também denominada de “Africa Corps”) e grupos terroristas transnacionais, como o ISIS1, a Al-Qaeda e os inúmeros associados de ambos, de âmbito regional (desde o Boko-Haram ao ISIS em Cabo Delgado), entre outros.

Figura 1 – Representação gráfica do construto Belly of Wars.

Fonte: Construído a partir de https://geology.com/world/world-map.shtml

 

Uma panóplia de atores – governamentais, não-governamentais, terroristas e privados –, que levam a cabo variadas campanhas de guerra, desinformação, violência direta e indireta, destinadas ao controlo de áreas fundamentais, ao potenciar de caos, à conquista e ocupação de terreno, à obtenção de recursos fundamentais2, à disrupção de rotas marítimas, à intimidação de populações e ao influenciar (para a sua “causa”) de povos e nações em amplas partes das nações deste planeta. Neste contexto, pese os atores e as suas campanhas na “Belly of Wars” (geograficamente delimitadas ao ilustrado na Figura 1), conforme supradito, que afetam literalmente o mundo.

Belly of Wars procura, portanto, delimitar geograficamente guerras/conflitos que perfilham comunalidades, enfatizando a(s) ligação(ões) entre os territórios que se inserem nesta “barriga” e, no fundo, a importância de uma abordagem pelo todo, ou uma abordagem 360º, como está expresso na Bússola Estratégia (EEAS, 2024)3 ou na abordagem ao sul global feito pela NATO (NATO, 2022)4 (NATO, 2024)5.

Transpondo este conceito, por exemplo para a guerra de agressão russa à Ucrânia, é visível a forte relação entre as atividades a Sul com as que se desenvolvem no Flanco Leste, através da persuasão russa sobre os parceiros regionais, alicerçada nos seus próprios interesses (financiamento da guerra, aumento da sua ação económica e militar, e criação de uma imagem de “salvador” baseada numa retórica de “desnazificação” e que visa o enfraquecimento das potências ocidentais através da deterioração das relações com os países africanos). Adicionalmente, apesar da esmagadora maioria dos países ONU (141 em 193) terem claramente condenado a invasão russa sobre a Ucrânia – nas votações da Assembleia Geral das Nações Unidas, tanto em março de 20226 como em fevereiro de 20237 –, tem-se que os pouquíssimos apoios em prol de Putin foram realizados por países que, na sua maioria, encontram-se dentro da “barriga” sinalizada a verde no mapa da Figura 1 (designadamente, Bielorrússia, Eritreia, Mali e Síria), com exceção da Coreia do Norte e Nicarágua, que se situam fora deste ambiente geográfico. Por outro lado, têm-se também dentro da delimitação geográfica muitos dos países que se decidiram pela abstenção (caso do Sudão, da República Centro Africana e do Irão), e que, no fundo, fazem parte do chamado “Sul Global”, ou seja, países que mesmo perante um rompimento de relação com a Rússia, ainda sentem uma determinada influência russa. Dito por outras palavras, ainda perfilham a suprarreferida comunalidade que importa combater em todas as geografias.

 

Stay & Build (na Belly of Wars) – em prol da solução

Pelo até aqui referido, uma posição de “Stay & Build”, em especial, por parte da NATO ou da UE, reveste-se de particular importância, na medida em que se afigura como uma eficaz e eficiente medida para fazer frente aos atores supra descritos, que, a qualquer custo, procuram destabilizar, desagrupar e disromper com os valores, a economia e o estilo de vida baseado no respeito pelo direito internacional e humanitário.

Posição “Stay & Build” operacionalizável, por exemplo, através das Forward Presence Missions. Missões em que a NATO esforça-se por marcar a presença em espaços geograficamente vitais (“where it hurts”) – nomeadamente no flanco leste europeu (Roménia, Polónia e Balcãs) –, e, simultaneamente, por fortalecer as suas parcerias a Sul.

Neste enquadramento, Portugal cumpre também o seu papel de Aliado credível e empenhado, tanto no quadro da NATO como no seio das missões bilaterais e das missões da UE e da ONU8, marcando, a sua, já muito reconhecida, presença na Roménia, na Eslováquia, na Lituânia, no Mediterrâneo e, mais a sul, no Iraque, na Jordânia, na Somália, no Mali, na República Centro Africana, na Nigéria, na Mauritânia, no Golfo da Guiné e em todos os países de língua portuguesa. Uma presença dentro da perspetiva Sea-Land-Sea, que contribui para um coerente “Build”, na medida em que coloca obstáculos às ameaças que têm de ser acaradas e digladia a violência e a influência perpetuada (no mar e em terra) pelos grupos terroristas.

“If we leave, they’ll stay, they’ll come, and we cannot let them win”

Porque, como Aliados e Parceiros, os países tanto da NATO e da UE, têm estado presentes e pretendem construir pontes de confiança e projetos de desenvolvimento (Build);

Porque, fruto da experiência e do saber acumulado, Portugal como um de entre estes Aliados bem presentes a Sul, está consciente que uma ação de partir e/ou de nada ser realizado em prol dos povos que precisam de ajuda e apoio, abre caminho a que outros – com agendas muito diferentes e nefastas – apareçam e ocupem os espaços vazios (caso de grupos militares privados apoiados pela Rússia ou de inúmeras organizações criminosas e terroristas que crescem no grande Sahel);

O estar, ajudar e apoiar, que sempre tem sido apanágio de Portugal, em particular, e da NATO ou da UE, em geral, é uma “prova provada” de como é importante, e positivamente impactante, a abordagem 360º (da NATO, assim defenida mas inferida também dos documentos estruturantes da UE), garante de segurança e de prosperidade, numa postura resiliente, que, mais do que “resistir”, permite construir (Build) mecanismos de confiança e de estabilidade, assentes no respeito pelo direito internacional e humanitário, e pelas diferenças e idiossincrasias (culturais, etc.).

Uma postura resiliente – associada “à capacidade para acolher, superar e recuperar do impacto”, intimamente ligada à Dissuasão, à Defesa, a uma resposta construtiva e, conforme suprarreferido, à abordagem 360º, em detrimento de uma postura “meramente” resistente, que, “na maioria das situações, tende a pautar-se pelo estabelecimento de uma oposição, de um lutar contra a pressão, alicerçado num ‘aguentar’ por muito tempo”9.

Um exemplo prático da demonstração da resiliência, prende-se com os projetos de mobilidade militar e/ou com a crescente interoperabilidade entre Aliados e de Parceiros, não sendo por acaso que: (i) a NATO e a UE têm vindo a apostar, cada vez mais, na formação conjunta e no treino “lado a lado” (“train shoulder to shoulder”), de forma coletiva e coesa; (ii) o compromisso coletivo (“Collectively, we all have to make compromises”) se traduz em ações concertadas em todos os domínios militares (Multi Domain). Neste âmbito, o conceito de Multi Domain Operations (MDO) e, efetivamente, a concretização de operações militares desenvolvidas de forma concertada e convergente entre os variados domínios (ar-terra-mar-espaço-ciber), que, contudo, face a uma barriga de guerras, carece de ser estendido para um mais abrangente, o Hybrid-All Domain Operations.

Hybrid-All Domain Operations (denominação da responsabilidade do autor) que, para além dos cinco domínios acima identificados integra ainda os das: (i) Infraestrutura e comunicações; (ii) Economia; (iii) Cultura; (iv) Sociedade; (v) Administração Pública; (vi) Justiça; (vii) Inteligência e Gestão de Informações; (viii) Política; e (ix) Diplomacia. No fundo, uma postura de resiliência que passa pelo emprego, coordenado e concertado, de todos estes diferentes instrumentos (e domínios) de poder, e pelo destacar da dimensão “Be”, ou seja, do continuar a Ser.

Estando a NATO a cumprir 75 anos de existência, e sendo, como tal, a mais antiga e mais eficaz organização internacional de segurança do mundo, Ser e continuar a ser, é uma afirmação de resiliência dos 32 Aliados que a integram, concretizada, por exemplo desde logo, pelo profundo compromisso do artigo 5.º, que advoga que um ataque contra um Aliado é considerado um ataque contra todos, sendo, por isso, dever dos demais ajudá-lo na sua defesa.

Com a NATO, são assim alcançados o:

– “Be (ser)”, através dos seus 75 anos de sólida existência e de um crescente número de Aliados;

– “Stay (estar)”, numa postura 360º, em prol de um garantir da defesa coletiva;

– “Build (construir)”. num espírito construtivo de parecerias, tanto em terra como no mar (Sea-Land-Sea), com uma especial atenção ao seu Flanco Sul.

 

Em síntese…

No mundo atual existe efetivamente “a Belly of wars” (uma barriga de guerras) que ameaça e perturba a ordem internacional, tal como ela era anteriormente conhecida.

Depois da agressão russa à Ucrânia, e face à crescente presença de força e agentes por si patrocinados, em múltiplas geografias, a sociedade contemporânea já não vive no outrora sistema, globalmente garantido pelo profundo respeito por regras e pelo direito internacional.

Neste contexto, a resposta que potencia melhores resultados face às consequências desta terrível Belly of Wars passa por uma atuação combinada, de países verdadeiramente Aliados e cientes do indissociável ciclo de: para se criar Segurança tem de existir Desenvolvimento e para existir Desenvolvimento tem de haver Segurança. Ou, por outras palavras, não há Segurança sem Desenvolvimento, nem há Desenvolvimento sem Segurança.

Em síntese, a “Belly of Wars” obriga a uma resposta de “Be & Stay & Build” da NATO, da EU e de cada país do mundo que acredite e defenda um sistema internacional assente no respeito pelo direito e em regras comuns.

 

__________________________________

*Agradeço, profundamente, as sugestões e correções de: Brigadeiro-general Ana Baltazar, Coronel Nuno Lourenço, Tenente-coronel Cristina Fachada e Dra. Laura Sousa.

1 Islamic State of Iraq and Syria.

2 Na extensa zona desta “barriga”, merece destaque a região definida como “grande Sahel” onde, além da propagação da insegurança e do seu baixo desenvolvimento, é evidente um especial interesse (e decorrente vulnerabilidade face àqueles que procuram o seu controlo para proveito próprio) despertado pela abundância de recursos naturais que aí existem (caso do petróleo, ouro, lítio e urânio).

3 “Annual Progress Report on the Implementation of the Strategic Compass for Security and Defence”, março 2024. Disponível em https://www.eeas.europa.eu/sites/default/files/documents/2024/StrategicCompass_2ndYear_Report_0.pdf

4 “NATO 2022 Strategic Concept”, junho 2022. Disponível em https://www.nato.int/nato_static_fl2014/assets/pdf/2022/6/pdf/290622-strategic-concept.pdf

5 “Secretary General receives final report from group of experts on NATO’s southern neighbourhood”, 20 de março de 2024. Disponível em https://www.nato.int/cps/en/natohq/news_223916.htm

6 “Assembleia Geral repudia ofensiva militar da Rússia à Ucrânia”, 2 de março de 2022. Disponível em https://news.un.org/pt/story/2022/03/1781482

7 “Assembleia Geral aprova resolução que pede fim da guerra na Ucrânia”, 23 de fevereiro de 2023. Disponível em https://news.un.org/pt/story/2023/02/1810387

8 “Participação de Militares Portugueses em Missões Internacionais – 4.º trimestre 2023”, 10 de janeiro de 2024. Disponível em https:://www.defesa.gov.pt/pt/comunicacao/documentos/Lists/PDEFINTER_DocumentoLookupList/20240123-Relatorio_Envolvimento-militares-exterior_4TRI-2023.pdf

9 Pires, N.L. (2023). Os Resistentes. O poder do sacrifício humano no combate ao invasor: da Antiguidade à Ucrânia. Lisboa: Oficina do Livro.

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by COM Armando Dias Correia