Nº 2667 - Abril de 2024
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Serviço Militar Obrigatório: uma discussão necessária
Brigadeiro-general
Henrique José Pereira dos Santos

 

“The more you sweat in peace, the less you bleed in war.”1

(Norman Schwarzkopf, General)

 

1. Introdução*

A discussão em torno do serviço militar obrigatório (SMO) parecia estar definitivamente encerrada em Portugal, após a sua extinção em 2004 até que, de súbito, a guerra da Ucrânia veio novamente colocar o assunto na ordem do dia. Rapidamente foram tornadas públicas diferentes opiniões, análises e propostas, elaboradas de acordo com as mais diversas perspetivas. Tornou-se então óbvio que, afinal, o assunto ainda merece alguma atenção, devendo a discussão deste tema ser levada a efeito de forma séria, profunda, informada, livre de preconceitos, independente de eventos circunstanciais e orientada no sentido de um bem maior, que deverá ser sempre entendido na perspetiva do interesse nacional.

Nos anos mais recentes, nem a crónica falta de efetivos, nem os sucessivos alertas para a necessidade de o país manter uma capacidade de defesa efetiva ou a profunda alteração no quadro geopolítico mundial, nem tão pouco os avisos de alguns (poucos) especialistas ou simplesmente de cidadãos interessados no assunto, fez despertar mais cedo a necessidade daquela discussão. Foi necessária uma guerra (embora de caráter limitado) na Europa, com consequências neste momento ainda imprevisíveis, mas certamente dramáticas, para que algumas consciências adormecidas pudessem despertar. Mas o verdadeiro debate sobre este tema ainda não foi feito, e a pouca informação que tem transparecido para o domínio público está, à partida, inquinada na medida em que as mais altas esferas de decisão nacionais, nem sequer consideram a possibilidade da sua discussão2.

Quando se aborda o tema do serviço militar obrigatório em Portugal, é frequente serem apresentados diversos argumentos que levaram à sua extinção: a alteração do quadro geopolítico, a necessidade de pessoal profissional para operar equipamentos cada vez mais sofisticados, a reduzida perceção de ameaças na atualidade, a fraca prestação de um serviço reduzido a 4 meses, a desigualdade de tratamento entre os cidadãos recrutados e os dispensados, entre tantas outras. Na mesma linha, pouco se fala de outras razões, eventualmente mais efetivas, tais como o receio de alguma classe política relativamente ao poder das forças armadas, a pressão das juventudes partidárias sobre os governos, a convicção algo idealista de que a nossa defesa será sempre garantida pelos aliados, em caso de necessidade, para só referir algumas das mais óbvias. Será que na realidade atual, os pressupostos e as ameaças, as necessidades e a capacidade de resposta nacional, são os mesmos do que há 20 anos atrás?

É da natureza humana de que tudo o que é obrigatório cria aversão e repulsa. Só a simples menção ao termo “obrigatório”, desperta imediatamente discursos inflamados de afirmação das liberdades individuais e dos direitos dos cidadãos. Daí que o SMO se tenha passado a designar de “serviço efetivo normal” (SEN) logo em 1987, não só porque não abrangia a totalidade dos cidadãos, mas também porque se configuravam diferentes formas de prestação de serviço: voluntário, profissional, contratado ou temporário. Mas nem este paliativo, evitou o fim do SMO. No entanto, quando se discutem outros aspetos em que os cidadãos estão vinculados a um carácter obrigatório, a abordagem é normalmente menos inflamada. Se observarmos com atenção, são inúmeras as obrigatoriedades impostas a qualquer cidadão, para as quais se configuram penalidades mais ou menos graves, no caso do seu incumprimento: a obrigação de cumprir as leis e as normas da República, a obrigação de pagar impostos, a escolaridade obrigatória, entre outras.

As questões relacionadas com a defesa nacional são geralmente muito complexas e exigem um profundo conhecimento e uma experiência vasta, o que nem sempre tem sido apanágio de alguns decisores políticos. As ações (ou omissões) nesta área não podem andar ao sabor das vontades de um reduzido número de pessoas, de grupos, de opções políticas de curto prazo ou de circunstâncias do momento. Não deve existir qualquer dúvida de que a defesa nacional se prepara com tempo, normalmente dilatado, pois o levantamento de capacidades necessita de obedecer a um processo longo, de execução difícil e complexa, que exige coordenação permanente entre diferentes áreas da ação do Estado e da Sociedade. Daí que as opções pela modalidade de serviço militar não devam estar dependentes de questões circunstanciais, pelo contrário, deverão sempre apoiar-se nas decisões estruturais mais profundas, em que se baseia o interesse nacional.

O serviço militar deve ser entendido como uma das inúmeras componentes que contribuem para o potencial nacional e, como tal, articular-se numa perspetiva de reforço de uma cultura de cidadania abrangente e cuja necessidade seja facilmente percetível pela generalidade dos cidadãos. Neste sentido, entendemos que deve a sua discussão ser alargada à validação de um modelo mais amplo de serviço nacional de cidadania, onde o serviço militar se constitua também como um pilar do sistema e não como o seu objetivo exclusivo. A abordagem às questões da validade, interesse, modelo e utilidade do serviço militar será assim alargada para um conceito bem mais abrangente, onde se devem discutir distintos aspetos, tais como a sua finalidade, obrigatoriedade, duração, abrangência, utilidade e eficácia.

Num mundo ocidental, em que a tendência generalizada é para se prestar menor atenção às questões da defesa (exceto quando as circunstâncias de momento exigem um cuidado especial ao assunto, como no caso vertente, a guerra em curso na Ucrânia), é essencial retomar a discussão séria sobre o melhor modelo de serviço militar, sempre entendido numa perspetiva de muito longo prazo, orientada para o interesse nacional e abstraída de eventuais baias, que possam condicionar todo o processo.

O objetivo do presente artigo é apontar alguns aspetos menos discutidos relativos ao serviço militar, através do estudo do caminho percorrido nos anos mais recentes e da análise da situação presente, procurando identificar as maiores vulnerabilidades e atributos do sistema atualmente existente em Portugal e, partindo desta, apresentar um conjunto de propostas estruturadas num novo modelo, que permitam aprofundar e alargar o debate informado sobre o tema. Considera-se, em termos gerais, que a discussão em torno da necessidade da existência do SMO apenas faz sentido, quando inserida no âmbito mais vasto de um Serviço Nacional de Cidadania (SNC), geral e universal, focado na valorização dos cidadãos e no reforço do potencial nacional e que abranja diversas áreas da ação do Estado e da Sociedade, como adiante detalhado.

 

2. Um percurso atribulado

A defesa nacional é um direito e dever elementar de todos os cidadãos. Decorre da lei fundamental3, da tradição histórica nacional e do bom-senso. Sem defesa não há nação. Para que a defesa possa ser efetiva, é necessário reunir um conjunto de condições que exigem, entre outras, a disponibilidade de recursos (incluindo o recurso tempo), a existência de vontade política e de aceitabilidade social. Estas condições, estreitamente articuladas e interdependentes, são na prática materializadas na criação e manutenção de diferentes contributos para a consecução da defesa nacional e que vão desde a criação de um espírito coletivo de defesa, passando pelo reforço da resiliência nacional, o estabelecimento de alianças com países amigos e a formação cívica, até à sua corporização numa estrutura física de defesa, cuja base reside, mas não se esgota, nas forças armadas.

Para garantir o eficaz funcionamento e utilização do instrumento armado, através das forças armadas, é necessário dispor de um qualquer sistema de serviço militar sem o qual, naturalmente, não existe defesa nacional. O desconhecimento generalizado da sociedade e da classe política sobre as especificidades do serviço militar e das forças armadas decorre, na sua génese, da falta de entendimento desta ligação simples: para garantir a existência da nação, é essencial assegurar a defesa nacional; para assegurar a defesa nacional é necessário existirem forças armadas; para guarnecer as forças armadas, é imprescindível manter o serviço militar. As diversas maneiras de abordar estes fatores (nação – defesa nacional – forças armadas – serviço militar), conduzem à forma escolhida por cada país para desenhar e materializar o seu modelo de serviço militar.

Daqui resulta que, a fim de garantir a defesa nacional, tenham sido adotados ao longo dos tempos e em distintas geografias, diferentes modelos de serviço militar. De uma forma simplista poderemos dizer que os países optam por modelos apoiados em “centuriões” ou em “pretorianos”4, consoante as circunstâncias do momento (em especial a perceção da ameaça), a orientação política ou as convicções da generalidade dos seus cidadãos. Dos exércitos senhoriais (típicos da Idade Média), passando pelos exércitos nacionais (universalizados por Napoleão e intensivamente utilizados nos séculos XIX e XX), até aos exércitos profissionais (tendência mais recente, em especial no mundo ocidental), muitas variantes foram consideradas, incluindo algumas que poderemos designar de “inorgânicas” (bandos armados, milícias revolucionárias, exércitos de libertação, empresas de segurança, para só citar algumas das mais conhecidas).

Em função das exigências do momento, as entidades políticas optaram por selecionar o seu modelo de serviço militar a partir de um largo espetro, que vai desde o exército de massas (típico dos momentos de grandes conflitos generalizados), geralmente baseado na conscrição, até forças armadas altamente profissionais, de volume geralmente mais reduzido, mas dotadas de enormes recursos materiais, tecnológicos e financeiros. As primeiras, “os centuriões”, emanam da sociedade, tornando-se no “espelho da nação”; as segundas, “os pretorianos”, tendem a ter origem nas elites e, como tal, são geralmente muito próximas e cúmplices com o poder que lhe dá origem e legitimidade.

A questão do modelo de serviço militar mais adequado para Portugal não tem sido muito discutida nos últimos anos. Salvo alguns artigos de opinião esporádicos, na maior parte dos casos publicados em revista da especialidade5 (logo fora do escrutínio da maioria dos cidadãos), o assunto caiu praticamente no esquecimento nos últimos anos6. A inexistência desta discussão dá origem a que o assunto seja cada vez mais remetido para um plano secundário, cria preconceitos e estereótipos dificilmente contrariados e faz com que a população se sinta cada vez mais afastada da sua participação na defesa coletiva. Entre outras consequências, dá origem a que esta temática seja gradualmente empurrada para um pequeno grupo de especialistas, fazendo com que a generalidade da população seja facilmente influenciável por agendas mediáticas ou políticas de circunstância. Ora não existe verdadeiramente defesa nacional se não emanar dos cidadãos e não for por eles profundamente interiorizada.

Nos anos mais recentes tem-se vindo a criar um paradoxo que é dificilmente explicável. Por um lado, existe uma aversão crónica da maioria dos cidadãos aos assuntos da defesa, designadamente sobre a necessidade de um serviço militar mais abrangente; por outro, a opinião pública vê nas forças armadas um dos pilares do Estado e da Sociedade, reconhecendo geralmente o valor e a importância da sua existência (ver parágrafo 3.). Mesmo assim, algumas (poucas) opiniões favoráveis à manutenção de um modelo mais ambicioso de serviço militar7, ainda são possíveis de encontrar junto da designada “opinião pública”.

Mas o paradoxo mantém-se: como garantir os recursos humanos em número suficiente para a defesa nacional, se existe uma reduzida recetividade da população em aceitar formas mais abrangentes de serviço militar? E porque nunca foi acionada a cláusula da Lei do Serviço Militar (artigo 34.º da Lei n.º 174/99, de 21 de setembro), que prevê a convocação em caso de insuficiência de voluntários (ver igualmente o parágrafo 3.)? E outra questão ainda mais perturbadora: justifica-se a imposição de um modelo de serviço a uma parte dos cidadãos, apenas para satisfazer as necessidades das forças armadas? Ou o país deve criar as condições para que a defesa (e eventualmente outras áreas da ação do Estado) disponha dos recursos necessários, mas assegurando um tratamento equitativo para todos os cidadãos?

O fim do serviço militar obrigatório em Portugal resultou, em larga medida, da alteração do paradigma existente: fim da guerra de África e da guerra fria, tendência para profissionalização nos países ocidentais, alteração do quadro geopolítico e uma menor perceção das ameaças. A estas razões foram acrescidas outras bem mais triviais, focadas nos argumentos contra a continuidade do SMO: discutível necessidade, elevado custo, entrave ao percurso dos jovens, tratamento diferenciado dos cidadãos, entre outras. Assumido que foi que a responsabilidade pela garantia de manter a defesa nacional passava a ser assegurada por “profissionais”, o assunto saiu da agenda mediática e da atenção da generalidade dos cidadãos.

Voltamos à dialética, acima abordada, de conscritos versus profissionais (“centuriões” ou “pretorianos”), embora se considere esta uma ideia muito enviesada. Queremos um tipo de serviço que emane da sociedade e abranja a generalidade dos cidadãos ou, pelo contrário, pretendemos uma defesa suportada por um grupo restrito incluindo, eventualmente, cidadãos com ligações ténues (ou mesmo inexistentes) à nação?

A ideia, por vezes defendida, de que é possível colmatar as lacunas de meios humanos existentes nas forças armadas, com o recurso a imigrantes ou estrangeiros (eventualmente originários de países com maiores afinidades a Portugal)8, carece de uma análise mais profunda, a desenvolver noutro âmbito. A recente experiência dos “nuestros hermanos” neste sentido, permitiu a integração nas forças armadas de cidadãos estrangeiros residentes em Espanha, mas apenas os provenientes dos países latino-americanos (e da Guiné-Equatorial), impondo ainda outras restrições, nomeadamente um teto limite de admissões e outros condicionamentos em termos de quadros e especialidades. Em troca de uma prestação de serviço mínima de 6 anos, é-lhes atribuída a cidadania espanhola. Embora escasseiem os dados públicos sobre o assunto9, parece ser entendimento generalizado que esta opção não resolveu o problema da falta de efetivos, em especial nos anos de maior impacto da crise económica (2009 a 2015). Em contrapartida levantaram-se outras questões sociais, como por exemplo as críticas das organizações de emigrantes marroquinos, contra a discriminação daquela medida e o reduzido número de vagas disponíveis, em especial no período referido.

Outras perguntas se podem colocar nesta linha. Porque morre um cidadão em defesa da sua Pátria? Qual o grau de fidelidade de um expatriado à sociedade e aos cidadãos que lhe são completamente estranhos? Perguntas de resposta difícil, mas que merecem reflexão, como referido, a realizar futuramente noutro contexto.

Existem ainda outras questões, tantas vezes esquecidas, e que devem fazer parte da discussão. Assumindo a necessidade de encarar o serviço prestado ao país como geral e universal, como deverão ser equacionadas as questões de género? E da objeção de consciência? E dos cidadãos portadores de graus de incapacidade mais reduzidos? E da importância de aumentar a resiliência nacional, através de uma efetiva capacidade de mobilização de reservas? Muitas variáveis que tornam o tema ainda mais complexo, levando à necessidade de percorrer um caminho algo atribulado, na tentativa de encontrar as melhores opções para a sua resolução. E para tal é também importante conhecer a situação atual.

 

3. Em que pé é que estamos?

A relutância, algo generalizada na sociedade nacional, de discutir de forma aberta e sem preconceitos a questão do serviço militar, lembra vagamente a imagem da avestruz que mete a cabeça na areia, numa tentativa vã de afastar ou ignorar uma situação de perigo ou o desconhecido. Embora na realidade não esteja demonstrado de forma efetiva tal comportamento, a imagem é suficientemente elucidativa para ilustrar o caráter aleatório e algo desestruturado como esta discussão tem sido conduzida nos anos mais recentes. Somente o recente eclodir da guerra na Ucrânia veio alterar, embora apenas momentaneamente, esta situação. Algumas vozes vieram a público afirmar a necessidade de colocar o assunto na agenda política e mediática10. No entanto, estas mesmas vozes foram rapidamente relegadas para segundo plano, pelas afirmações dos mais altos responsáveis políticos11;12 sobre a inutilidade do modelo de serviço militar obrigatório na atualidade, mas sem propor alternativas à necessária e urgente discussão sobre um sistema eficaz e credível de serviço militar em Portugal.

Por outro lado, verifica-se uma aceitação generalizada da população relativamente à necessidade de prestação do serviço militar, embora seja variável a opinião quanto ao modelo a implementar. Segundo um recente inquérito de opinião13, cerca de 60% da população nacional concorda com o modelo de serviço militar voluntário atualmente em vigor, mas da mesma forma mais de 40% defende um modelo de serviço militar obrigatório, sendo que estes valores são mais expressivos nas faixas etárias acima dos 45 anos. Ora parece existir aqui uma contradição entre a opinião de um estrato significativo da população nacional e as declarações do poder político: ao contrário do expresso por estas últimas, a discussão sobre o tema deve ser considerada necessária, senão urgente, a partir do momento em que existe uma aceitação tão expressiva da mesma, por parte dos cidadãos.

Um outro aspeto que importa avaliar diz respeito à especificidade do modelo de serviço militar a adotar em função de se viver em tempo de paz, de crise ou de guerra. Embora não exista qualquer dúvida sobre a atual situação nacional, nestes termos, também é igualmente verdade que esta estratificação deve ser feita de forma muito cuidadosa. Desde logo porque sabemos, por experiência própria, que a passagem de uma situação de paz para uma situação de guerra se pode verificar quando menos se espera e num curto lapso temporal; por outro lado, mesmo vivendo numa situação de paz, o empenhamento de forças em teatros de operações internacionais, na satisfação de compromissos assumidos, o apoio às populações, em situações de exceção ou o envolvimento em inúmeras atividades de cooperação e outras, exige que as forças armadas se encontrem permanentemente aptas a desempenhar as suas missões, como em situação de guerra se encontrassem. Acresce ainda que as capacidades necessárias às forças armadas carecem de períodos alargados para o seu levantamento, o que exige uma permanente preocupação em manter elevados níveis de prontidão, sob pena de não serem capazes de cumprir as suas tarefas em situações de maior gravidade. Daí que a dialética entre um serviço militar de tempo de guerra versus de tempo de paz14, careça de um estudo aprofundado e não seja apenas o resultado de perceções, em nossa opinião profundamente erradas, que apontam para uma não absoluta necessidade de capacidades efetivas em tempo de paz.

Vejamos também, na atualidade, algumas outras questões mais concretas, relativas ao serviço militar. Qual o custo / benefício do serviço militar para o país? E para o cidadão individualmente considerado? A existência de um qualquer tipo de serviço militar tem sempre associado um retorno de investimento de quantificação complexa. Para o país as maiores vantagens são assegurar a sua capacidade de defesa, salvaguardando a sua independência e o controlo das suas decisões sobre o futuro, dotar a sociedade de mecanismos de resposta adequada a situações extremas (guerra, conflito, crises ou catástrofes) e reforçar o seu potencial nacional; os principais custos relacionam-se com a alocação dos meios necessários, designadamente humanos, materiais e financeiros e, em determinadas circunstâncias, os custos sociais decorrentes da reduzida aceitação do modelo existente, pela sociedade. Para o cidadão as maiores vantagens são a possibilidade de se valorizar como pessoa, o reforço da sua identidade como elemento integrante do todo coletivo e o contributo para o esforço conjunto de salvaguarda da nação e da sociedade. Os maiores inconvenientes relacionam-se com o sacrifício pessoal que é solicitado, por vezes da própria vida, sendo que para os cidadãos em serviço militar obrigatório, se poderá ainda referir os eventuais prejuízos em termos de perda de tempo, de alteração da rotina ou mesmo do adiamento de projetos pessoais.

Tendo presente os ensinamentos decorrentes da aplicação dos modelos de serviço militar mais recentes em Portugal, designadamente o serviço militar obrigatório que vigorou até 2004 e o modelo de serviço voluntário, de aplicação exclusiva a partir desta data, muito se poderá aprender. Desta forma devemos garantir a maximização dos benefícios e a minimização dos prejuízos acima mencionados, quer para o país, quer para os cidadãos. É nossa convicção que um modelo do tipo serviço nacional de cidadania, como sumariamente abordado no parágrafo seguinte, onde se integra uma componente relacionada com a defesa nacional, poderá atingir este desiderato.

Na atualidade a discussão em redor do serviço militar tem sido frequentemente reduzida ao problema dos efetivos, designadamente da sua falta crónica. Esta abordagem levanta-nos a questão de se serviço militar obrigatório existe apenas para garantir os efetivos necessários ou se a defesa do país deve ser assegurada, em todas as circunstâncias, recorrendo ao máximo potencial nacional disponível. É, pois, necessário evitar cair numa equação de resultado indeterminado, em que prevalece a ideia de que o SMO é uma panaceia, que apenas serve para alimentar uma estrutura obsoleta e desnecessária, quando na realidade o seu objetivo é exatamente o oposto: garantir a integridade e a independência nacional e a salvaguarda dos cidadãos. Mas mesmo nos anos mais recentes, tal como anteriormente referido, a possibilidade de convocatória dos cidadãos para colmatar as lacunas em efetivos existentes, nunca foi exercida, pelo que também aqui se constata a falácia do sistema existente.

No atual modelo prevaleceu ainda um resquício do anterior SMO: o dia da Defesa Nacional (artigo 11º da Lei do Serviço Militar). Esta é uma das últimas (para não dizer a derradeira) obrigações militares dos cidadãos nacionais. Apesar de se situar muito longe, em termos de penosidade, do modelo anterior, e de ser geralmente bem aceite pelos jovens que o frequentam, ainda subsiste alguma relutância de participação no mesmo, nomeadamente manifestada através do elevado número de objetores de consciência15. Daqui se conclui que esta postura cidadã não está ligada à especificidade do tipo de serviço militar em si mesmo, mas muito mais ao princípio da renúncia de participação em qualquer atividade relacionada com a defesa nacional. Uma vez mais se levanta a questão da necessidade de colocarmos todos os cidadãos numa situação de igualdade de tratamento, criando alternativas credíveis que permitam o exercício deste direito, mas sem excluir a participação em tarefas equivalentes em proveito da sociedade e dos restantes concidadãos.

Ainda no que se refere à atual realidade nacional, importa considerar a escassa reserva de mobilização, que resulta da natureza do serviço profissional. Portugal dispõe apenas de poucos milhares de cidadãos aptos a desempenhar funções na área da defesa, numa situação de absoluta necessidade, na medida em que o reduzido volume de militares que transitam anualmente para esta situação, não permite dispor deste instrumento de forma eficaz. Acresce ainda a iniquidade do critério para uma hipotética ativação da reserva de mobilização, na medida em que os cidadãos mais penalizados são também aqueles que já serviram anteriormente o país, de forma abnegada e voluntária.

Resta ainda mencionar um aspeto normalmente pouco abordado e que se refere à tradição nacional de resistência, em situações de crise ou guerra, em especial as que afetam diretamente o território e as populações. Foi assim desde Viriato, se podemos usar o seu caso como pertencendo aos primórdios da nacionalidade; mas também foi assim durante os heroicos atos da população perante as invasões francesas do início do século XIX; e era assim que se preparavam os quadros do Exército Português nos finais do século XX, em Lamego, imbuídos do espírito de resistência, garante da continuação da luta em caso de ameaça ou invasão do território nacional por um inimigo com poder militar significativamente maior do que aquele ao nosso dispor. O espírito de resistência está, assim, gravado na nossa identidade coletiva mais profunda. O cidadão português defende o solo onde nasceu, mesmo que para isso tenha de atuar na clandestinidade. E se tiver treino militar prévio, tanto melhor.

A forma de prestação do serviço militar está a ser revista, em especial nos países europeus, na sequência do eclodir da guerra na Ucrânia16. Também outros países ocidentais estão a seguir esta via. Para além dos estados que nunca abandonaram o modelo de serviço militar obrigatório (mesmo os que apenas o mantiveram em teoria, a aplicar somente em caso de falta de voluntários), como sejam os casos da Dinamarca, Estónia, Finlândia, Chipre, Grécia, Áustria e Suíça, outros países recuperaram ou estão a considerar essa possibilidade, nos últimos anos ou meses: Ucrânia (2014), Lituânia e Noruega (2015), Suécia (2017), França (2019), Letónia, Países Baixos e Roménia (2022). É então altura de perguntar: que modelo de serviço militar queremos para Portugal? Sem pretender esgotar a discussão, aponta-se uma ideia que procura fazer a síntese do que foi acima referido.

 

4. Esboço de um modelo para o serviço militar em Portugal

Importa estudar, desenvolver e implementar em Portugal um modelo de serviço militar que sirva os interesses nacionais e elimine (ou pelo menos reduza significativamente) as vulnerabilidades anteriormente identificadas. O objetivo primordial de garantir a defesa nacional, na medida em que é maioritariamente aceite pelos cidadãos, não carece de alteração ou de uma profunda discussão. O que necessita de aperfeiçoamento é o modelo da estrutura necessária para atingir aquele fim. Como anteriormente referido, as variáveis a considerar são inúmeras. No final, a questão essencial a responder centra-se na opção entre forças que emanem da globalidade da nação ou, em alternativa, que se organizam em estruturas altamente profissionais, mais reduzidas e elitistas. Acresce que o fator quantidade não é despiciendo, como o demonstram todos os conflitos recentes, incluindo o atualmente em curso na Ucrânia, em especial quando está em causa a independência nacional. Desta forma, importa também considerar um modelo em que o necessário equilíbrio entre um “exército de massas” e um “exército tecnológico” seja garantido.

Para se atingir uma solução coerente e eficaz, consideramos que o serviço militar deve ser entendido no âmbito mais vasto de um Serviço Nacional de Cidadania (SNC)17, geral e universal. Este modelo procura aglutinar os aspetos essenciais que resultam das vantagens de os cidadãos participarem de forma ativa na vida comunitária, enquanto diminui as eventuais vulnerabilidades associadas a um serviço em prol da sociedade. O SNC constitui-se como um modelo de reforço do potencial nacional, através do desenvolvimento das competências dos cidadãos, do fortalecimento da sua ligação à sociedade e da satisfação de necessidades específicas do país, em áreas de interesse coletivo. Pressupõe a implementação de um período de serviço geral e universal, em diferentes áreas da ação do Estado e do reforço das capacidades nacionais, designadamente no âmbito da segurança e defesa, da saúde e apoio social, da educação, cultura ou do poder local. Desta forma é possível alargar o âmbito do serviço prestado ao país, permitindo uma diversidade de opções que procuram ir ao encontro dos interesses individuais, mas sem deixar de salvaguardar os objetivos pretendidos.

O SNC compreende um modelo de serviço público, a ser prestado pelos jovens cidadãos na fase de transição da adolescência para a idade adulta, de duração exata de um ano, integrado no sistema de ensino nacional e que permitirá colmatar muitas das lacunas apontadas ao modelo de SMO. Na medida em que abrange todos os cidadãos de uma mesma faixa etária, independentemente do género, estrato social, educação, convicções religiosas ou políticas, cumpre o critério de justiça social. Porque se articula com o sistema de ensino, garante a valorização do cidadão e a melhoria das suas competências, sem se constituir como uma interrupção do seu percurso escolar ou profissional. Visto que permite, dentro de regras estabelecidas, a opção entre diferentes áreas de interesse, evita obrigar os cidadãos a desempenhar tarefas que não estejam de acordo com as suas convicções, nomeadamente em termos de objeção de consciência. Dado que o país deve também reconhecer o seu esforço, é garantido um conjunto de incentivos que abrangem, entre outros aspetos, o alojamento, a alimentação, a remuneração, transportes, férias, seguros, benefícios fiscais e a cobertura da segurança social. Uma breve análise ao impacto financeiro desta medida pode ser vista no artigo acima referenciado.

Em termos práticos, o SNC deverá ocorrer em substituição do atual 12º ano do sistema de ensino, compreendendo uma fase de aprendizagem, uma fase de estágio e uma fase de utilização. Para além da sua articulação com o percurso académico, permitirá um contacto próximo com a realidade da vida prática, em diferentes áreas de interesse, garantindo aos jovens um significativo alargamento de horizontes, tendo em vista o enriquecimento pessoal, que lhes irá abrir novas opções para uma mais eficaz entrada na idade adulta. Na medida em que não permitirá qualquer tipo de discriminação, abrange a generalidade dos cidadãos, incluindo objetores de consciência e pessoas portadoras de deficiência. É igualmente uma forma de criar oportunidades para o desenvolvimento futuro, garantir um maior conhecimento da realidade das organizações e melhorar muitos aspetos da vida social. O serviço militar, como uma das modalidades no âmbito do SNC e a par destas, constitui-se como uma enorme mais-valia, dado que será desempenhado numa perspetiva de valorização académica e técnica, resultando de uma escolha voluntária de entre as opções possíveis e mantendo o percurso escolar ou profissional intacto. Garante ainda um enorme reforço do potencial nacional, dado que permite ao país dispor de um efetivo muito maior que o atual, que resulta da sucessiva passagem destes jovens pelo SNC, na medida em que serão dotados com as competências mais necessárias para as situações de crise ou de guerra.

Para que este modelo tenha sucesso, é necessário assegurar a satisfação de alguns pré-requisitos. Em primeiro lugar, é essencial que o SNC tenha carácter geral e universal, não deixando de fora qualquer elemento elegível para a sua frequência. Este é um aspeto de justiça social básica, de igualdade de oportunidades e de tratamento entre todos os participantes. Desta forma, é eliminada uma das maiores vulnerabilidades identificadas no SMO em Portugal, em especial nos últimos anos da sua existência, que resultava de apenas uma parte do contingente ser chamado às fileiras. Em segundo lugar, requer o envolvimento ativo dos decisores e dos influenciadores de opinião, sem o qual não é possível garantir as condições para a sua eficaz implementação. Se por um lado da ação política se requer análise, decisão e alocação de recursos relativamente ao modelo a implementar, por outro é essencial que todos os que possam divulgar e apoiar a ideia se envolvam na sua difusão e explicação à generalidade da população. Por último, decorrente do anterior, exige-se que seja garantida uma perceção alargada da sua utilidade, antes da implementação efetiva do modelo. É necessário criar mecanismos de monitorização e controlo, de divulgação e de operacionalização do conceito, ao mesmo tempo que é essencial garantir o apoio da generalidade da sociedade, em particular dos participantes diretos, aspeto que apenas se conseguirá com uma informação clara e generalizada, que permita a adesão alargada das pessoas ao modelo.

A aceitabilidade do serviço militar pela sociedade e pela classe política, como antes referido, tem variado ao longo do tempo e das circunstâncias. Um modelo mais abrangente, que não coloque o ónus nem no “militar”, e muito menos no “obrigatório”, não só deverá ter uma aceitação mais fácil e generalizada, mas especialmente possibilita explorar potencialidades que permitirão trazer benefícios significativos para os cidadãos e para o país. E neste aspeto a inovação e a criatividade poderão colocar Portugal na vanguarda do mundo ocidental. São as ideias inovadoras, quase revolucionárias, que marcam o avanço da sociedade e estas devem merecer a nossa atenção, pelo menos ao nível da sua discussão e análise, sem juízos pré-estabelecidos, dogmas ou baias de qualquer natureza. São exemplos recentes destes modelos, apenas para referir a área da educação, o Processo de Bolonha e o Programa Erasmus. Quem imaginaria, há 30 anos, que seria possível harmonizar o sistema de ensino universitário europeu ou possibilitar a troca de estudantes entre universidades de diferentes países?

Para a implementação do modelo de SNC é necessário alocar um conjunto significativo de recursos, nomeadamente humanos, financeiros e materiais. Esta análise carece de um estudo mais aprofundado, mas é possível traçar algumas linhas de orientação iniciais, que nos permitirão uma visão geral das necessidades a levantar. No que se refere aos recursos humanos, consideramos que é essencial recorrer, em primeiro lugar, às estruturas já existentes. Seja na área da segurança e defesa, da educação, da saúde ou do poder local, existem elementos disponíveis para assegurar o funcionamento do modelo. Naturalmente será necessária uma estreita articulação com o sistema de ensino (com as escolas, os centros de formação e com outras entidades que possam apoiar o desenvolvimento de competências nos participantes do SNC), a reafectação de meios e a maximização do potencial existente, mas o incremento de recursos humanos deverá ser, comparativamente, de reduzido volume. No que diz respeito aos recursos materiais, é necessário considerar um investimento inicial em equipamentos, infraestruturas e materiais, mas que deve ser amortizado ao longo de um período alargado. Uma vez mais importa aproveitar o que já existe, evitando duplicações desnecessárias, inserindo os participantes nos respetivos órgãos envolvidos e não criando demasiadas novas estruturas, para se atingir o objetivo da implementação do modelo. Por último, no que se refere aos recursos financeiros, é natural que seja necessário garantir a cobertura de custos relativos a investimentos e à manutenção do sistema, mas estes custos devem ser sempre considerados em relação ao retorno obtido, muito de uma forma imaterial, consubstanciado na valorização dos cidadãos, da sua melhor integração na sociedade e nos benefícios para o aumento do potencial nacional.

De um modo sumário poderemos identificar, à partida, um conjunto de vantagens, de limitações e também de alguns riscos associados à implementação de um modelo onde, o serviço militar integrado no âmbito mais vasto de um SNC, possa ser considerado como uma enorme mais-valia nacional.

No âmbito dos fatores favoráveis identificamos, em primeiro lugar, a enorme valorização dos cidadãos, permitindo-lhes uma entrada na vida adulta mais informada, mais experiente e mais bem preparada para os desafios futuros. Para além disso, facilitará a sua inserção no todo coletivo, garantindo uma maior interação social e o reconhecimento do valor da pertença a algo maior do que o seu círculo familiar ou de amizades. Por fim, apenas referindo os aspetos positivos mais relevantes, permite um incremento do potencial nacional, não só através dos ativos diretamente envolvidos no SNC, mas através das reservas que irão sendo constituídas a partir dos contingentes que o integraram.

Como limitações ao modelo, para as quais importa desenvolver medidas para a sua mitigação, identificamos em primeiro lugar a complexidade relativa à sua criação, implementação e gestão de longo prazo. Este aspeto requer uma abordagem alargada e transversal a todos os envolvidos, desde o nível político, passando pelos influenciadores de opinião, os gestores e responsáveis operacionais pela implementação do modelo e terminando nos beneficiários, isto é, os cidadãos participantes. Um outro aspeto que importa acautelar diz respeito aos custos (especialmente os iniciais) e à alocação de recursos, associados ao modelo. Embora se considere que a reafectação seja desejável e possível, é uma questão que merece especial atenção, pois a criação do SNC não deve ser condicionada por questões financeiras ou materiais, existindo vontade e capacidade, quando estão em causa valores e objetivos do maior interesse nacional.

Importa ainda considerar os riscos associados a esta ideia. Desde logo a sua aceitabilidade pela generalidade da população; se esta não for garantida, antes da sua implementação, estará logo à partida condenada ao insucesso. Daí que todo o esforço que seja colocado na adesão ao modelo, quer através da divulgação e informação transparente, quer através da discussão pública alargada, com vista ao seu aperfeiçoamento, nunca será demasiado. Outro aspeto a considerar, neste âmbito, refere-se à necessidade de um estreito acompanhamento e controlo, não só na fase inicial de concetualização e implementação, mas também na sua manutenção ao longo dos anos. É essencial criar mecanismos de supervisão, com capacidade de intervenção para a correção de desvios ou inconformidades, permitindo que o modelo se desenvolva de forma dinâmica, equilibrada, ajustada às necessidades e capaz de corrigir as vulnerabilidades detetadas.

Consideramos assim que é do maior interesse nacional discutir a questão do serviço militar, em nosso entender através de uma abordagem abrangente, que permita potenciar as mais valias de um serviço nacional de caráter transversal, valorizando os cidadãos e o país, evitando os erros do passado e sendo pioneiro no desenvolvimento de um modelo que possa ter uma aceitação generalizada pela sociedade e, quiçá, por países aliados e parceiros.

 

5. Conclusões

O serviço militar obrigatório é um tema cuja discussão provoca sempre muitas paixões, a nível nacional. No entanto, é muito importante que a mesma seja feita de forma aberta, profunda e esclarecida, de modo a envolver a generalidade dos cidadãos e a salvaguardar o interesse nacional. Se nos anos mais recentes o assunto quase caiu no esquecimento, o início da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022, veio fazer renascer a importância do tema.

São conhecidas as razões que levaram ao fim do SMO, mas passados quase 20 anos a realidade nacional e internacional mudou. O sistema militar de base voluntária implementado em Portugal apresenta algumas vulnerabilidades importantes, das quais a mais significativa se relaciona com uma crónica falta de efetivos. A eficácia da defesa nacional está assim condicionada por limitações de natureza complexa, em que urge retomar a análise séria e a discussão alargada sobre esta temática. É, pois, natural que se oriente o estudo deste assunto para novas ideias e outros modelos de serviço militar, tendo como grandes objetivos de fundo a valorização dos cidadãos e o reforço do potencial nacional.

Considerando que nunca poderá ser posta em causa a necessidade da existência de mecanismos e estruturas que garantam a defesa nacional, importa então avaliar que tipo de serviço militar melhor satisfaz as necessidades atuais, de entre um espetro de opções que vão desde os modelos baseados em “centuriões” (grande volume de meios, de base generalizada aos cidadãos), até aos apoiados em “pretorianos” (de cariz mais profissional, reduzido em efetivos e elitista). Qualquer que seja a opção, importa garantir o envolvimento da sociedade, pois a defesa emana desta e não pode subsistir se não existir uma verdadeira compreensão e aceitação da sua necessidade.

A crónica falta de efetivos pode condicionar a escolha do modelo de serviço militar a ser adotado. Também a possibilidade de recrutamento de emigrantes ou estrangeiros, deve ser analisada nesta discussão. Mas muitas outras variáveis não devem ser esquecidas, tais como as relativas à objeção de consciência, às questões de género ou ao envolvimento de cidadãos portadores de deficiência. É assim de toda a conveniência alargar o leque de opções e procurar soluções para o serviço militar, que vão muito para além da questão elementar de “obrigatório” versus “profissional”.

A simples colocação da discussão sobre o melhor modelo de serviço militar na atualidade à atenção da sociedade e dos decisores, constitui-se como um aspeto da maior importância. Os mais recentes inquéritos de opinião, mostram que existe recetividade para rever o conceito atual de serviço militar. Na medida em que as forças armadas devem estar preparadas para o cumprimento das suas missões desde tempo de paz, importa encontrar formas de equilibrar as vantagens e os custos, para os cidadãos e para a sociedade, através de um modelo abrangente, aceitável e eficaz. É neste contexto que devem ser ponderados os custos e benefícios de diferentes modalidades de ação.

A avaliação de um modelo de serviço militar mais abrangente, deve também ser considerada em termos do retorno do investimento. A valorização pessoal, a integração social, o aumento do poder nacional e a disponibilidade de reservas significativas, para fazer face a situações de emergência, de crise ou de guerra, pesam para o lado dos benefícios. Os custos que resultam da alocação dos recursos, a eventual relutância de aceitação do modelo pela sociedade e os sacrifícios pessoais, listam-se do lado das desvantagens.

O modelo baseado num serviço nacional de cidadania, aqui proposto, procura reforçar os pontos fortes dos anteriores sistemas, enquanto pretende reduzir as suas maiores vulnerabilidades. Entende-se adequado considerar o serviço militar como parte de um sistema, em que várias áreas da atuação do Estado e da Sociedade possam ser consideradas: segurança e defesa, saúde e apoio social, educação e cultura, poder local, entre outras. O ponto focal desta ideia é a valorização dos cidadãos, garantindo que a sua participação geral e universal num serviço que cobre áreas diversas, articulado com o sistema de ensino, resulta em mais-valias significativas para o próprio e para o país.

É necessário garantir que o desenvolvimento e a implementação deste modelo não são afetados por ideias pré-concebidas ou por interesses de pequenos grupos. O envolvimento dos decisores políticos e dos influenciadores de opinião, a informação séria e generalizada, devem permitir uma perceção favorável, que conduza à sua aceitação alargada. Os custos e obstáculos que importa acautelar, devem ser cuidadosamente avaliados, procurando rentabilizar as estruturas e recursos já existentes, de forma inovadora, sistemática e criativa. Portugal pode estar na vanguarda de um modelo que, tudo indica, poderá a vir a ser adotado por muitos países ocidentais, a médio prazo.

“Si vis pacem, para bellum” (isto é, “se queres a paz, prepara-te para a guerra”). Esta frase, normalmente atribuída ao autor romano do quarto ou quinto século, Flávio Vegécio, encerra na essência das palavras a necessidade de dotar Portugal de um eficaz sistema de serviço militar. Mais recentemente, as palavras do General americano Norman Schwarzkopf, grande estratega da Guerra do Golfo, que iniciam este artigo, traduzem de uma forma mais consistente a ideia da necessidade de nos preparamos antecipadamente para o mais que certo (só não sabemos quando, nem onde) próximo conflito.

Os investimentos e as discussões feitas em torno de modelos que não respondem eficazmente às necessidades, carecem de revisão. A proposta aqui apresentada procura apontar caminhos que permitam ultrapassar as maiores dificuldades atualmente identificadas no modelo de serviço militar em utilização, através do envolvimento dos cidadãos, garantindo a sua valorização, a salvaguarda do interesse nacional e a garantia de uma defesa nacional mais forte e em que a nação se reveja com orgulho.

 

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* Um resumo deste texto foi apresentado na Conferência “Reflexões sobre o Serviço Militar Obrigatório”, realizada na Universidade Lusófona, em 11 de outubro de 2023.

1 Discurso ao grupo de graduados da Academia Naval americana, em 1991.

2 https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2017/03/14/regresso-do-servico-militar-obrigatorio-esta-fora-de-questao-para-o-governo/78376/ (consultado em 9 de novembro de 2022).

3 Constituição da República Portuguesa, art.º 276, n.º 1.

4 Recorrendo à imagem descrita pelo General Pezarat Correia, no seu livro “Centuriões ou Pretorianos”, Edições “O Jornal”, Lisboa, 1988.

5 Vide, por exemplo, “O Serviço Militar em Portugal – o debate necessário”, disponível em: https://www.revistamilitar.pt/artigo/1295 (consultado em 10 de novembro de 2022).

6 https://observador.pt/opiniao/o-servico-militar-em-portugal-o-debate-que-nunca-aconteceu/ (consultado em 10 de novembro de 2022).

7 Vide, por exemplo: https://expresso.pt/opiniao/opiniao_henrique_monteiro/2016-08-12-Comba
ter-fogos--A-serio- (consultado em 18 de novembro de 2022).

8 Ver, sobre este assunto: https://www.dn.pt/sociedade/servico-militar-generais-admitem-recrutamento-de-estrangeiros-14881852.html (consultado em 27 de novembro de 2022).

9 A propósito do tema da integração de estrangeiros nas forças armadas espanholas ver: https://revistes.uab.cat/rubrica/article/view/v8-n15-frieyro/173-pdf-es (consultado em 4 de dezembro de 2022).

10Ver, por exemplo: https://observador.pt/2022/03/16/conflito-na-ucrania-pode-antecipar-discussao-sobre-servico-militar-obrigatorio-assume-o-general-valenca-pinto/ (consultado em 27 de novembro de 2022).

13https://www.dn.pt/sociedade/maioria-concorda-com-servico-militar-voluntario-mas-40-preferia-obrigatoriedade-13914206.html (consultado em 10 de novembro de 2022).

14"O Serviço Militar Obrigatório. Perspetivas futuras", disponível em: https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/24551/1/TII%20-%20COR%20CAV%20Silva%20Ferreira.pdf (consultado em 9 de novembro de 2022).

17Para ver o assunto em detalhe, consultar o artigo com o mesmo nome, publicado na Revista Segurança e Defesa n.º 43, dezembro de 2021, Diário de Bordo, Lisboa.

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Brigadeiro-general

Henrique José Pereira dos Santos

Entre outras, desempenhou funções como Observador Militar das Nações Unidas (UNPROFOR), Professor do Instituto de Altos Estudos Militares, Diretor do Centro de Operações do Quartel-General do NATO Rapid Deployable Corps-Spain, Comandante da Escola Prática de Artilharia, Diretor do Centro de Informações e Segurança Militares e Diretor de Serviços de Pessoal do Comando de Pessoal.

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by COM Armando Dias Correia