Nº 2667 - Abril de 2024
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
IV Centenário do início das invasões holandesas no Brasil. 1.ª Batalha de São Salvador (Maio de 1624)
Coronel
Cláudio Ricardo Hehl Forjaz

Este ano de 2024, mais precisamente no dia 8 de maio, comemora-se o início das invasões holandesas ao Brasil, com o ataque e conquista de São Salvador (como era conhecida Salvador), então capital da colônia luso-americana, ocorrido há quatro séculos atrás.

Também conhecida como Guerra do Brasil ou Guerra do Açúcar, este conflito marcaria profundamente o Brasil, em especial pelo despertar do sentimento nativista, além de consolidar a presença portuguesa em terras brasileiras e, a partir daí, o prosseguimento da sua expansão sem grandes empecilhos até a atual consolidação de nossas terras, fronteiras e cultura.

Este evento, que na realidade foi um desdobramento dos acontecimentos envolvendo o conflito entre a Coroa Ibérica e a República das Províncias Unidas (nascedouro dos Países Baixos), a chamada Guerra dos Oitenta Anos, iniciada em 1568, entre neerlandeses e a Dinastia dos Habsburgos. Este conflito teria desdobramentos importantes, como a Guerra Luso-holandesa, de 1595 a 1663, e jogaria o Brasil em um caldeirão de episódios políticos, econômicos, sociais e militares.

As Invasões Holandesas, ápice da campanha atlântica da Guerra Luso-holandesa, teria como palco as terras luso-americanas e ocorreriam entre 1624 e 1654, divididas em 4 fases: a invasão da Bahia (1624 a 1625), a conquista do Nordeste (1630 a 1636), o período Nassoviano (1637 a 1644) e a Insurreição Pernambucana (1645 a 1654).

Marcadas por derrotas e vitórias, as invasões holandesas transformariam a história do Brasil e de Portugal para sempre.

 

1. O Estado do Brasil e a Capitania da Bahia de Todos os Santos

Quando ocorreu a invasão levada a cabo por uma frota e por mercenários da Companhia das Índias Ocidentais (WIC), a colônia lusitana na América, ainda conhecida como Terra de Santa Cruz, estava dividida em dois Estados: o do Maranhão, ao norte, e o do Brasil, no centro-sul.

Figura 1 – O mapa identifica o Estado do Maranhão e o do Brasil. Ambos formavam a Terra de Santa Cruz, única colônia luso-americana até então. Somente em 1680 é que os portugueses iriam fundar a Colônia de Sacramento, sua Segunda e última colônia no Novo Mundo.

Fonte: Castro (1986)

 

Estas duas porções da colônia luso-americana eram subdivididas em 10 capitanias hereditárias (particulares) e 8 capitanias reais (pertencentes à Coroa). Grande parte do território tropical era ainda desconhecido, especialmente os sertões, visitado somente pelos primeiros intrépidos bandeirantes.

De São Vicente ao Amazonas a população se fixara, com raras exceções, na orla marítima. Pouco mais de um século do descobrimento e menos de cem anos do início da colonização, Santa Cruz desenvolvia uma atividade açucareira de renome internacional. Esta era baseada na monocultura canavieira, realizada em latifúndios escravagistas e paternalistas. Cerca de 300 engenhos estavam espalhados por todo o Brasil, metade deles nas redondezas de Salvador e Recife.

Figura 2 – O mapa mostra o Estado do Brasil. Com capital em Salvador, era formado pelas as Capitanias Hereditárias de Itamaracá, Pernambuco, Recôncavo, Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, São Tomé, São Vicente, Santo Amaro e Santana (em coloração mais clara). As Capitanias Reais eram as do Rio Grande, Paraíba, Bahia de Todos os Santos e Rio de Janeiro (em coloração mais escura). O Estado do Maranhão, cuja capital era São Luís, criado em 1621, só possuía três capitanias, todas elas reais: as do Maranhão (1ª e 2ª) e a do Ceará.

Fonte: Brasil (1969)

 

A agropecuária de subsistência era alicerçada num misto da cultura indígena da mandioca e do milho e nas frutas e pecuária trazidos pelo colono. Plantava-se também fumo, anil, algodão, extraía-se pau-brasil e drogas do sertão, na Amazônia. O couro começava a ter seu lugar ao sol, com a pecuária dominando os espaços vazio do interior. O garimpo do ouro era um sonho que começava a se tornar realidade nos rincões das terras mais ao centro e sul da colônia luso-brasileira.

No ano da primeira invasão flamenga, 1624, o Estado do Brasil era governado por Diogo de Mendonça Furtado, o 12º Governador-Geral do Brasil, com notáveis serviços prestados nas Índias (MENEZES, 1922, p. 137). Ele já a muito vinham se precavendo das investidas estrangeiras, priorizando os trabalhos em prol da melhoria e ampliação do escudo defensivo da costa brasileira. Porém como os meios a sua disposição eram parcos, pouco pode fazer para reverter a situação de debilidade militar da Colônia.

Com relação às defesas e aos militares que aqui haviam sido estabelecidos, pouca coisa pôde-se acrescentar, uma vez que foram relegados a um segundo plano pelas autoridades de Madri, mais interessadas, logicamente, em manter o riquíssimo fluxo de metais extraídos das profundezas do solo hispano-americano. Era ali que estavam as armas ibéricas guarnecendo e guardando o tesouro usurpado de suas colônias a suas rotas de comunicação.

O olho da cobiça estrangeira se estendeu sobre esta região parcamente defendida. Seu escudo de defesa era baseado em poucas e distantes fortificações. Os engenhos eram capazes de apenas fazer face às lanças e flechas dos selvagens. Mesmo Salvador e Recife, as localidades de maior quilate, não resistiriam a uma poderosa força invasora. Tinham condições apenas de se opor precariamente a ataques de corsários.

Antes de nos aprofundarmos na primeira fase da Guerra do Brasil, faremos um preâmbulo na geografia e no histórico da nominada Capitania real. Infelizmente, como os dados da época são escassos, procuraremos apresentar as características geográficas atuais, visto que há pouca diferença das da época.

O conflito que se seguiria, pela maioria chamada de Domínio Holandês no Brasil, e por mim, aproveitando à interpretação de Duarte Coelho de Albuquerque, donatário pernambucano na época, combatente e escritor de parte dos combates, Guerra do Brasil, marcaria uma época de relevo ímpar na História do Brasil, não somente sob o ponto de vista militar, devido à proporção dos efetivos mobilizados, da natureza das lutas travadas ou do valor e da dedicação dos luso-brasileiros, mas pelas conseqüências que se fez sentir no amalgamento de raças e de idéias. Delas surgiria pujante um sentimento capaz de corporificar os objetivos permanentes de uma nação que se formava e que estenderia seus domínios do Oiapoque ao Chuí.

 

2. A invasão da Bahia

Da tempestade bélica que açoitava as terras de El-Rei e suas possessões herdadas, um furacão veio a castigar o Império Ultramarino Português. Como um maremoto, os holandeses apossaram-se das feitorias litorâneas orientais e estavam prestes a fazer o mesmo com as ocidentais. A colônia luso-americana se tornaria a mais nova trincheira desta guerra européia e o ponto de impacto seria o Nordeste brasileiro.

Politicamente iam surgindo os estados nacionais e a economia mercantilista regia uma nova vida cada vez mais marcada pelas inovações tecnológicas e pela expansão de impérios. Para dar respaldo militar a tudo isso, novos pensadores como Maquiavel, Gustavo Adolfo, Crommell, Condé, Spinola e outros inovavam a estratégia e a tática na Europa, com reflexos no restante do planeta.

Nessa época as oportunidades convergiam para a América, um continente em expansão. As riquezas descobertas no Novo Mundo eram infinitamente superiores às do mundo até então conhecido. Espanha e Portugal ainda eram as potências mundiais e as nações em ascensão, como Inglaterra e França, buscavam se estabelecer no novo continente. Mas não estavam sozinhas.

 

2.1. Os holandeses realizam um levantamento estratégico do Brasil

A Holanda, que na época era chamada por seus habitantes de República das Províncias Unidas, e pelos espanhóis de Países Baixos Rebeldes, se incluía neste segundo grupo, que contrariando os acordos da Igreja inscritos no Tratado de Tordesilhas, zarpava para o oeste em busca de fortuna, quer pela pirataria, quer pela conquista de novas terras que seriam usadas para instalar seu excedente populacional e estabelecer novos mercados1.

Para melhor compreender a Guerra do Brasil é indispensável nos transportarmos para o período da União Ibérica, onde Portugal era governado pelo rei castelhano, que no caso era Felipe IV. Afora o conflito de interesses, a personalidade dos dirigentes, as intrigas políticas e o jogo diplomático tão comum ao cenário mundial e que servem de pano de fundo de qualquer hostilidade, a Espanha era a maior potência européia, mas esta situação era contestada.

Figura 3 – Os Países Baixos, com destaque para a República das Províncias Unidas, nesse mapa mundi de Abrahamus Ortelius, de 1570.

Fonte: Adonias (1999)

 

Com responsabilidade sobre diversas regiões e diversos povos que iam desde os Países Baixos, onde dominava os “Obedientes” (atual Bélgica) e os “Revoltosos” (atual Holanda), até a Itália, onde, no norte, exercia sua influência na Lombardia, e no sul, na Sicília e em Nápoles, certamente Portugal não aparecia no elenco de suas prioridades, muito menos as possessões ultramarinas lusitanas na Ásia, na África e na América.

Muitos historiadores afirmam que as invasões holandesas no Brasil constituem num episódio colonial e remoto da confrontação hispano-neerlandesa que durou oitenta anos (1568 a 1648), marcado por um primeiro período com uma guerra de independência da República das Províncias Unidas, seguida por uma trégua (1609 a 1621) e finalmente uma contenda bélica entre estados, também potências coloniais, que terminaria com a vitória batava e a assinatura do Tratado de Münster. Se estas invasões não tiveram significado para os espanhóis ou para os holandeses, para nós, brasileiros, ela teria uma importância capital no futuro da Nação que se formava.

Como vimos, a República das Províncias Unidas havia conseguido, em 1609, uma trégua de doze anos com Felipe III. Esta paz foi ao mesmo tempo providencial para os batavos e desastrosa para os castelhanos, visto que equiparava a Espanha, então maior potência do mundo, às Províncias Unidas, um grupo de sete Estados rebeldes ainda brigando pela independência. Para agravar, o documento era pouco específico com relação às ações fora da Europa, cláusula que os neerlandeses sabiamente se beneficiaram, conquistando muitos entrepostos lusos no Oriente.

Figura 4 – Em 1621, um novo monarca sentou-se no trono de Madri. Era Felipe IV de Castela e III de Portugal. Rei vaidoso, logo se auto-proclamou de “O Grande”, além de permanecer com o título de “Rei Católico”. Confiante no poder de suas forças e no de seu vastíssimo império, subestimou seus adversários, que na época não eram poucos.

Fonte: Grandes Personagens da Nossa História (1972)

 

Prosseguindo na trilha do bem sucedido ataque às feitorias lusitanas nas Índias Orientais, alguns comerciantes neerlandeses passaram a vislumbrar a hipótese de repetir os feitos agora nas Índias Ocidentais. Aproveitando o momento em que os interesses neerlandeses se voltavam para a centralização de investimentos no Atlântico, empresários das Províncias Unidas se reuniram em 1621 e fundaram a Companhia das Índias Ocidentais (West Indische Compagnie ou, como era mais conhecida, WIC).

O início foi difícil para a nova companhia comercial. Um ano depois de sua instituição, ela não conseguira nem um quinto de seu capital previsto. Porém, estando em guerra de libertação contra os hispânicos, ações que redundassem em prejuízo para os hispânicos sempre eram bem vindas nas Províncias Unidas. Uma ofensiva contra o império ultramarino ibérico possibilitava aos flamengos a abertura de novas frentes de combate onde aliariam a economia à política.

O aval do governo da citada república veio com a concessão do monopólio do sal brasileiro a essa companhia batava. Pelo acordo com os dirigentes neerlandeses, a WIC poderia explorar também a costa americana e a africana do Atlântico em todos os negócios, particularmente a navegação comercial e a de corso, o tráfico de escravos e as atividades comerciais já em curso como o açúcar, bem como ela estava autorizada a colonizar áreas na América e na África e ali construir fortificações, nomear funcionários, guarnecê-las com tropas e até cunhar moedas.

Foi neste ambiente de hostilidade aos ibéricos e de uma série de episódios que corroboravam com a idéia de debilidade da colônia luso-americana que se reuniram os conselheiros da Companhia das Índias Ocidentais, a fim de traçar o novo rumo de suas atividades.

Figura 5 – Constituída a diretoria da recém fundada Companhia das Índias Ocidentais logo tratou de atender aos interesses de seus acionistas. Alguns estavam interessados em incrementar o corso, atuando sobre as linhas de comunicação dos hispânicos, atacar todas as naves mercantes espanholas pilhando assim os metais preciosos da América. Outros, os preocupados donos e empregados das refinarias provincianas, armadores e comerciantes, desejavam uma ação rápida contra a Terra de Santa Cruz a fim de reativarem seus negócios com o açúcar brasileiro. Ao lado uma gravura da época retratando Willen Usselinx, o fundador da WIC.

Fonte: Guedes (1990).

 

O grande atrativo para uma invasão era a pouca proteção militar oferecida contra uma investida de grandes proporções. Conforme concluíram os neerlandeses no levantamento geográfico de área referente ao Brasil, somente as Capitanias da Bahia e de Pernambuco teriam condições de opor alguma resistência. Caso estas caíssem em poder do agressor, certamente o restante do território luso-americano sucumbiria. As fortalezas não eram construídas para suportar uma descarga muito grande de granadas de artilharia. Sua missão era mais de deter a fúria dos indígenas.

O planejamento frísio concluiu que se uma esquadra, com um certo poder de fogo, as assaltasse, certamente as conquistaria. Estas, uma vez ocupadas, e devidamente fortificadas, impossibilitariam qualquer reconquista por parte dos galegos, os quais, sob o jugo espanhol, não dispunham de meios próprios para tal empreitada.

Foi levantado que o custo da ocupação seria baixo. Necessitariam de vultosos recursos somente para o aprestamento da armada e da tropa para a invasão. Uma vez aferrados ao terreno os usurpadores usufruiriam do solo conquistado para plantação, criação e comércio. Os saques e a venda de embarcações e de produtos confiscados num primeiro momento poderiam amortizar parte dos gastos iniciais da Companhia. Posteriormente, a rica lavoura açucareira, proveria os recursos necessários para a manutenção da máquina administrativa da WIC, bem como, o tão almejado lucro dos acionistas. Tanto a exploração quanto a comercialização estariam nas mãos dos filhos do País dos Moinhos. Os excedentes poderiam ser exportados para as nações com quem mantinham relacionamento comercial.

O estudo de situação flamengo aventou a hipótese de Portugal não estar livre da tirania do vizinho, e também concluiu, que o país lusitano estaria tão fraco que tentaria conservar as poucas colônias e entrepostos que porventura ainda possuísse. Portanto, uma tentativa de reocupação da colônia sul-americana estaria fora de cogitação, sendo o mais sensato, negociar uma paz com o invasor tentando manter o restante do Torrão Tropical, visto que ele era tão extenso que mesmo lhe subtraindo uma boa porção, permaneceriam com terras suficientes para terem uma colônia respeitável nas Américas.

Figura 6 – O Estado do Brasil, naquela época, já excedia, em grandeza territorial, os Estados Alemães, a Inglaterra, a Escócia, a Irlanda, a França, a República das Províncias Unidas, os demais Países Baixos e a Espanha. Além de um vasto litoral que ia desde a foz do rio Amazonas, ao norte, até a atual costa catarinense, ao sul, seu território estendia-se por mais de 100 léguas para o interior, tudo, respaldado pelo Tratado de Tordesilhas.

Fonte: Vianna (1965)

 

Com relação ao que hoje chamamos de opinião pública interna, boa parcela dos habitantes da República das Províncias Unidas estavam totalmente de acordo com a empreitada da Empresa. Além do lucro, os acionistas da Companhia das Índias Ocidentais poderiam festejar mais uma vitória contra as armas hispânicas, na época sua grande rival, e contra quem combatiam por sua independência, há décadas. Havia, também, a possibilidade de incentivar a imigração para estas novas terras, ampliando assim o mercado de empregos e, ao mesmo tempo, suprindo a demanda no aprestamento e manutenção da força de ocupação.

Figura 7 – A compreensão do momento histórico é fundamental para o prosseguimento do trabalho. O início do século VXII foi marcado pelas transformações culturais ditadas pelo Renascimento e pela Reforma. Mesmo ideais filosóficos humanistas não esconderiam os reais interesses expansionistas da “terra dos moinhos”, que apesar do nome bucólico, era uma potência industrial e comercial emergente. Ao lado uma pintura de paisagens, de Jacob Isaakszoon, mostrando em destaque um moinho e ao fundo, uma cidade fabril.

Fonte: Enciclopédia dos Museus (1969)

 

Jan Moerbeeck, o autor de uma das obras que serviu de base para a escolha da investida contra o Brasil, novamente reafirmou sua convicção que era necessário levar a guerra às possessões espanholas, inclusive para desafogar o assédio ao território das Províncias Unidas e destruir as comunicações dos inimigos. Posteriormente mais um aspecto foi adicionado às vantagens do plano. Com os recursos arrecadados, a Companhia poderia direcionar receitas para a construção de outras armadas, além de aproveitar a excelente localização das reentrâncias da costa brasileira para lá instalar bases navais.

Assim sendo, as principais razões para aprovação do plano foram as lutas contra a Espanha e a manutenção do lucrativo comércio marítimo, em particular o açucareiro; substituir os portugueses no frete marítimo no Atlântico Sul, particularmente no Brasil, Guiné, Angola e Cabo Verde; monopolizar o comércio brasileiro, então nas mãos de Portugal e Espanha; e por fim desejavam desferir um profundo golpe no Império Espanhol.

Assumindo o controle do Brasil, praticamente exerceriam o controle das rotas marítimas que conduziam ao sul do continente americano, colocando em xeque, os comboios que circulavam no Atlântico Sul. Num futuro próximo, poderiam atuar no Caribe e posteriormente, se aventurarem nas terras continentais sob jugo hispânico. A oportunidade de comercializar com novas terras apetecia o apetite financeiro de uma república emergente.

Para dar um caráter mais profundo aos clamores de seus acionistas, o grupo que desejava arremeter contra Santa Cruz justificou seus argumentos no famoso escrito “Motivos por que a Companhia das Índias Ocidentais deve tentar tirar ao Rei da Espanha a Terra do Brasil, e isto quanto antes”, de Jan Andries Moerbeeck, editado em 1623. Tal documento listava os produtos produzidos, anualmente, no Brasil, citando os possíveis lucros da WIC, consoante os resultados das últimas safras canavieiras tropicais, e de outros produtos explorados na colônia luso-americana2. Mais tarde, outro documento, de autoria de José Israel da Costa, um judeu que vivia na Bahia, confirmaria os dados de Moerbeeck.

Por fim a Diretoria da WIC, baseada nos estudos de suas comissões, resolveu atender aos dois partidos e aprestar duas frotas. Uma partiria para ações de corso no Caribe e a outra, tentaria a conquista da Capitania da Bahia, no Brasil. Desejosos de se apoderarem das terras do Novo Mundo, essa mega operação poderia, de uma só vez tirar as fontes de riqueza de El-Rei Felipe da Espanha e reaver os investimentos calcados na exploração da indústria canavieira brasileira.

De todas as colônias americanas a que mais chamou a atenção dos frísios foi a terra que eles chamavam de Zuickerland (Terra do Açúcar) (FROTA, 2000). Dos motivos apresentados, dois eram essenciais para que a WIC desejasse conquistar a colônia luso-americana. Um, era o econômico, visto que muitos empresários neerlandeses tinham financiado a indústria açucareira e o rei espanhol os proibiu de reaverem seu pesado investimento. Para se ter uma idéia, havia cinco refinarias de açúcar nos Países Baixos Rebeldes antes da citada trégua e ao final dela, vinte e nove refinarias, sendo vinte e cinco delas em Amsterdã, sede da Companhia. Os comerciantes neerlandeses ganhavam muito dinheiro com a venda do açúcar refinado na Europa e não desejavam abrir mão desse negócio tão lucrativo. O outro fator é que os empresários dispunham das maiores e melhores informações a cerca da referida colônia.

Figura 8 – Após um acurado estudo de viabilidade do empreendimento, a idéia de arremeter contra a colônia lusa foi defendida por alguns

investidores. Foram apresentadas, dentre outras, as seguintes vantagens: boa localização geográfica; capacidade do porto; por ser colônia

lusitana, entendiam que seria fácil sua conquista, a exemplo das feitorias orientais; possibilidade de se explorar a indústria açucareira e a

exploração do pau-tinta, ambos com boa aceitação no mercado europeu; e as informações que dispunham da área. A única oposição a

esse grupo vinha daqueles que vislumbravam lucros maiores com o corso sobre as rotas comerciais da Nova Espanha. Ao lado, os futuros

invasores realizando seu estudo de situação.

Fonte: Santos (1964)

 

Para isso, o governo batavo auxiliaria com tropas, navios, dinheiro e apoio político, pois via neste empreendimento as possibilidades de enriquecimento, fortalecimento político e enfraquecimento da aliança luso-espanhola.

Não podemos nos esquecer de um aspecto importante na época, que por ser a Terra de Santa Cruz, uma colônia portuguesa, também vivia sob dominação espanhola. Calcado nesse raciocínio, os frísios entenderam que teriam certa facilidade em tornar os luso-brasileiros seus aliados, ou na pior das hipóteses, forçá-los a esta situação. Por fim, os defensores de uma invasão à Colônia, argumentavam que teriam a mesma facilidade que tiveram por ocasião da conquista dos entrepostos lusos no Oriente.

Apesar do relativo progresso de algumas capitanias, o Brasil era uma colônia em formação, com regiões díspares, conhecimentos geográficos imprecisos, povo mameluco, fazendas distantes e população dispersa habitando pequenos povoados.

Um ponto vulnerável da colônia luso-americana era a fragilidade da defesa do Brasil, em especial das rotas marítima no litoral tropical. Em 1616, 28 cargueiros foram aprisionados pelos piratas batavos nas costas luso-americanas. Em 1623, este número já atingia a casa das sete dezenas de naus perdidas, a maioria delas para a pirataria.

Os diretores da WIC estavam conscientes que os áureos tempos de Felipe II da Espanha era um passado longínquo. Seu neto Felipe IV, vaidoso, arrogante e incompetente, estava conduzindo o Império Ibérico para a sua decadência. Dentro do planejamento estratégico castelhano, Portugal, era equiparado a mais uma de suas possessões e, portanto, a Espanha, não precisava empregar importantes forças militares na defesa do território e colônias lusitanas. Esta deficiência liberou os batavos, para as ações, marítimas e terrestres, nos territórios ultramarinos. Com tantas presas, conseguidas com uma facilidade sem par e impunemente, somente um alienado não perceberia qual seria o próximo passo dos neerlandeses.

Os frísios sabiam do crescente descontentamento dos luso-brasileiros, conhecidos, na época, por “mazombos”, com os hispânicos. Este desgosto era devido ao descaso da corte espanhola e à morte de seus patrícios em guerras de El-Rei contra antigos aliados. Até onde esta insatisfação lhes seria positiva, era a única dúvida dos flamengos, visto que este seria o local e o povo contra o qual o europeu culto, forte e organizado iria atuar.

O Nordeste do Brasil foi a região eleita para a primeira ação concentrada da WIC por ser a área onde se encontrava, próximo ao litoral, o massapé, o solo propício para o desenvolvimento da rendosa cultura canavieira. A posse dessa rica região em açúcar e pau-brasil, secundária para a política econômica espanhola, asseguraria vultosos lucros aos cofres da Companhia (LAET, 1911).

 

2.2. Porque a Capitania Real da Bahia?

A boa localização geográfica e a infra-estrutura existente na capital do Brasil davam excelentes condições para os barcos da WIC investirem contra praticamente todas as regiões conhecidas das Américas Espanholas, tanto continentais quanto insulares.

A capacidade do porto de Salvador era muito boa, com fácil entrada e ancoragem segura. Segundo documentos da época, a freqüência anual era de 2.400 barcos, o que aumentava a cobiça dos diretores da citada companhia de navegação. Os flamengos, utilizando o melhor porto na Baía de Todos os Santos, teriam a possibilidade de expedições terrestres contra o Peru e navais pelo Atlântico Sul e o Caribe.

A busca de informes por parte dos holandeses foi exemplar. Pormenores foram obtidos através das anotações feitas pelos piratas e pelos relatos dos batavos residentes na cidade. Desde o início da colonização, pairavam suspeitas sobre comerciantes estrangeiros que, aproveitando-se da oportunidade de comercializar com seus compatriotas e com os nativos, passavam informações valiosas a possíveis corsários.

Figura 9 – Surtidas flamengas realizadas a partir de 1599 constataram que nossas defesas eram vulneráveis a um ataque mais audacioso e possante. A guarnição militar de Salvador era composta por menos de uma centena de soldados profissionais que defendiam bastiões antiquados. Para agravar a situação, os luso-brasileiros não contavam com barcos para patrulhar a costa. Esse fato havia sido, recentemente, confirmado pelas informações dos espiões e agentes infiltrados na colônia e nas cortes ibéricas. Este mapa, de autoria de Georg Markgraf, é prova do detalhe com que os holandeses eram informados por seus agentes. Vale destacar que na época, os neerlandeses eram tidos como um dos melhores cartógrafos do mundo.

Fonte: Estado-Maior do Exército (1972)

 

Estes informes, depois de analisados e consolidados, deram ao agressor um excelente levantamento estratégico da região costeira nordestina. Todavia no tocante à capital colonial e ao Recôncavo, o levantamento foi precário. Mesmo assim, os neerlandeses tinham condições de saber o grau de segurança daquela capitania real.

De posse desta região, esperavam atingir as seguintes metas:

– no campo comercial – apropriação do monopólio comercial do açúcar, pau-brasil, couro, comércio de escravos, etc. Em 1624, a libra do açúcar branco atingia, em Amsterdã, o valor de 0,43 florins e do mascavo, 0,32 florins;

– no campo militar – exercer o domínio do Atlântico Sul, e pressionar a navegação do Caribe. A meta era atuar cerradamente sobre as comunicações entre a América Central, o Caribe e a Península Ibérica. Esta era a mais movimentada e rica rota comercial do mundo, pois por lá circulavam o ouro do México e prata do Peru e Bolívia;

– no campo psicossocial – os holandeses não pretendiam colonizar a região, sendo este, talvez, seu maior erro na campanha3. A única atividade que pretendiam exercer, além da comercial, era a evangelizadora protestante, buscando expandir a fé cristã nos moldes luteranos;

– no campo político – ferir a soberania espanhola e em contrapartida, expandir a sua.

Foi com o aval dos acionistas que a Assembléia dos XIX apresentou a proposta de se conquistar a cidade de Salvador, então capital do Brasil. De agosto a outubro de 1629, em Middelburg, na Província da Zelândia, dirigentes da WIC e deputados debateriam sobre a proposta da Companhia, até que ela foi aprovada.

Tais informações reforçaram a decisão do Conselho dos XIX em conquistar a capitania baiana. Para ratificar sua decisão, os conselheiros da WIC afirmavam que conquistando a “cabeça” da colônia luso-brasileira, rapidamente o corpo cederia. Agora só faltavam conseguir o apoio dos governantes da República e sua homologação e armar a frota invasora.

Encaminhada ao Príncipe de Orange, dirigente da nação, ele a homologou, dando-lhe respaldo jurídico. Conseguida a citada autorização, os batavos começaram a aprestar uma frota com mais de duas dezenas de navios, artilhados com aproximadamente 200 canhões.

 

2.3. Os preparativos baianos

Figura 10 – A 21 de dezembro de 1623, a armada da Companhia das Índias Ocidentais partiu de diversos portos da República Batava. No meio do caminho se dividiram. Uma frota, sob o comando de Jacques l’Hermite, rumou para as Índias Ocidentais; e a outra, para a colônia luso-americana. A esquadra que aproou para o Brasil era composta de 23 embarcações grandes, 3 iates, 509 bocas de fogo e guarnecida por cerca de 3.300 homens, dos quais, perto de 2.700 soldados, pertenciam às forças de terra. No comando estava o experiente comandante Jacob Willekens, auxiliado pelo célebre pirata vice-almirante Pieter Pieterzoon Heyn. O coronel e futuro Governador das Terras Conquistadas, Johan van Dorth, comandaria a força terrestre.

Fonte: Guedes (1990)

 

Preparativos de tal magnitude não passaram desapercebidos a Felipe IV em Madri. Celeremente, enviou mensagens, alertando os luso-brasileiros sobre uma iminente invasão holandesa. Todavia as ordens de aprestamento não foram claras, uma vez que recomendava medidas de alerta e melhoria das fortificações existentes. Reforço em pessoal e material: nada.

O governador-geral do Brasil era Diogo de Mendonça Furtado, substituto de Dom Luís de Sousa, desde 1621 e o primeiro capitão-geral do Brasil nomeado pelo Rei Felipe IV da Espanha. Como os demais governadores, ele era respeitado por seus méritos militares e administrativos adquiridos nas missões anteriores em outros rincões do Império Ultramarino Português.

Tão logo recebeu a mensagem de Madri, o governador-geral brasileiro a repassou a seus capitães-mores nas capitanias. Ao receberem esse comunicado, cada um de per si, procurou, utilizando ao máximo, os parcos meios que tinham, melhorar, ampliar e reforçar suas respectivas defesas. Contudo, a capital da colônia luso-americana, bem como as das demais capitanias estava por demais despreparadas e danificadas, resultado de uma longa paz com os gentios e das constantes adversidades da natureza.

Mendonça Furtado concentrou-se nos preparativos de defesa da cidade. Mobilizou todos os aptos, facilitado pela obrigatoriedade do serviço militar, o que lhe rendeu perto de 3.000 homens; selecionou frentes, repartindo os contingentes pelos locais onde mais provavelmente os neerlandeses atacariam; reforçou as guarnições das fortalezas, melhorou a trincheira do mar, perto do atual forte São Marcelo, dando-lhe um aspecto de fortim ao levantar muralhas com cestões; mandou construir redutos e obstáculos; e ampliou as medidas de segurança, estabelecendo postos de vigilância nos morros e nas praias das vizinhanças da capital (SOUZA FERREIRA, 1945, p. 86).

Salvador se transformou numa verdadeira praça de guerra, com diversos postos avançados sendo instalados nos acidentes capitais e vias de acesso. Uma destas atalaias seria responsável por identificar os atacantes. Foi-lhe autorizado introduzir vários impostos especiais visando suprir seu fundo de defesa colonial. Angariou cerca de 20.000 cruzados, somente com a sobretaxa do vinho, destinando estes recursos para as defesas de Recife e de Salvador. Diogo Furtado estabeleceu uma contribuição compulsória chamada Imposição e Avarias, baseado na Carta Régia de 23 de julho de 1623. Com ela o governador de Pernambuco, pôde melhorar a defesa de sua capitania.

Mas enquanto os dirigentes luso-brasileiros se esforçavam por diminuir o tempo perdido e por tentar unir todos em torno dos ideais de defesa do solo tropical, a esquadra invasora avançava para o Brasil.

Às vésperas do desembarque, São Salvador era uma cidade com três áreas de concentração urbana: a Vila Velha, primeiro núcleo populacional, na entrada da barra; São Salvador, a maior e mais bem cercada, onde ficavam as instalações administrativas do Estado do Brasil, 5 igrejas e o Colégio dos Jesuítas; e Paripe, região onde haviam os engenhos e algumas plantações de algodão.

Por sua vez, o Governador-Geral só contava com suas poucas almas para defendê-la. Apesar de possuir uma população de aproximadamente 12.000 habitantes e um tamanho que abrigasse suas 2.400 casas, havia 80 soldados regulares, 2.000 soldados-colonos e 500 escravos armados. Para agravar a situação dos defensores, divergências políticas e religiosas dividiram a população local, atuando na vontade psicológica dos residentes, e beneficiando o invasor.

Diogo de Mendonça Furtado distribuiu judiciosamente seus parcos recursos nos pontos mais convenientes à resistência, inclusive nomeando o Auditor Pedro Cerqueira como Inspetor Geral das Fortificações. Na época havia 3 fortes: o de Santo Antônio, ao sul, na entrada da barra de acesso à baía e comandado por Francisco de Barros; o de Tapagipe e São Felipe, ao norte, no outro lado do ancoradouro; e ao centro, no meio do porto, uma plataforma triangular de bateria, conhecida como São Marcelo. Diante do palácio do governador, instalou 6 peças de artilharia, guarneceu as praias de Itapuã e armou os 18 navios mercantes que se encontravam ancorados no porto (MENEZES, 1922, p. 137).

Além de ocupar os fortes e acidentes capitais próximos à cidade, enviou um grupo de uma centena de colonos e duas centenas de índios para guarnecer o porto de Vila Velha e reforçar as adjacências do distante Forte de Santo Antônio.

 

3. A Batalha de São Salvador

Às vésperas do desembarque, São Salvador só contava com suas poucas almas para defendê-la. Segundo Southey e Laet, existiam pouco mais de um milhar e meio de defensores em armas quando os holandeses desembarcaram perto de Salvador e nenhuma esquadra de defesa na Bahia, nem em outro ponto do Brasil (GUEDES, 1979).

As divergências sobre como proceder em caso de ataque estrangeiro atrapalharam e dividiram a população local, atuando na vontade psicológica dos residentes, trazendo um benefício enorme aos usurpadores, como veremos.

Quando os flamengos arremeteram contra São Salvador, as defesas da capital estavam assim distribuídas:

– na cidade e redondezas, 1.396 homens, sendo que no perímetro urbano haviam 40 sob comando de Gonçalves Vieira, 50 com Antônio de Mendonça, 85 com o Governador, 120 com Brás Silva de Menezes, 90 com Ray Crralge, 85 com Francisco de Barbudo e 85 sob ás ordens de Baltazar de Jonseque;

– fora da localidade estavam aproximadamente 150 moradores com Paulo Quelque, 120 com Augustin de Paredes, 80 com Manuel Serafim, 90 com Muniz, 35 com Manuel Cardoso, 105 com Manuel Antônio de Almeida, 130 com Pero Fonseca e 136 com Antônio Cardoso de Matos; e 

– a reserva, comandada por Rodrigo Souza, era formada por um destacamento de 1.626 pessoas, dos quais perto de 180 eram religiosos ou afins.

Para dar o alarme e avaliar a força invasora, enviou 2 patachos sob comando de Antônio de Mendonça Furtado, para fora da barra, também deixando alerta o comandante do fortim situado no morro de São Paulo, na face sul da entrada do porto, em caso de aparecimento de alguma belonave estrangeira.

Infelizmente para o Governador, nenhum sinal da frota invasora e aos poucos, parte da população, liderada pelo inquisidor comissionado no Brasil, Dom Marcos Teixeira começou a se revoltar. Os senhores de engenho precisavam de seus trabalhadores e os populares relembravam que os estrangeiros só atacavam para saquear, e não, para conquistar, como haviam feito inúmeras vezes antes nos torrões luso-americanos.

Porém no início de maio, quase um mês após o início das medidas do chefe defensor, com a cidade sendo abandonada aos poucos, eis que surge uma visão nada confortável vinda do oceano.

 

3.1. O desembarque

No alvorecer do dia 8 de maio de 1624, precedendo o retorno do contingente de reconhecimento de Antônio Furtado e os mensageiros do morro de São Paulo, a esquadra de Heyn entrou em dispositivo de assalto a nove léguas de seu objetivo.

Da capital, a população atônita avistou finalmente no horizonte os mastros das embarcações agressoras. Dom Marcos, reconhecendo seu erro de julgamento, procurou o Governador e se pôs à sua disposição. À frente de diversos religiosos, percorreu as ruas da Capital incitando o povo ao combate em defesa do torrão tropical. Depois foi com seu filho e autoridades para o fortim central do dispositivo defensivo.

1) O plano dos holandeses

No dia seguinte, 9 de maio, o almirante batavo Willekens ordenou que a nau almiranta desse uma salva de tiros com pólvora seca, sinal que desejava parlamentar. Porém os baianos responderam com granadas. Iniciou-se a troca de tiros entre os baluartes da cidade e as belonaves invasoras que forçavam a entrada da barra, bombardeando o Forte de Santo Antônio.

O plano neerlandês, baseado nas informações fornecidas por Houndus sobre as instalações citadinas e suas defesas, consistia em executar um duplo ataque, coordenado, sobre a capital. Ele seria assim executado:

– seis belonaves (Gelderlandt, Saint Cristoffel, Gulde Zee-Paert, Oude Roode Leeuw, Haes-Windt e Post-Paert), reforçadas por 7 chalupas, transportariam mercenários até o local de desembarque;

– a fim de fixar as guarnições nos fortes, o Provincie van Utrecht e o Eendracht assediariam o Forte de Santo Antônio, o mais meridional dos bastiões da capital. Os barcos Groeninghen e Sterre bombardeariam o Forte da Lage, enquanto que o Tijger e o outro Oragnien-Boom, o de Montesserrate. Para finalizar o assédio aos baluartes de São Salvador, o Samson e o Overijssel acometeriam o atalaia mais setentrional;

– o Nauptunus, de Heyn, e o Nassauw infletiriam contra a Estância de São Diogo;

– Willenkens comandaria pessoalmente uma flotilha de cinco embarcações (Zeeland, Haan, Hope, Jarger e o Vier Hayms Kinderen) que tentaria abordar as barcas fundeadas;

– para interceptar qualquer nau ibérica que tentasse se evadir ou viesse em socorro dos sitiados, o Orangien-Boom e o Vos foram enviados para a entrada do golfo, entre Santo Antônio e Itaparica. Nestas naves estavam os adoentados da expedição;

– na reserva, ancoradas perto da Ilha de Itaparica, aguardariam ordens o Saint Marten e o Zee-Jaeger;

– também foram destacadas as embarcações do contra-almirante e a Oranger para atuarem na costa de Sergipe del Rei, a fim de ali aprisionarem alguns navios. Caso não lograssem êxito, deveriam retornar a Salvador, a fim de auxiliar na conquista da cidadela baiana.

Vale registrar que a Hollandia, a belonave de Van Dorth, ainda estava desgarrada, razão pela qual ele não participaria dos estágios iniciais do assalto à capital do Brasil.

No dia 9 de maio, a frota invasora, encabeçada pelo Vos, adentrou ao golfo. Conforme o plano original, cinco naus fundearam à vista do Forte da Barra, atraindo para si as atenções desta guarnição. Os restantes, navegando fora do alcance das granadas desta posição defensiva, penetraram na baía e realizaram um ataque diversionário aos outros fortes lindeiros ao povoado.

Figura 11 – Capa do livro de Ricardo Bahrens onde uma gravura de Hessel Gerritsz detalha o dispositivo da frota invasora dentro do porto, no momento do assalto a Salvador.

Fonte: Behrens (2024)

 

Percebendo que o destino não seria complacente consigo, as tripulações das 16 embarcações ibéricas que, estavam ancoradas próximo à praia, trataram de se aglomerarem próximo às defesas do forte de São Felipe.

Figura 12 – Destaque da gravura holandesa em que mostra as embarcações que foram incendiadas para não caírem nas mãos dos invasores.

Fonte: Guia Geográfico da Cidade de Salvador (2024)

 

2) O assédio aos fortes

A peleja se desenrolava também nas imediações do porto. As guarnições do Forte do Mar (São Marcelo) e das embarcações lá ancoradas reagiam violentamente ao assédio dos neerlandeses liderados por Heyn.

A luta prosseguia sem sinal de vitória para nenhum dos contendores. Já havia se passado quase sete horas de duelos quando Willekens ordenou que três chalupas, guarnecidas com 20 homens cada, assediasse os navios fundeados. Os intrusos navegaram até o ancoradouro e abordaram alguns navios latinos incendiados pelas tripulações.

Este ato causou pânico nos defensores, que para evitar um mal maior, começaram a incendiar seus próprios barcos, logrando destruir cinco deles. Tentavam evitar que os mesmos, e sua rica mercadoria, caíssem em mãos inimigas. Os flamengos mais tarde recuperariam oito destas naves.

a) A audácia de Heyn

À noite, por volta das dezenove horas, percebendo que até então não havia nenhum resultado definitivo, o astuto e experiente Pieter Heyn, se beneficiando da confusão instalada entre os sitiados, o Almirante rumou para o Forte da Laje, que até então estava infligindo um duro castigo aos assaltantes.

Porém quando percebeu que as atenções dos defensores tinham sido desviadas, infletiu para o Forte São Marcelo. Segundo os holandeses, ali teriam que enfrentar 11 bocas de fogo.

Decididos a vencer logo os bastiões baianos, os intrusos arremeteram contra o Forte do Mar. 14 lanchas frísias desembarcaram cerca de 300 mercenários. Heyn foi o segundo a escalar as muradas do reduto baiano, de uns três metros de altura. Muitos subiram nos ombros dos outros para ultrapassarem este obstáculo.

Figura 13 – O almirante Pieter Heyn, num rasgo de iniciativa, comandou a escalada dos muros do forte do Mar, conquistando-o à frente de 280 neerlandeses, ao mesmo tempo em que as tropas de terra realizavam sua investida contra a cidade de Salvador. Ao lado, um quadro da época, que mostra o assalto de Heyn as bateria da Lage.

Fonte: Guedes (1990)

 

Com receio de serem cercados, por volta das dezenove horas, os mazombos retraíram para a trincheira próxima à capital. Apesar da bravura de seu comandante, Pero Garcia, os defensores retiraram-se após constatarem que seu comandante havia tombado.

Segundo os baianos, os neerlandeses tiveram de 30 a 40 baixas, porém mais tarde se verificaria que somente 4 soldados de fortuna germânicos morreram, inclusive o corneteiro de Heyn. Outros dez mercenários foram feridos. A principal perda batava foi no mar, dentre os muitos marinheiros mortos no combate, estava Andries Nieuwkerke, comandante do Groeninghen.

Nesta operação foram empregados piques e aparelhos especiais para escalada, provando que os invasores estavam bem preparados no seu intento. Os frísios estimaram em cerca de 600 o número de mazombos em retirada, que abandonaram o fortim a nado.

De posse deste fortim, o Almirante Heyn mandou que se aproveitassem os canhões recém capturados e que os voltassem em direção à cidadela baiana. Em pouco tempo, suas forças auxiliavam as peças dos navios holandeses a bombardearem Salvador.

b) O Forte de Santo Antônio

Com a queda da bateria principal dos defensores, os batavos avançaram sobre os outros fortes, priorizando o que melhor protegia a entrada da baía.

Enquanto os navios holandeses e os fortes baianos duelavam, uma força de uns 1.500 homens, 1.200 mercenários e o restante, marujos, se lançava ao continente perto do bastião de Santo Antônio. Comandava este contingente Albert Schouten, uma vez que Van Dorth ainda não se fizera presente. 

Após desembarcar no Pontal de Santo Antônio, na barra, próximo ao reduto do mesmo nome, os assaltantes investiram contra o Forte de Santo Antônio, iniciando assim sua marcha pelo sul. Este atalaia era guarnecido por cerca de duas centenas de nativos, liderados por Antônio de Mendonça Furtado, filho do Governador-Geral do Brasil e que na época contava com dezessete anos. O baluarte baiano sucumbiu à fúria estrangeira logo no primeiro ataque, tendo seus sobreviventes se refugiado no Mosteiro de São Bento.

Conquistado os Fortes de São Marcelo e de Santo Antônio, cessava de ambos os flancos o fogo concentrado sobre os flamengos. Desta forma, os forasteiros puderam prosseguir para a cidade. Guiavam a tropa invasora Dirck Pieterszoon Colver e Dirck Ruyters, comandante do Post-Paert, autor de um tratado – “Tocha da Navegação” e profundo conhecedor da região.

A coluna agressora marchava com a companhia do Capitão Hermont e seus 60 arcabuzeiros à testa. Depois vinha a subunidade do Tenente Lameyn, seguido pelo contingente do Major Schontens. 

O centro era composto pela companhia do Capitão Vogelsangh, pela do Capitão Bassevelt, substituto do falecido Capitão Serosckercke. Neste núcleo marchavam os marinheiros transportando víveres, munição, enxadas, pás, alviões, machados, escadas e toda sorte de material para escalar muralhas.

Na retaguarda, comandada pelo Capitão Kijff, futuro comandante da cidadela, seguiam as subunidades dos Capitães Wilhelm Schouten, Bourgeois de Mollingh e do Tenente Van Isenach.

O caminho por onde os agressores marcharam era repleto de matagais e estreitas faixas de terra. Um pequeno grupo de determinados facilmente poderia tocaiá-los e retardar seu avanço, porém as três centenas de defensores que guarneciam as vias de acesso e o baluarte baiano, amedrontados fugiram sem oferecer resistência. A covardia desta posição selaria o destino da resistência luso-brasileira.

Figura 14 – Caminho estreito, da praia a um atalaia abandonado, por onde se deslocou a força invasora, guiada por marinheiros batavos que conheciam o caminho.

Fonte: Guia Geográfico da Cidade de Salvador (2024)

 

Assenhorando-se do reduto abandonado pelos defensores, os flamengos o utilizaram de trampolim a fim de prosseguiram para Salvador. Somente nas cercanias da capital foram molestados pelos nativos, ao serem recebidos por tiros de mosquete disparados pelos defensores da Porta de São Bento. Neste encontro tombou o Tenente frísio La Mayn. Defendia este portão o valente contingente de Antônio Cardoso de Barros.

Frustrados em sua tentativa, os invasores aproveitaram a noite para se reagruparem e descansarem para a investida do dia seguinte. Pernoitaram na Ermida de São Pedro, um mosteiro existente nas cercanias. Segundo testemunhas, dormiram despreocupados, pois até se embebedaram.

3) O êxodo da população

Ao findar o dia, as notícias desanimadoras sobre os combates na banda sul e no porto, culminaram na retirada do restante dos habitantes, certos de que havia cessada a resistência e que nada mais poderiam fazer. O clarão dos navios incendiados, cujo fogo era alimentado por um misto de madeira, alcatrão e açúcar, convenceu os habitantes da capital que tudo estava perdido.

A população aterrorizada com as notícias do mau tratamento dispensado pelos batavos aos moradores dos lugares por eles conquistados e atordoada pelos canhoaços e fumos que eram desprendidos pelas instalações em chamas começou a fugir, aproveitando-se da escuridão noturna, quebrada somente pela luz da destruição. Somente uns 70 ficaram para combater os forasteiros. A inexperiência e a falta de disciplina foram mais fortes do que o sentimento do dever. O próprio Bispo, que tanta coragem demonstrara, foi até o Colégio dos Jesuítas e arrebanhou os remanescentes. Juntos se homiziaram nas matas vizinhas à cidade.

Na fuga, os moradores deixaram seus pertences e lares praticamente intactos. O desespero tomou conta da população que fugiu para os lados de Itapuã. Muitos tentaram atravessar o rio Vermelho e o rio Camorogipe justamente na época de cheias deste. Alguns pereceram afogados.

4) O Governador-Geral tenta resistir

Ao raiar o dia 10 de maio, o sol iluminou uma bandeira branca tremulando dentro da localidade. O contingente de Schouten atravessou o portão de Salvador. Adentrou cautelosamente, mas percebendo seu abandono, confirmado por alguns cristãos-novos locais que bandearam para o lado dos neerlandeses, iniciou o saque. Segundo registros da época, muitos mercenários enchiam seus chapéus com ouro e prata. Outros chegavam a apostar até 400 florins em jogos pelas ruas desertas da capital (ALDENBURGK, 1913, p. 174).  

Saciados com as aquisições urbanas, os espoliadores se enfronharam no mato atrás de bens nas fazendas e roçados vizinhos. Estes seriam as primeiras vítimas das emboscadas dos luso-brasileiros.

A única resistência digna de nota dentro da cidadela foi efetuada pelo Governador Furtado, que aguardou o agressor de armas em punho. Apoiado por 18 fiéis, ele defendeu o Palácio do Governo. Ali conseguiram rechaçar um ataque flamengo, inclusive abatendo alguns intrusos, sendo dois deles, oficiais. Foi concebido então um plano de destruição do palácio detonando barris de pólvora, mas o ouvidor impediu tal ato.

Todavia a defensa não tinha condições de resistir ao assédio e logo aceitou uma trégua. Persuadido a capitular por seus seguidores, o Governador-Geral aceitou as promessas dos frísios, particularmente a do Almirante Heyn, com quem parlamentou. Cessava a resistência.

O ato de Diogo Furtado estimularia os brios de seus companheiros, pois ele ficando até o fim no seu posto, soubera salvar naquela hora sua honra de patriotas e de autoridade, resgatando a culpa por sua fraqueza e pelos fatos decorridos antes e durante a invasão germânica.

Os defensores foram presos, levados a presença do comandante adversário e posteriormente seguiram, junto com as barcas capturadas, para os Países Baixos Rebeldes. Encontravam-se entre os aprisionados o Governador-Geral Diogo de Mendonça Furtado, seu filho Antônio de Mendonça Furtado, o Capitão Lourenço de Brito, o Sargento-Mor Francisco de Almeida Brito, o Ouvidor-Geral Pero Casqueiro da Rocha, o Provincial dos jesuítas Domingos da Cunha, quatro religiosos e mais quatro parentes dos citados. Seguiriam para Amsterdã, onde em outubro foram retratados pela Imprensa local.

Figura 15 – Gravura holandesa da época, retratando a rendição do Governador-Geral do Brasil, Mendonça Furtado, à esquerda. A seu lado, o superior dos jesuítas e, ao fundo, outros luso-brasileiros aprisionados na batalha de Salvador.

Fonte: Grandes Personagens da Nossa História (1972)

 

Após um dia de pequenas escaramuças, Salvador estava sob o pavilhão tricolor holandês. A capital havia caído mais pelas notícias falsas e tendenciosas, e pelos ardis e audácia do agressor, do que pelo valor numérico ou bravura do sitiante. A Milícia constituída para defender a cidade, fugiu assim que o perigo se aproximou. O povo, vendo seus defensores se retirarem, apanharam o que podia e se esconderam nas adjacências da capital, temendo pelo pior.

 

3.2. Salvador sob o lábaro da WIC

O dia 10 de maio marca a conquista da Capital Colonial pelos mercenários da WIC. Eles eram agora senhores da cidade, do mar, do porto e boa parte da baía. Poderiam evacuar seus feridos e ao mesmo tempo receber reforços, provisões e toda a sorte de suprimentos e apoio de sua terra natal. Na tomada da capital pereceram somente meia centena de homens da Companhia, incluindo soldados e marinheiros, dentre eles somente dois oficiais.

A conquista foi de certa maneira proveitosa. Os homens da Companhia conseguiram se apropriar de umas 3.900 caixas de açúcar, “o suficiente para baixar o preço para cinco vinténs a libra”. Além disto, confiscaram muitas toras de pau-tinta, grande quantidade de vinho, couros, fumo, algodão e seda.

Nos dias seguintes os neerlandeses ainda aprisionariam outros cargueiros que entraram desavisados no porto baiano. Só em uma nau de Lisboa, com 60 toneladas de deslocamento, carregada de óleo, pão e outras mercadorias foram parar nas mãos dos agressores. Junto foram aprisionadas 2 naves do Rio de Janeiro e um navio negreiro do Espírito Santo, com 250 escravos.

Fora os mosquetes, espadas, barris de pólvora e outros materiais bélicos, 49 bocas de fogo foram capturadas pelos neerlandeses. Eram 4 do Forte de Santo Antônio, 10 da plataforma de artilharia de São Jorge, 3 de São Filipe, 3 das Águas dos Meninos e 3 na cidade. Os 26 restantes foram removidos das naus fundeadas e distribuídas pelas defesas de São Salvador. Destes canhões, 23 eram de bronze e 26, columbrinas de ferro. Os saques nas residências e igrejas lhes valeria outros milhares de cruzados, o suficiente para pagar o soldo dos soldados de fortuna4.

Figura 16 – A conquista de Salvador foi proveitosa. Os homens da Companhia se apropriaram de 3.900 caixas de açúcar, além de muitas toras de pau-brasil. Os saques às residências e igrejas lhes valeram outros milhares de cruzados, o suficiente para pagar o soldo dos soldados de fortuna. Segundo Johan Aldenburgk, um dos invasores, os mercenários da WIC mediam prata e ouro nos chapéus cheios e navios carregados com a pilhagem zarpavam para a Europa.

Fonte: Santos (1964)

 

No dia 11 de maio, finalmente fundeou na baía o Hollandia. Van Dorth desembarcou seus homens e foi ter com Willekens uma reunião. O Almirante holandês o pôs a par da situação e, de conformidade com as ordens emanadas do Conselho dos XIX, empossou o Van Dorth como Governador dos domínios flamengos em Santa Cruz.

Apesar da relativa facilidade com que dominaram Salvador, os intrusos não negligenciaram quanto às medidas de defesa. Depois de estocarem no Colégio dos Jesuítas quase todas as mercancias apresadas, reforçaram todas as posições existentes, distribuíram peças de artilharia por todos os fortes e fortins conquistados, cavaram fossos e trincheiras, levantaram parapeitos, ergueram plataformas e hornavegues, estabeleceram postos de vigília, etc. Aplicando seus conhecimentos, construíram um canal e um dique defronte ao Convento de São Francisco, represando ali as águas correntes desviadas e lá instalando uma bateria.

Para manter certa ordem na cidade, o Governador flamengo proclamou o fim dos saques e que todas as pessoas e propriedades seriam respeitadas e que haveria tolerância religiosa. Todavia como esta diretriz veio depois do saque efetuado, praticamente ninguém a levou em conta. Poucos foram os que retornaram à capital, sendo a grande maioria cristãos-novos ou escravos.

Dos chefes invasores, Willekens foi o único a ter um “final feliz”. O comandante neerlandês regressou à sua terra natal com metade da frota invasora, assim que se dissipou o perigo de uma contra-ofensiva baiana, em fins de julho. Foi ele quem levou as boas novas à sua terra da conquista da capital brasileira. Também seria um dos poucos a receber a medalha cunhada com a efígie do Príncipe Maurício comemorativa ao evento da conquista de São Salvador.

Figura 17 – Gravura holandesa em que mostra os detalhes do ataque da WIC a Salvador. Ambas seriam publicadas em diversos jornais europeus, naquele ano.

Fonte: Guia Geográfico da Cidade de Salvador (2024)

 

3.3. Aproveitamento do êxito

Após ocuparem o perímetro urbano de São Salvador, os mercenários partiram para dominar as regiões vizinhas e os baluartes que compunham o cinturão defensivo da cidadela.

Após ocuparem o perímetro urbano da capital, os mercenários partiram para dominar as regiões vizinhas e os baluartes que compunham o cinturão defensivo da cidadela. Aventuraram-se em Itapagipe, península onde foi alicerçado o Forte São Felipe. Realizaram algumas incursões à ilha de Itaparica, a fim de obter alimentos e saque, ali estabelecendo postos avançados.

Quando o usurpador realizou uma penetração no trecho de São Bento à Vila Velha foi emboscado, ação que reduziu sua vontade de se atrever fora dos limites da capital.

A partir de então, quase todas as expedições holandesas que atravessariam os portões de Salvador seriam tocaiadas. Aos poucos, as guarnições isoladas foram caindo ou foram evacuadas, o que contribuiria para que, em menos de um ano de ocupação, os domínios concretos do invasor se limitasse aos limites da cidadela conquistada.

 

3.4. A organização da resistência

A maioria dos habitantes de Salvador preferiu se concentrar no antigo povoado do Espírito Santo (hoje Abrantes), distante cerca de seis léguas da capital, e a partir de lá, organizar a resistência. Outros com o mesmo propósito se aglutinaram nas fazendas, engenhos e aldeias adjacentes. Quando perceberam que a investida flamenga tinha outra meta que não o simples saque da cidade, os mazombos vestiram as couraças de bravos guerreiros.

Para substituir o governador-geral aprisionado, os nativos aplicaram pela terceira vez na história brasileira as “Vias de Sucessão”5. Reunidos na aldeia do Espírito Santo, os oficiais da Câmara de Salvador receberam das mãos de padres jesuítas um envelope lacrado com o selo real que continha o nome de cinco pessoas no Brasil que poderiam assumir temporariamente as funções de governador-geral.

Elegeram desta maneira o governador de Pernambuco, Matias de Albuquerque Coelho. Para informá-lo dos acontecimentos foi enviado Antônio de Morais. Foi a primeira vez na história do Brasil que um governante máximo do Brasil foi eleito por seus patrícios, e não, indicado por seu soberano. As outras duas vezes em que havia sido utilizada a lei das vias de sucessão culminaram na escolha de Juntas Governamentais para responder pelo Governo-Geral.

Enquanto aguardavam ordens do recém indicado governador-geral, foi escolhido o desembargador Antão de Mesquita de Oliveira para assumir as funções de Ouvidor-Geral e Comandante das Tropas em Combate. Como o citado cidadão estava com uma idade avançada, repartiu suas obrigações com dois chefes militares nascidos no Brasil: Lourenço Cavalcanti de Albuquerque e João de Barros Cardoso. Estes dois, mesmo promovidos a mestres-de-campo, sensatamente puseram-se às ordens de Dom Marcos Teixeira de Mendonça, nomeado pelos líderes baianos capitão-mor.

No comando da resistência, o polêmico bispo iria desempenhar com brilhantismo suas funções, sendo indiscutivelmente a alma da luta contra o usurpador do solo baiano. Apesar de idoso, resistiu com máxima energia. A Cruz se transformou em Espada e ele em Bispo-Soldado. A Dom Marcos Teixeira de Mendonça foi conferido o mérito de organizar as primeiras companhias de emboscada, que mais tarde seriam aperfeiçoadas por Matias de Albuquerque, tornar-se-iam a espinha dorsal da defesa luso-brasileira contra os invasores holandeses.

Foi sob sua liderança que os baianos estabeleceram uma eficiente vigília, baseada numa série de postos de observação capazes de, ao mesmo tempo, observarem os movimentos do oponente e atuarem sobre ele, sitiando-os, interceptando assim, suas vias de comunicação e de suprimento com o continente. Eram postos em prática os ensinamentos adquiridos nas campanhas contra os franceses, durante décadas de lutas para expulsá-los das capitanias setentrionais do futuro Estado do Maranhão.

Tendo como meta evitar o avanço das tropas invasoras para o interior, Dom Marcos reuniu os homens aptos, aproximadamente 600 homens, enquadrando-os em Companhias de Emboscada baseadas no Arraial do Rio Vermelho.

Percebendo que os germânicos só podiam sair da cidade pelas portas do Carmo ou de São Bento, ele estruturou suas frentes de modo a barrar essas saídas. As forças luso-brasileiras que cercavam a capital empregaram pela primeira vez a guerra brasílica, mudando radicalmente o curso da campanha.

Figura 18 – Croqui que mostra a localização do Arraial do Rio Vermelho, principal centro de resistência dos baianos contra os invasores holandeses. O Bispo-Soldado dispôs seu contingente da seguinte forma: dois grupamentos de 600 homens cada, a comando respectivamente de Antônio Cardoso de Barros e de Lourenço Cavalcanti de Albuquerque, investiriam pelos setores do Carmo e de São Bento; e um destacamento de aproximadamente 1.000 combatentes permaneceria como reserva na mão de Dom Marcos Teixeira, no Arraial do Rio Vermelho, trabalhando nas trincheiras do mesmo e apoiando as duas peças de manobra que sitiavam São Salvador.

Fonte: Estado-Maior do Exército (1972)

 

Ao mesmo tempo, iniciava-se um período de trinta anos de lutas que, conforme bem destaca o Almirante Max Justo Guedes, marcariam uma guerra sem precedentes na História do Brasil e que vai amalgamar as capitanias distantes e fixar o espírito da incipiente nacionalidade.

 

4. Das trevas à luz

A queda de Salvador diante das armas estrangeiras da Companhia das Índias Ocidentais foi um revés inicial, mas não marcou a derrota na guerra. Muito pelo contrário.

Figura 19 – Cada vez mais razões apareceriam para sustentar a teoria da conquista de rincões brasileiros. Para reforçar a idéia, os neerlandeses consideraram que os índios, pouca, ou nenhuma resistência ofereceriam a eles, e que os luso-brasileiro e negros escravos, por demais envolvidos na cultura canavieira e no comércio, tinham pouca habilidade no manejo das armas. Os invasores germânicos não levaram em conta que os valentes colonos, auxiliados por reforços da metrópole, estavam sempre largando suas ferramentas de trabalho, se mobilizando de alguma forma e empunhando espadas para combater, como o fizeram sempre seus antecedentes portugueses. Vencendo piratas e expulsando estrangeiros como os franceses da Guanabara, e mais recentemente, do Maranhão, eles iam se consolidando em todos os campos do poder como a mais bem sucedida colonização moderna dos trópicos. Este, com certeza, seria o primeiro e mais grave erro de julgamento do estrangeiro que tentava usurpar parte das terras deste paraíso tropical.

Fonte: Estado-Maior do Exército (1972)

 

Apesar de terem perdido a capital para os invasores, os luso-brasileiros forjariam suas próprias armas, resistindo e cercando os inimigos na capital. Aos poucos iriam tornando a vida dos holandeses insuportável. Seus ataques cada vez mais adentrariam às fortificações dos batavos, a ponto de, num deles, matar o próprio comandante mercenário. No ano seguinte, quando chegou a ajuda, vinda na forma de uma poderosa frota ibérica, mais conhecida como Jornada dos Vassalos, Salvador seria recuperada na Segunda Batalha de Salvador e mais de uma década depois, seria palco da maior derrota de Maurício de Nassau em terras brasileiras, em 1638.

Apesar dos acurados planos de ataque dos holandeses e do esmerado detalhe sobre o que de concreto existia no Brasil naquela época, os agressores se esqueceram do abstrato: a alma brasileira6. Os luso-brasileiros, inicialmente surpreendidos, divididos por problemas internos e divergências nos altos escalões, souberam se reorganizar e rapidamente reagir ao invasor. A vitória sobre tão potente adversário além de nos orgulhar, infundiu nos luso-brasileiros os sentimentos de solidariedade e de dever.

Quanto à cidade de Salvador, hoje é símbolo da resistência brasileira, pois nela tivemos dois dos mais significativos episódios da história militar de duas nações: a expulsão dos holandeses, no primeiro quartil do século XVII, foi o nascedouro da natividade brasileira e a maior glória militar dos coloniais contra os portugueses, no primeiro quartil do século XIX.

Viva nossos heróis do passado! Viva honradas gerações de bravos portugueses e brasileiros! Que inspirem as atuais e as futuras com seu exemplo, com sua coragem, com seu denodo, e principalmente, com seu legado para ambas as Nações.

 

5. Referências

ADONIAS, Isa. Mapa: imagens da formação territorial do Brasil. São Paulo: Odebrecht, 1999.

ALDENBURGK, Johann Gregor. Relação da Conquista e Perda da Cidade do Salvador pelos Holandeses em 1624-1625. Traduzida por Alfredo de Carvalho. Recife: 1913.

ATLAS Histórico Escolar. Rio de Janeiro: FENAME, 1968.

BARLEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Recife: Fundação Cultural da Cidade de Recife, 1980.

BARROSO, Gustavo. História militar do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1935.

BEHRENS, Ricardo. Salvador e a invasão holandesa de 1624-1625. Salvador: Editora Pontocom, 2013.

BOXER, Charles Ralph. The Dutch in Brazil: 1624 – 1654. Oxford: The Clarendon Press, 1957.

BRASIL. Ministério do Exército. Sinopse histórica do Exército Brasileiro. Brasília, DF: CENTRO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DO EXÉRCITO, 1978.

CÂMARA CASCUDO, Luís da. Geografia do Brasil Holandês. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956.

CAMINHA, João Carlos. História marítima. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980.

CASTRO, Therezina de. História da civilização brasileira. Rio de Janeiro: Capemi, 1982.

_______. Retratos do Brasil: atlas-texto de geopolítica. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1986.

CÓRDOVA-BELLO, Eleazar. Compañias holandesas de navegación. Caracas: Ibero-Americana, 1963.

DONATO, Hernâni. Dicionário das batalhas brasileiras. São Paulo: IBASA, 1996.

ENCICLOPÉDIA dos museus. Rijksmuseum Amsterdam. São Paulo: Melhoramentos, 1969.

ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO. História do Exército Brasileiro. Brasília, DF: Estado-Maior do Exército, 1972. v. 1.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1933.

GONSALVES DE MELLO, José Antônio. Fontes para a História do Brasil Holandês 1: a economia açucareira. Recife: Parque Histórico Nacional dos Guararapes, 1981. 

FROTA, Guilherme de Andrea. Quinhentos Anos de Brasil. Rio de Janeiro: Bibliex, 2000.

GUEDES, Max Justo. As guerras holandesas no mar. [s. l.: s. n.](História Naval Brasileira. v. 2, t. 1A). Rio de Janeiro: Documentação Geral da Marinha, 1979.

GUERRA, Flávio. Uma aventura holandesa no Brasil. Recife: Ed. Pernambuco, 1977.

GUIA GEOGRÁFICO DA CIDADE DE SALVADOR. Salvador em 1624 – Ilustração Holandesa. Disponível em <http://www.cidade-salvador.com/seculo17/invasao-holandesa/salvador.htm>. Acesso em: 01 março 2024.

HOLANDA, Sergio Buarque de; CIVITA, Victor (Organizadores). Grandes Personagens da Nossa História. São Paulo: Abril cultural, 1972.

LAET, Johannes de. Annaes dos feitos da Companhia Privilegiada das Índias Occidentaes, desde o começo até o final do anno de 1636. Rio de Janeiro: Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, 1911.

MAGALHÃES, João Batista. A evolução militar do Brasil. Rio de Janeiro:

MENEZES, Francisco Henrique da Conceição. Os hollandezes na Bahia. Salvador: Livraria e Typographia do Commercio, 1922.

NETSCHER, Pieter Marinus. Les hollandais au Brésil. Haia: Belifante Freres, 1853.

SANTOS, Francisco Ruas. História de um mosqueteiro francês na Bahia. Rio de Janeiro: Record, 1964.

SOUZA JÚNIOR, Antônio de. Do Recôncavo aos Guararapes. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998.

PANDIÁ CALÓGERAS, João. Formação histórica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1972.

RIO BRANCO, Barão do. Efemérides brasileiras. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946.

ROCHA POMBO, José Francisco da. História do Brazil. Rio de Janeiro: J. Fonseca Saraiva, 1940.

SELVAGEM, Carlos. Portugal Militar: compêndio de história militar e naval de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1931.

RODRIGUES, José Honório. Historiografia e bibliografia do domínio holandês no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1949.

VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1956.

VIANNA, Hélio. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1965.

WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial hollandez no Brasil: um capítulo da história colonial do século XVII. São Paulo: Ed. Nacional, 1938.


________________________________________

1 Vale lembrar que as nações emergentes da Europa estavam aderindo a uma nova forma de religião, seguindo a linha luterana, em declarada oposição às normas estabelecidas pelo Papa. Esta nova conduta fazia com que os governos de países protestantes não acatassem acordos ou determinações de Roma, principalmente se fossem de caráter temporal (N. A.).

2 O relatório discriminava que a produção de 700.000 arrobas era confinada em 35.000 caixas pesando cada uma 20 arrobas e vendidas a um valor de 300 florins. Somente de dízimo, a WIC lucraria 2.050.000 florins e 2.625.000 de direitos alfandegários. Se as transportassem, receberiam mais 700.000 florins de frete, além de 420.000 florins de novos direitos na revenda. No final totalizariam 4.795.000. Não foram computados outros impostos e taxas que posteriormente o Conselho Político introduziu como a “pensão”. O referido relatório apontava que havia no País Tropical 137 engenhos. Estes produziam cerca de 700.000 arrobas de açúcar, sendo 20.000 caixas de açúcar branco, 10.000 de mascavo e 5.000 de panela. Segundo seu autor, caso a Companhia dominasse esse mercado ela poderia lucrar 4.795.000 florins anualmente em frete e impostos (GONSALVES DE MELLO, 1981, p. 16 e 17).

3 Somente na segunda invasão é que autorizaram a conquista territorial, a criação de colônias, firmar tratados com os colonos e indígenas e nomear administradores (ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO, 1972, p. 101).

4 Segundo Aldenburgk, retiraram-se de todas as igrejas e conventos as imagens, utensílios, objetos de prata e ouro, de sorte que um capitão, em uma hora, arrecadou aproximadamente 6.000 florins. Os mercenários e marujos se fartaram com veludos, sedas e objetos das residências da cidade (ALDENBURGK, 1913, p. 239).

5 Para casos como este era previsto, na época, abriram-se as chamadas “Vias de Sucessão”, ou seja, um conselho se reunia e cada um votava secretamente escrevendo o nome do seu indicado a sucessor num documento, que posteriormente era lacrado. Reunido todos os papéis, estes eram abertos e feita a contagem. O mais votado era o sucessor (SOUTO MAIOR, 1977, p. 120).

6 “A Companhia das Índias Ocidentais errara em sua apreciação estratégica, não percebera a alma do povo, preocupada que estava com lucros fáceis e altos dividendos, resultando tudo na feliz expressão de Luís Delgado – “um confronto de uma alma X um negócio”, em que a alma sairia vitoriosa. Era dar tempo ao tempo e, em breve, o negócio levaria a pior. O invasor receberia, a custa de imenso dispêndio financeiro e de vidas, uma grande lição” (ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO, 1972, p. 111).

Gerar artigo em pdf
2024-07-02
293-326
214
214
REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia