Nº 2668 - Maio de 2024
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
A Democracia está em perigo
Tenente-general PilAv
Eduardo Eugénio Silvestre dos Santos

 

Quem cede a liberdade essencial para adquirir alguma

segurança temporária, não merece liberdade nem segurança

Benjamin Franklin

 

 

A democracia, pela sua própria definição e características, é um sistema político frágil e bastante exposto a ataques. É também, em termos históricos, algo recente. Se olharmos para trás, concluiremos que, em todas as latitudes, o mundo foi sempre dirigido por formas autoritárias de governo (déspotas, imperadores, ditadores, oligarcas, etc.). No início do século XX, nenhum país se coadunava com o que hoje entendemos por democracia.

Os sinais de perigo avolumam-se! Em várias nações, mesmo nas mais desenvolvidas, chegam ao poder líderes autoritários, populistas, nacionalistas e anti-sistema, que aproveitam a cada vez maior distância que os governantes colocaram entre si e as populações, disseminando discursos de ódio e de intolerância. Não escondem os seus intentos autoritários, o seu desprezo pelo contraditório, nem a intenção de alterar o sistema político. Exploram a pusilanimidade dos líderes democráticos, a corrupção existente, generalizam acontecimentos negativos, afirmando que, com eles, tal nunca aconteceria, quando sabemos que, se chegarem ao poder, toda a opinião discordante será abafada da pior maneira. Este é o trágico paradoxo do caminho eleitoral para o autoritarismo.

Desde o fim da “guerra fria”, quando a URSS colapsou, o mundo conheceu uma nova mutação denominada “segunda revolução capitalista”, resultante de um conjunto simultâneo de transformações verificadas em três áreas: tecnológica, económica e sociológica, Desde então, os colapsos democráticos verificados foram causados pelos próprios governos eleitos, transformando em armas os tribunais e outras agências, subornando os meios de comunicação e o sector privado (ou intimidando-os ao silêncio) e reescrevendo as regras da política. Os exemplos recentes são sobejamente conhecidos: Vladimir Putin (Rússia), Aleksandr Lukashenko (Bielorússia), Hugo Chávez e Nicolas Maduro (Venezuela), Evo Morales (Bolívia), Rodrigo Duterte (Filipinas), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia), Jair Bolsonaro (Brasil), Xi Ji-ping (China), Narendra Modi (Índia), Matteo Salvini (Itália) e, “last but not least ”, Donald Trump (EUA). Importa recordar e salientar que os maiores ultrajes da história humana recente não ocorreram na ausência de autoridade, mas foram perpetrados por governos que alegavam estar a agir em prol do interesse comum (Alemanha nazi, URSS estalinista e Khmers vermelhos)1.

O que têm feito os líderes dos governos democráticos perante estes ataques crescentes? Ou não reagem, com receio de parecerem não democráticos, ou as medidas que tomam são pusilânimes e inconsequentes, por incompetência e/ou interesses partidários que nada têm a ver com o poder que lhes advém do povo e que os impede de tomar decisões de fundo. Esta teia de corrupção, juntamente com o medo patológico da imigração e da incerteza económica, forma uma mistura explosiva, pois o populismo sempre se alimentou dos problemas sociais.

Não foram os líderes populistas europeus em ascensão que apoiaram a tecnocracia europeia. Apenas se aproveitaram dela! O nacionalismo e o populismo não são a cauda do descontentamento europeu. São a sua consequência! Vejamos o que se tem passado na União Europeia (UE).

A UE transformou-se em algo completamente diverso daquilo que Jean Monnet e Robert Schumann tinham idealizado. De uma Europa que tinha como objectivo o bem-estar dos seus cidadãos, passou-se a uma “teologia de mercado” e a uma “política furtiva”2, “um sacro império burocrático, em regime de despotismo iluminado”3 que nos tem vindo a retirar a soberania, mas que se mostra perfeitamente incompetente para ser solidária com os seus membros. Mal a “guerra fria” terminou, sob a batuta vanguardista do seu membro mais poderoso (a Alemanha), o Estado Social passou à história e sucumbiu perante o poder avassalador do neoliberalismo.

Maastricht foi prematuro na concepção e demasiado ambicioso nas finalidades. Assinado durante o período de euforia a seguir ao fim da “guerra fria”, a sua génese rapidamente começou a ser contestada. “Os 12” mostraram-se demasiado divididos para embarcar num projecto que cedia uma parte substancial de soberania e de poder discricionário às autoridades da UE, em nome de um bem colectivo. Com razão, porque a social-democracia europeia se deixou rapidamente hipnotizar pelo neoliberalismo e fez ruir o sonho do “estado social europeu”. O que passou a vigorar não foi uma “Europa dos cidadãos”, mas sim uma “Europa das elites financeiras, dos burocratas e das grandes empresas”. Quem lidera as instituições europeias são a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Eurogrupo, órgãos não eleitos democraticamente, enquanto o Parlamento Europeu, único órgão que é eleito pelos cidadãos europeus, tem um papel secundário na definição das linhas estratégicas orientadoras. A ideia de “nação” não agrada, sentem-se atraídas pelo despotismo iluminado. Perderam o contacto com o cidadão comum, minimalizando a dependência do voto. Por isso, os cidadãos sentem-se cada vez mais distantes da UE, não querendo ver assuntos serem-lhe impostos por Bruxelas. A legitimidade não pode ser ordenada ou concebida de cima para baixo, deve ser conquistada e concedida de baixo para cima.

A esse descontentamento há que acrescentar o “crash” financeiro de 2008 e os consequentes cortes nos gastos sociais. Os burocratas, os governos e os economistas não foram capazes de prever a crise! Enquanto os bancos se desmoronavam, os contribuintes foram obrigados a pagar a crise. A instabilidade financeira daí resultante foi apenas uma das razões do falhanço das economias ocidentais. As outras foram a crescente desigualdade, a maior insegurança económica e o lento crescimento económico. Devido a isto, as elites governantes perderam credibilidade aos olhos das populações.

O alargamento a Leste também não ajudou! Os maiores clamores actuais de xenofobia e de populismo vêm precisamente daí (Hungria, Eslováquia e Polónia), existindo a maior oposição e alheamento às sucessivas vagas de migrantes que têm assolado a Europa Meridional desde 2011. O Reino Unido, alicerce fundamental da democracia, o país que, em 1215, promulgou a Magna Carta, veio a revelar o terror endémico da diferença, a desconfiança do “outro”, e uma classe política incapaz de governar o país e que o paralisou politicamente.

A construção europeia está pois à deriva, levada por burocratas demasiado diligentes e de tendências ditatoriais. A economia não cresce como devia e o desenvolvimento dos países continua desigual. A teoria neoliberal defende que o objectivo último da Humanidade é o crescimento económico (o mercado como substituto da acção política), e este só pode ser maximizado através da concorrência desregulada. Se as recompensas desse sistema são distribuídas desequilibradamente, é um preço necessário, e os actuais líderes europeus arcarão com a responsabilidade e o dolo da destruição do sonho de Monnet e Schumann.

Estamos a percorrer um mau caminho porque os líderes europeus, por incompetência, por opção ideológica, ou por ambas, não permitem aos seus cidadãos que decidam livremente o seu futuro.

A solidez das nossas sociedades depende da sustentabilidade de um equilíbrio delicado entre o económico e o político, o individual e o colectivo, o nacional e o global. Esse equilíbrio foi quebrado. Um dos sintomas dessa mudança foi que a economia não está a transmitir segurança à política, levando à perda de confiança nas elites. O outro, decorrente do anterior, é o crescente populismo e autoritarismo.

À medida que se entrava no século XXI, deu-se um afastamento da democracia liberal para o que pode ser apelidada de “autocracia demagógica”, inclusive em algumas democracias mais avançadas, nomeadamente nos EUA.

A perda de confiança na competência e probidade das elites reduz inevitavelmente a solidez da legitimidade democrática. Vendo-se abandonados pelos partidos tradicionais do centro, os membros menos educados e mais pobres da classe média abrem-se ao populismo e ao seu apelo carismático dos seus líderes. O seu crescimento é a consequência do falhanço das políticas ortodoxas para dar prosperidade e estabilidade ao grosso das populações.

A “autocracia demagógica” provém de uma maioria levada a limites destrutivos. O líder usa o seu poder para destruir instituições independentes e a oposição (“media” incluída), rejeição das regras democráticas, tolerância ou encorajamento da violência, alteração das leis eleitorais e constitucionais e exploração ou mesmo criação de crises que “obriguem” a poderes de excepção, emergindo como governante absoluto.

Esses regimes desinstitucionalizam a política e tornam-na pessoal. Incluem normalmente um círculo restrito de servidores de confiança e a criação de serviços de segurança completamente leais ao “grande líder”. Como George Orwell escreveu em “1984”, “serás oco; iremos esvaziar-te e depois encher-te-emos de nós próprios ”.

Em 1999, desconhecido chegado ao poder, Vladimir Putin utilizou um eventual atentado terrorista tchetcheno em Moscovo para uma acção retaliatória que lhe consolidou o poder daí em diante. Os anteriores 10 anos de confusão e anarquia com Boris Yeltsin facilitaram a tarefa.

Quando, em 2012, Putin disse que russos e ucranianos nunca seriam divididos, ninguém no Ocidente lhe prestou atenção. A teoria geopolítica do Eurasianismo4 e o sonho da restauração do império passou a orientar claramente a política externa russa. A Ucrânia fazia a diferença. A ocupação parcial da Geórgia, em 2008, e da Crimeia, em 2014, sem oposição do Ocidente, encorajou a Rússia a invadir o Sul e o Leste da Ucrânia. Uma potência imperial não reconhece as entidades políticas, que vê apenas como territórios coloniais; por isso, destrói-as ou subverte-as.

O conceito invocado pela Rússia para justificar estes actos foi que um Estado podia intervir noutro para proteger populações da sua própria cultura. Este foi também o argumento que Hitler utilizou para anexar a Áustria e dividir a Checoslováquia, e que Estaline usou para anexar os países bálticos, em 1940. A tinta da ficção política é o sangue5.

“Esta era uma nova espécie de fascismo, em que verdadeiros fascistas chamam “fascistas” aos seus opositores”6.

Há cerca de um século atrás, após a I Guerra Mundial, começou na Europa o que posteriormente se chamou “a era das ditaduras”, período em que a democracia foi derrotada pelo autoritarismo populista. Conhece-se o preço que a Europa e o mundo pagaram para lhe por fim! O século XX foi, aliás, um século de ditaduras; Estaline, Hitler, Mussolini, Salazar, Franco, Mao, Castro, Ceausescu, Papa Doc, Família Kim, Pinochet, Pol Pot, Mugabe, J. Eduardo dos Santos, Omar el-Bashir, Assad, Saddam Hussein, etc.

Estará o Ocidente a entrar de novo numa “era de ditaduras”? Como disse Alexis de Tocqueville, “quando o passado não ilumina o futuro, o espírito caminha nas trevas”. No futuro, as democracias continuarão a morrer se as elites culturais, políticas e económicas continuarem a permitir e colaborar com os déspotas, em vez de os combater abertamente. As democracias podem morrer às mãos de generais ou de ditadores, mas também de líderes eleitos que subvertem o próprio processo que os levou ao poder.

A corrosão da democracia e o crescimento da “autocracia demagógica” é uma enorme e crescente transformação das sociedades. A democracia autocorrige-se, mas a mudança é lenta. É muito mais fácil motivar as pessoas pelo ódio, pelo medo e por um tribalismo que divida o mundo nos “bons”, como nós, e todos os outros.

A renovação da democracia deve ser guiada por uma ideia simples mas poderosa: a de CIDADANIA! A democracia é imperfeita, mas a tirania nunca será a resposta7.

 

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1 CARNE, Ross – “A revolução sem líder”, Bertrand Editora, Lisboa, 2011.

2 KAGAN, Robert – “Then return of history and the end of dreams”, Vintage Books, Random House, Newv York, 2008.

3 MALTÊZ, José Adelino, Professor do ISCSP.

4 O Eurasianismo defende que a civilização russa não pertence à Europa ou à Ásia, mas sim ao conceito geopolítico de Eurásia (Lev Gumilev, Sergei Glazyev, Alexander Dugin, etc.).

5 SNYDER, Timothy – “Rússia – Europa – América O caminho para o fim da liberdade”, Edições70, Lisboa, 2018, p. 55.

6 Ibidem, p. 152. WOLF, Martin – “The crisis of democratic capitalism”, Penguin Random House UK, London, 2023.

7 WOLF, Martin – obra citada, Prefácio, p. xx.

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by COM Armando Dias Correia