Nº 2668 - Maio de 2024
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Crónicas Bibliográficas

As Leis da Guerra

 

A Obra “As Leis da Guerra”, de SUN BIN, editada recentemente em Portugal pela Editora GRÃO-FALAR, e apresentada no passado dia 14 de março de 2024, no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, insere-se na SÉRIE SINICA dedicada aos textos clássicos de autores chineses, em que SUN BIN se enquadra perfeitamente.

Aspeto que só por si já merece uma referência especial, ao proporcionar aos leitores um conhecimento e uma aproximação histórica ao relativamente pouco conhecido “Mundo Chinês” da Era anterior a Cristo, e que nos abre um “novo” conhecimento sobre um dos principais Estrategistas Chineses da época dos designados “Reinos Combatentes”.

SUN BIN e “As Leis da Guerra” representa uma visão histórica sobre a forma de combater e de fazer a guerra, e surge na linha dos famosos escritos do Estrategista SUN TZU, na ilustre Obra “A Arte da Guerra”, que se estuda nas Escolas Militares, bem como nas Escolas de Economia e Gestão, um pouco por todo o mundo.

A Obra “As Leis da Guerra”, tal como refere Carlos Morais José na Introdução, permaneceu oculta, desaparecida e sem rasto, durante mais de um milénio… sendo, contudo, frequentemente citada ao longo dos tempos… mas não tendo havido, até há bem pouco tempo, a plena certeza que a Obra de SUN BIN existia. Era quase que um “mito”, uma lenda, que nos acompanhou durante muitos séculos…

A Obra “SUN BIN BING FA”, ou seja, “As Leis da Guerra de SUN BIN”, esteve perdida durante cerca de 1400 anos e foi recuperada apenas em 1972 (há pouco mais de 50 anos) em escavações arqueológicas realizadas na província Chinesa de SHANDONG, onde foram encontrados vários rolos de tiras de bambu onde se encontrava, fragmentado, o famoso livro desaparecido. Esta descoberta de túmulos chineses e mais concretamente de uma suposta biblioteca de clássicos chineses, teve um enorme impacto na historiografia chinesa e permitiu recuperar parte dos escritos de SUN BIN, e ainda de WEI LIAO ZI e de LIU TAO (conhecidos pelo Livro das “6 Estratégias”).

É um caso raro e um episódio histórico que vem colocar um pouco de “mistério” e de “enigma”, e certamente de mais interesse numa Obra que vagueou pela espuma dos tempos seculares, e que surgiu quase que tão misteriosamente como tinha desaparecido...

Esta descoberta proporcionou um acesso à argumentação de SUN BIN e da forma como concebia as suas estratégias e táticas para derrubar os seus inimigos, associando mestria estratégico-militar aos valores socio-culturais que pairavam sobre as narrativas desta Obra que chegou agora aos nossos tempos.

O título do livro “As Leis da Guerra” surge com o seu nome inicial “BING FA”, em que BING, no chinês antigo, quer dizer “Guerra” e FA significa “Lei”, mas quase sempre traduzido para o Ocidente, conforme refere Carlos Morais José, como “Arte da Guerra”. E foi precisamente assim que SUN TZU ficou conhecido e estudado até aos nossos dias.

Neste caso, até para diferenciar e articular, em complemento, as duas Obras, os títulos são diferentes e, até, algo contraditórios, pois que a “Arte da Guerra” é vista como uma “Obra Estratégica”, onde a estratégia é associada ao conceito de ciência e arte… do génio humano no planeamento e conduta das Operações Militares.

Já o conceito de “Leis da Guerra” parece mais associado ao regime rígido, formal e mais tático do fenómeno da guerra, ligado à condução das Operações Militares… mais na linha dos estudos sobre SUN TZU e agora sobre SUN BIN.

Esta Obra não é apenas um livro, ou um escrito histórico, ou até a descrição de uma época específica na história chinesa clássica. A Obra representa a guerra vista na sua dimensão de alianças, de luta pelo poder e de constantes mudanças sociais em que os “Reinos Combatentes” se digladiavam e lutavam pela conquista ou manutenção de um Império… o Império do Meio.

Esta Obra é por tudo isso o relato histórico da transformação de Reinos em Império, visto pela genialidade estratégico-militar de SUN BIN, e felizmente agora disponível na Língua Portuguesa.

Analisemos, brevemente, a biografia do pretérito autor, SUN BIN. Este nasceu e viveu num período muito conturbado da história multimilenar chinesa, numa altura onde vários reinos se afrontavam e combatiam, geralmente motivados pelas ambições pessoais soberanas e pelos interessados clãs que manobravam o povo de um Império sem poder.

A guerra era uma atividade omnipresente na região dos Reinos Combatentes entre 476-221 a. C, e foi precisamente neste ambiente bélico e conflitual que SUN BIN nasceu, cresceu… e que viria a morrer como Estratega ou Estrategista Militar. Era na génese um guerrilheiro, pertencente a uma elite combatente, que lhe permitiu desenvolver evidentes qualidades militares e pessoais, que associadas a uma vasta sabedoria, inteligência prática, integridade de carácter e supostamente assente numa matriz de sólidos valores morais, lhe forjaram uma identidade própria e muito marcante que sobressai nos seus escritos ao longo da Obra “As Leis da Guerra”.

Nestes tempos, os senhores e a alta nobreza chinesa rodeavam-se dos seus melhores estrategas militares, no intuito de pensar a guerra e estabelecer normas e princípios para conceber defesas inexpugnáveis, ou dirigir ofensivamente os Exércitos de modo a confundir e a atacar, derrotando o inimigo e tendo em vista a vitória no campo de batalha e a defesa da integridade do Reino… o que podemos chamar hoje de “defesa da soberania”.

SUN BIN nasceu no designado “Reino de QI”, um dos 7 Reinos Combatentes, localizado no extremo este da China, cerca do ano 380 a. C. Foi por isso contemporâneo de SUN TZU1 que curiosamente também nasceu nesta região.

SUN BIN é descendente de uma família de estrategas militares (SUN ZI) e teve oportunidade não apenas de estudar e desenvolver a sua doutrina estratégica, como testar na prática as suas opções militares, pois o Reino de QI era regularmente invadido pelos Estados vizinhos, gerando um permanente clima de guerra e de violência.

Ao longo do seu percurso de vida militar, viria a mudar-se para o Reino de WEI, tendo assumido o comando do Exército do Rei HUI e mais tarde designado como seu principal conselheiro militar, estabelecendo novas lógicas e táticas militares, revelando a sua enorme capacidade e genialidade estratégico-militar para o estudo da guerra. Vítima de invejas e injustiças, viria a ser condenado e mutilado severamente nas pernas, o que o impossibilitou de voltar a andar e a combater; assumindo o epíteto de “BIN”, ou seja, “aleijado”.

Embora preso e desprovido de comando militar no Reino de WEI, viria a ser resgatado pelos Generais de QI, o seu Reino Natal, reconhecendo-lhe toda a sua genialidade, e passando a servir de “Estratega do Rei”, e seu principal conselheiro militar… acompanhando-o nas batalhas numa cadeira de rodas construída para o efeito.

Quando atingiu uma idade avançada retirou-se da vida pública e viveu como um monge nas montanhas até à sua morte, em 316 a. C, sendo reconhecido como um dos principais estrategas militares chineses e autor de uma das principais Obras sobre o estudo clássico da guerra, “As Leis da Guerra”.

A Obra está articulada em III Partes. Numa I Parte (pp. 18-63), onde estão descritos os 16 capítulos recuperados das tiras de bambu da Dinastia HAN; uma II Parte (pp. 65-108), com os 15 capítulos suplementares; e uma III Parte (pp. 109-117), onde constam algumas explicações e textos recuperados de outros documentos, perfazendo 34 Leis ou Normas, ou diria “Conselhos Estratégicos” sobre a Guerra, pois grande parte da Obra é feita em tom de diálogo e de pergunta-resposta.

As 34 “Leis da Guerra” de SUN BIN tem perfeita aplicabilidade nas doutrinas operacionais atuais dos Exércitos mais evoluídos do mundo. Até porque destacando aquelas Lei da Guerra que parecem ser as mais relevantes e que materializam o que definimos hoje como Princípios da Guerra e das Operações Militares. Estas Leis da Guerra de SUN BIN, são também elas, como vimos, relatos históricos de batalhas e de episódios militares da guerra, vistas num prisma pessoal e muitas vezes traduzidas em diálogos e em ações que representam um movimento ou uma operação militar e que era posteriormente avaliado com base na vitoria ou na derrota no campo de batalha.

Atualmente, chamamos de “Ciências Militares”2 e de “Princípios da Guerra”3. Vejamos alguns exemplos:

SUN BIN defende, na Lei II (p. 22), que “…nos assuntos bélicos não existe um modelo estratégico invariável no qual se possa confiar em todas as ocasiões…”. O que é traduzido atualmente no princípio da MANOBRA das Operações Militares. E acrescenta na mesma Lei que “…os belicosos, que extraem prazer da guerra, levam os seus reinos à perdição e os que anseiam pelo espolio da guerra cairão em desgraça. A guerra não é algo que se deva desfrutar e a vitória não é algo de que se deve lucrar…”. O que atualmente, embora nem sempre respeitado, consideramos como o princípio do OBJETIVO nas Operações Militares.

Na Lei III (p.25), em resposta a uma pergunta do Rei WEI de QI, SUN BIN observa que “…quando dois Exércitos se equivalem… usa primeiro uma unidade de Infantaria Ligeira para atacar o inimigo, oferecendo o comando a um jovem oficial de baixa patente e ataca com pequenas unidades nos flancos… embora saiam derrotados… esta é a tática que te permitirá a vitória…”. Este reflete atualmente o princípio da SURPRESA nas Operações Militares.

Na Lei VI (p. 38), refere “…há cinco causas para a derrota. Se uma das causas está presente, a vitória é impossível…” e acrescenta ainda que “…desde que se derrote as leis da guerra o inimigo não escapará à derrota…”, fazendo, parece-me, uma alusão contextualizada ao princípio da SEGURANÇA nas Operações Militares.

Na Lei IX (p. 47), refere ainda que “…dispor de vantagem estratégica é atacar o inimigo onde este não está preparado e seguir por caminhos que este nunca imaginaria e atacar o que está próximo a partir de uma contemplação à distância…”, o que corresponde ao princípio da OFENSIVA nas Operações Militares.

Na Lei X (p. 49), SUN BIN salienta que “…por forma a serem bem-sucedidas, as operações militares requerem a coordenação entre o soberano, o Comandante e as tropas…”. O que alude ao que designamos por UNIDADE DE COMANDO nos princípios das Operações Militares, e alinha os níveis político-estratégico-operacional na conduta da guerra.

Na Lei XIV (p. 55), o autor refere “…de um modo geral, no posicionamento das tropas, na transformação coordenada de formações de batalha e na colocação dos vários batalhões, as nomeações devem ser feitas à semelhança da harmonia do ser humano…”, o que alude ao princípio da SIMPLICIDADE das Operações Militares.

Finalmente, ainda na Lei XIV (p. 57), quando salienta, abordando as diferentes tipologias de formação militar, que “…ataca um invasor utilizando as tuas tropas de elite e recebe as tropas de combate homem-a-homem do inimigo com apertadas fileiras de carros de combate…”, o que pensamos poderá aludir aos princípios da MASSA e da ECONOMIA DE FORÇAS das Operações Militares.

Este exercício teórico visou demonstrar que as 34 “Leis da Guerra” definidas por SUN BIN na sua Obra têm alguma analogia com os 9 “Princípios da Guerra” que se estudam atualmente nas Escolas Militares no âmbito das Ciências Militares.

No geral, “A Arte da Guerra de SUN BIN” oferece informações sobre a antiga filosofia militar chinesa e continua sendo um recurso valioso para aqueles interessados no pensamento estratégico e na liderança militar em vários contextos operacionais.

O que parece também evidente é existirem muitas semelhanças entre o pensamento estratégico-militar de SUN BIN, há cerca de 1400 anos, e os Princípios da Guerra que regem as Operações Militares atualmente. Por este motivo, a Obra “As Leis da Guerra” de SUN BIN é, em certa medida, uma Obra atual e com aplicação prática ao nível da Liderança, da Estratégia Militar e das Operações Militares atuais.

A Revista Militar congratula-se pela oferta da Obra de SUN BIN, e faz votos que o livro “As Leis da Guerra” possa ser um sucesso editorial para a Editora GRÃO-FALAR, e que materialize o início de uma nova fase sobre o estudo do pensamento estratégico chinês clássico.

 

Coronel Luís Manuel Brás Bernardino

Diretor-gerente da Revista Militar

 

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1 Sun Tzu (544 a.C.-496 a.C.) foi um general, estrategista e filósofo chinês e principal nome relacionado a escola militar de filosofia chinesa. É mais conhecido pelo seu tratado militar, designado de “A Arte da Guerra”, composto por 13 capítulos de Estratégias Militares.

2 A Ciência Militar é o estudo dos processos militares, instituições e comportamento, juntamente com o estudo da guerra e a teoria e aplicação da força coercitiva organizada. É focado principalmente na teoria, método e prática de produzir capacidade militar de forma consistente com a política de defesa nacional.

3 Os Princípios da Guerra representam o conjunto de fatores não materiais que afetam a conduta das operações militares. Não são uma lista de verificação de procedimentos. São o resultado dos fatores observados ao longo da História em campanhas e batalhas com sucesso. No Exército Português são preconizados nove (9) Princípios da Guerra. São os mesmos que encontramos, por exemplo, nos manuais do Exército dos EUA. Esses princípios são: Objetivo; Ofensiva; Massa; Economia de Forças; Manobra; Unidade de Comando; Segurança; Surpresa e Simplicidade.

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