O atual contexto securitário e geoestratégico, fortemente influenciado pelo regresso da guerra ao continente europeu e pela crescente contestação da ordem mundial, veio provocar alterações no modo de fazer a guerra e, simultaneamente, evidenciar um conjunto de fatores estratégicos e operacionais que deverão ser considerados e acautelados pela União Europeia e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Em termos estratégicos, os desafios decorrentes do conflito russo-ucraniano, reforçaram a necessidade dos países membros da União Europeia e da OTAN, incrementarem o investimento nas suas Forças Armadas. Neste contexto, na Cimeira de Vilnius de 2023, os Aliados assumiram que os 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em despesas com defesa, passavam a ser o contributo mínimo de cada Aliado, de modo a permitir a adequada modernização e a melhoria da prontidão operacional das respetivas Forças Armadas, para fazer face às ameaças emergentes.
Com o prolongar do conflito, assistimos a uma escassez generalizada de munições nos países da União Europeia e da OTAN, resultante da descontinuidade na indústria de defesa ao longo das últimas décadas, tornando assim, os países europeus e da Aliança mais dependentes de fornecedores estrangeiros para atender às suas necessidades de defesa. Assim, é imperativo incrementar o investimento na modernização e revitalização da indústria de defesa europeia, com vista a garantir a autossuficiência e a segurança da Europa no longo prazo.
No âmbito operacional, e no que concerne às Forças Terrestres em especial, este conflito veio mostrar um conjunto de evidências, das quais se destaca a importância dos novos domínios das operações (informacional e ciberespaço), a pertinência das Forças Pesadas no campo de batalha (Artilharia de Campanha, Carros de Combate e Sistemas Antiaéreos), a preponderância da tecnologia (Sistemas de Comando e Controlo, Sistemas Autónomos não tripulados aéreos e terrestres), a importância da liderança em todos os escalões e a relevância do emprego de Forças de Operações Especiais.
As lições aprendidas com o conflito russo-ucraniano e suas implicações para as Forças Armadas europeias têm vindo a moldar as estratégias de defesa atuais. No entanto, é importante salientar que essas lições também desempenharão um papel crucial no delinear das tendências do futuro campo de batalha.
Apesar da dificuldade de abstração face ao atual conflito russo-ucraniano, é consensual que ambiente operacional futuro, num horizonte de 15 anos, apresentará caraterísticas progressivamente complexas, e que as operações futuras serão conduzidas maioritariamente em ambiente urbano (terreno complexo), com variáveis imprevisíveis, o que limitará a mobilidade e a manobra das Forças Terrestres.
Adicionalmente, prevê-se que o crescente e acelerado desenvolvimento tecnológico global irá moldar a competição e os futuros conflitos, uma vez que os diversos atores estatais e não estatais irão tendencialmente adotar e adaptar todas as inovações tecnológicas acessíveis, de modo a extrair o máximo potencial para alcançar os seus objetivos e interesses.
Assim, no que respeita ao ambiente operacional futuro, as grandes linhas de tendência identificadas, apontam para:
• A presença de uma multiplicidade de atores estatais e não estatais com um largo espectro de capacidades e formas de atuação, revelando interesses divergentes e por vezes contraditórios, o que contribui para um ambiente ambíguo.
• O acesso e controlo da informação como uma espécie de “ativo estratégico”, conferindo grande importância, por um lado aos sistemas de encriptação e, por outro lado, às ações ofensivas que procuram degradar a capacidade de comunicar com eficácia, através do emprego de capacidades de Guerra Eletrónica, Ciberguerra e armas antissatélite.
• O uso de Sistemas Autónomos e Semiautónomos (aéreos e terrestres) como solução para a salvaguarda e a redução da exposição do elemento humano na frente de combate. Além disso, estes sistemas constituem-se como multiplicadores de potencial, podendo ser usados de forma cooperativa em operações militares, no âmbito de tarefas de ataque e vigilância, ou apenas para ludibriar sistemas de apoio à decisão dos adversários, pela saturação dos indicadores usados pelos seus sistemas de alerta.
• Uma competição persistente no domínio informacional, com uso massivo de Inteligência Artificial (IA) para a geração, processamento e difusão de imagens, vídeos e mensagens falsas, que pretendem saturar e/ou iludir os canais de processamento adversários, gerando incerteza e dificuldades acrescidas ao processo de decisão.
• A transparência progressiva do campo de batalha futuro em resultado da proliferação de sensores militares e civis, que reportam em tempo real ou, quase real, criando dificuldades de ocultação e, portanto, menor capacidade de proteção e sobrevivência.
• A evolução tecnológica estimulada por usos civis pode ser de tal modo agressiva que o ritmo de obsolescência das capacidades tenderá a aumentar, obrigando a um maior investimento.
• Uma maior precisão, alcance e letalidade dos sistemas de armas, nomeadamente no emprego de armas hipersónicas, por parte de atores estatais e não-estatais.
• E o esbater da fronteira entre as dimensões física e cibernética que, através da Internet of Things (IoT), permite, a um ator, atacar redes de Comando e Controlo (C2) e até empregar armas digitais (e.g. vírus Stuxnet no ataque à central nuclear iraniana) para causar danos físicos.
As características anteriormente referidas levaram o Exército a acelerar o seu processo de modernização, tendo presente a persistente falta de recursos e a necessidade de abordar o processo de forma faseada.
Os desafios colocados pelo ambiente operacional futuro, tornaram obsoleto o famoso triângulo de ferro, Proteção – Mobilidade – Poder de fogo, impondo à Força Terrestre a satisfação de um conjunto de requisitos com geometrias não lineares e, por isso, mais complexas do ponto de vista da edificação genética de capacidades, das quais se destacam:
• A Mobilidade e agilidade, considerando a dificuldade de ocultação no campo de batalha futuro, em virtude da proliferação de sensores, que aliada ao maior alcance e precisão das armas adversárias, conferem grande importância à mobilidade (operacional e tática) dos sistemas e atribui um caráter ainda mais dinâmico à manobra das Forças Terrestres, uma vez que a permanência ou concentração de forças num dado local, por períodos maiores que os necessários, torna a força num alvo vulnerável.
• A Proteção e Sobrevivência deve ser encarada de forma mais abrangente, considerando a necessidade de conjugar sistemas de proteção passiva e ativa, complementada por uma atuação descentralizada, concentrando potencial apenas quando necessário e oportuno, e pela integração de sistemas de dissimulação e deceção.
• A Conectividade, onde cada plataforma é um sensor que contribui para a Common Operational Picture (COP), recebendo informação atualizada através dos sistemas de gestão do campo de batalha. Esta necessidade obrigará ao aumento da largura de banda dos sistemas de comunicações, à hibridização de sistemas de comunicações (civis e militares) e, por conseguinte, ao desenvolvimento de mecanismos de encriptação avançados e à proteção cibernética. Para balancear a dependência crescente deste tipo de sistemas, terão de ser pensadas alternativas para as quebras de conectividade, fundadas numa cultura de liderança e autonomia dos comandantes no terreno, que deve ser extensivamente ensinada e treinada (Comando-Missão).
• A Adaptabilidade, essencial para permitir rápidas mudanças de postura e missão, face à imprevisibilidade do ambiente operacional e às necessidades decorrentes dessa incerteza e ambiguidade.
• A Integração de sistemas robotizados (terrestres e aéreos), operando conjugada e sinergicamente com plataformas operadas pelo homem e com o soldado apeado.
• A Letalidade assenta em várias premissas que não apenas a potência do armamento. Uma força terrestre credível deverá ser capaz de detetar e empenhar o seu adversário de forma precisa, rápida e decisiva, destacando-se a tendência para sistemas que operam além da linha de vista (Beyond Line of Sight – BLOS), como os sistemas anticarro, as loitering ammunitions e os drones armados.
• A Escalabilidade onde a organização das forças e os sistemas de gestão devem permitir a adição de novas forças e capacidades em caso de necessidade de aumento dos efetivos, aquisição de equipamentos da mesma natureza ou reforço com unidades e sistemas de países amigos. Desta forma, a Força Terrestre deve ser encarada verdadeiramente como um sistema de sistemas que opera articuladamente para cumprir as missões que lhe são confiadas de forma flexível.
• A Resiliência obriga a uma atuação de forma simultânea nas dimensões física, pela adoção de tecnologias; na dimensão mental ou cognitiva, através do reforço do treino para a adaptabilidade e no assegurar da manutenção de conhecimento corporativo; e por último, na dimensão moral, fator determinante da resiliência numa organização talhada para o emprego da força, traduzido na vontade humana e na capacidade de superação, tornando o homem e a sua equipa absolutamente centrais para a Força Terrestre, apesar e para além da tecnologia.
O Exército português é uma Força Terrestre de características essencialmente médias, complementadas e potenciadas por Forças Ligeiras, Pesadas e de Operações Especiais. Esta é uma composição que lhe assegura flexibilidade de emprego e versatilidade para operar em todo o espetro de operações e ambientes operacionais e, simultaneamente, premissa para no futuro continuar a constituir-se como uma “Força adaptável, pronta para operar, preparada para combater”.
A ideia de evolução da Força Terrestre tem como centro de gravidade, a exploração do ativo estratégico do Exército enquanto produtor de segurança, garantindo o treino estruturado e continuado de uma Grande Unidade e das suas integrantes, operando na lógica de armas combinadas.
Neste contexto, o Exército desenvolveu o conceito de Força Terreste de Próxima Geração, antecipando o próximo ciclo de revisão da documentação estruturante, previsivelmente caracterizado por uma elevada competição por recursos e pela necessidade de fundamentar o Sistema de Forças, face às necessidades da Defesa Nacional.
Explorando as facilidades disponibilizadas pelo desenvolvimento de outros projetos na área da simulação e certificação, da robótica terrestre, do Comando e Controlo e da digitalização em geral, este conceito procura dar corpo a um programa ambicioso, mas exequível, de alta visibilidade e verdadeiramente estruturante para o Exército, e que cumulativamente possa ser apelativo para a indústria nacional, gerando, simultaneamente, as bases para escalar a todo o Sistema de Forças.
A criação deste conceito pretendeu igualmente prover o Comando do Exército com uma visão de uma Força Terrestre de Próxima Geração, pronta para operar em todo o espetro das operações militares e preparada para combater, tendo em conta a impossibilidade de modernizar e equipar todo o Exército de uma só vez. Assim, aponta um conjunto de ideias, opções e linhas de ação focadas na transformação para uma “força mais tecnológica, moderna, flexível e letal”, de modo a satisfazer os compromissos internacionais assumidos por Portugal.
O processo de transformação deverá assentar nos seis pilares a seguir detalhados.
Pilar 1 – Liderança
O desafio da liderança para a inovação, está em conciliar a estrutura fortemente hierarquizada que confere a necessária capacidade de resposta em momentos de crise, com a abertura a novas ideias, impondo-se o incentivo ao experimentalismo controlado, celebrando e aprendendo com os fracassos, e não apenas com os sucessos, e à valorização do pensamento divergente, pois é esse que pode fazer a diferença.
No Exército, a verdadeira revolução na liderança estará porventura em definir o grau de autonomia de cada nível de decisão e desta forma potenciar a filosofia do Comando-Missão e de uma cultura de start-up – falhar cedo, aprender depressa.
Pilar 2 – Digitalização
A transformação digital advoga não só a questão tecnológica, mas também a necessária mudança de mentalidade e de cultura para este no ambiente. Pois, operar num ambiente digital implica desde logo preparar as pessoas para poderem explorar as facilidades que a tecnologia oferece. Por outro lado, o grande desafio colocado à Força Terrestre será acompanhar o ritmo de evolução e inovação das tecnologias. Para o conseguir, é absolutamente essencial o envolvimento sistemático com a Base Tecnológica e Industrial de Defesa (BTID) e o Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN).
A abordagem aos problemas numa ótica de Open Innovation, recorrendo ao mercado e a tecnologias de uso civil para a sua adaptação a sistemas militares, salvaguardando as questões que constituam segredo, parecem apresentar-se como as únicas viáveis no atual contexto, face aos montantes financeiros disponibilizados pelo país para as suas Forças Armadas.
A constituição de um Cluster industrial terrestre nestas áreas, que são já consideradas prioritárias na estratégia da BTID, conferindo um elevado grau de autonomia estratégica no plano nacional, poderá ser um caminho a explorar.
Pilar 3 – Robótica e Sistemas Autónomos
O emprego de sistemas autónomos e remotos no Exército, constitui uma necessidade transversal a todas as suas capacidades, forças e valências, esperando-se que possam contribuir para a maximização do desempenho do Soldado através da redução das suas cargas físicas e cognitivas.
Além do uso militar, a robótica e os sistemas autónomos poderão ter um emprego significativo em operações de apoio civil, e no Apoio Militar de Emergência, designadamente para acesso e evacuação de pessoas e bens em locais de difícil acesso ou de acesso perigoso (ambientes contaminados), transporte de cargas, extinção de incêndios, vigilância e proteção de pontos sensíveis e infraestruturas críticas, entre outras.
Pilar 4 – Experimentação e inovação operacional
A complexidade do ambiente operacional, tendencialmente frágil, ansioso, não linear e incompreensível, associada à integração de tecnologias avançadas, designadamente plataformas robotizadas aéreas e terrestres, algumas delas interagindo com o soldado, exigem cada vez mais a experimentação operacional de Técnicas, Táticas e Procedimentos (TTP) antes de estas serem adotadas de forma generalizada.
O reconhecimento dessa complexidade conduziu para além da criação da Divisão de Inovação e Doutrina no Estado-Maior do Exército, à criação de duas entidades cuja ação é complementar. O Centro de experimentação e Modernização Tecnológica do Exército (CEMTEx), com função essencial a de assegurar a vertente do conhecimento corporativo de caráter tecnológico em algumas áreas tecnológicas (robótica, comunicações, fabrico aditivo e subtrativo, explosões, propulsão e balística), enquanto pilar de resiliência do Exército, apoiando o desenvolvimento e/ou integração de novos sistemas com os existentes, em colaboração com a indústria. O Centro de Capacitação Tática, Simulação e Certificação (CCTSC), para que, através de um conjunto de infraestruturas e pessoal dedicado permita, de forma estruturada, desenvolver, entre outras, as seguintes atividades:
• Desenvolver e testar TTP dos baixos escalões e apoiar a validação da introdução de novas funções na organização (e.g. operador de UGS).
• Apoiar na certificação de forças em aprontamento ou no final de ciclos de treino.
• Garantir a gestão integrada dos núcleos de simulação do Exército.
Pilar 5 – Modelação e Simulação
A modelação e simulação tem um cariz fundamental, potenciando as sinergias entre pilares, procurando contornar a dificuldade associada ao aumento da complexidade dos sistemas de armas atuais e futuros, e os custos associados à sua aquisição, manutenção e operação.
Assim, a modelação e simulação surge como um enabler para o treino operacional, devendo ter uma abordagem abrangente e integrada da simulação real, virtual e construtiva, de forma a melhorar a eficácia operacional e assegurar a sua interoperabilidade, seguindo o princípio do treino “train as you fight”.
Pilar 6 – Regenerar Forças e integrar capacidades de nova geração
Por último, importa procurar soluções que permitam regenerar os atuais sistemas (apoio de fogos e apoio de combate) e integrar as tecnologias que venham a ser entretanto desenvolvidas ou adotadas, permitindo assim ao Sistema do Forças do Exército contribuir melhor para os compromissos internacionais assumido por Portugal.
O regresso da guerra ao continente europeu e a consequente alteração do paradigma securitário no espaço da União Europeia e da OTAN, veio despertar os países para um maior investimento nas suas Forças Armadas, de modo que estas se constituam num instrumento credível para fazer face às ameaças do atual ambiente internacional.
Por outro lado, as tendências do futuro ambiente operacional, as quais o Exército português não será alheio, implicarão um esforço contínuo para melhorar e incrementar as capacidades da Força Terrestre em termos de quantidade, qualidade e nível de prontidão, de modo a estar preparada a responder às solicitações nacionais e às resultantes do quadro das Organizações Internacionais em que Portugal está inserido.
Com o desenvolvimento do conceito Força Terrestre de Próxima Geração, o Exército procurou constituir uma visão realista e concreta, suscitando e estruturando algumas linhas de atuação estratégicas, à luz daquilo que poderão ser os possíveis futuros para a Força Terrestre. Ao mesmo tempo, procurou-se potenciar o ativo estratégico do Exército e as condições ímpares em Portugal para o aprontamento de forças, através da implementação de um treino sistemático de armas combinadas, explorando as potencialidades da simulação e os benefícios da experimentação operacional.
O futuro do Exército português continuará a estar centrado na liderança, no entanto, esta deverá passar a estar comprometida com a inovação, desafiando as práticas tradicionais e promovendo uma cultura de experimentação e aprendizagem. A digitalização a par da robótica e dos sistemas autónomos, serão vitais para melhorar a eficiência operacional, fundamentalmente pelo incremento do desempenho do Soldado, permitindo a redução das suas cargas físicas e cognitivas. No âmbito das novas tecnologias, de modo a enfrentar os desafios futuros, será fundamental o desenvolvimento de parcerias estratégicas com a Base Tecnológica e Industrial de Defesa e o Sistema Científico e Tecnológico Nacional. Além disso, a experimentação e inovação, juntamente com a modelação e simulação, serão fundamentais para preparar as forças para ambientes complexos, enquanto a regeneração e integração de capacidades de última geração continuarão a garantir a relevância operacional do Exército português enquanto “Força adaptável, pronta para operar, preparada para combater”.
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* O texto reflete um estudo elaborado pelo Estado-Maior do Exército.