As agressões da Rússia à Ucrânia, a par do conflito aberto no médio oriente e um potencial conflito no mar do Sul da China, indiciam que podemos estar a assistir a uma nova era de confrontação global.
Os sinais de alarme estão à vista, a anexação armada de territórios alheios, o desrespeito pelas convenções e normas internacionais, a utilização de estratégias híbridas numa guerra de desgaste às democracias.
O ambiente de segurança global tornou-se volátil, complexo e fragmentado.
No Atlântico, para além da crescente ameaça convencional vinda do norte, acrescem múltiplas ameaças vindas do flanco sul com impacto na segurança dos estados costeiros, afetando naturalmente a confiança e a economia dos próprios Estados.
Portugal situa-se numa área de importância estratégica para as rotas marítimas do hemisfério Ocidental, para o controlo da atividade militar e logística no Atlântico Norte e para as comunicações digitais, suportadas nos cabos submarinos que ligam África à Europa e esta às Américas.
Adicionalmente, a evolução tecnológica exponencial, nomeadamente no âmbito das tecnologias emergentes e disruptivas, está a alterar paradigmas táticos e a gerar novos dilemas operacionais e estratégicos.
Neste contexto, identificam-se alguns dos desafios que se colocam a Portugal, às Forças Armadas e, concretamente, à Marinha.
a. Ameaças
Uma das principais ameaças identificadas no novo Conceito Estratégico da Aliança de 2022 é a Rússia, considerada a maior e mais direta ameaça à segurança da NATO. Na perspetiva marítima, a Aliança reconhece, em particular, a ameaça submarina russa e que o domínio marítimo é essencial para a segurança e a prosperidade dos aliados.
Na mesma linha, também a nova Estratégia de Segurança Marítima da União Europeia (UE) Revista, divulgada no final de 2023, estabelece um quadro de medidas destinadas a proteger os seus interesses no mar, também à luz da agressão militar injustificada e não provocada da Rússia contra a Ucrânia.
No Atlântico Norte temos verificado o aumento da atividade de navios de guerra da Federação Russa, sendo que o número de navios que cruzaram a área de jurisdição portuguesa no ano de 2023 duplicou, quando comparado com o período homólogo de 2022.
A ameaça submarina, que durante algum tempo foi secundarizada, é novamente uma prioridade e representa um desafio para os Aliados e em particular para Portugal, que detêm uma vasta área de responsabilidade no Atlântico.
Outras ameaças no mar, com tendência de agravamento, impõem desafios no âmbito da segurança marítima dos estados costeiros, tais como: a migração irregular e o tráfico de seres humanos, o crime organizado transnacional, onde se inclui o tráfico de estupefacientes, a pirataria marítima e o roubo armado, o terrorismo marítimo, a garantia da liberdade das rotas de navegação, a proteção de infraestruturas críticas no mar, as ações de espionagem e a interceção de comunicações, a degradação ou depredação do ecossistema marinho e dos seus recursos e a exploração maliciosa de cruzeiros científicos.
Estas ameaças afetam a arquitetura de segurança regional, com impactos diretos no domínio marítimo, cuja dimensão nacional é significativa, e nas operações navais futuras, impondo a necessidade de incrementar não só a presença e as ações de vigilância por parte da Marinha, mas também assegurar um nível de elevada prontidão e flexibilidade de atuação.
b. A inovação tecnológica
Num contexto de aceleração exponencial da inovação tecnológica, cujas manifestações no conflito da Ucrânia têm gerado diversas lições aprendidas, é fundamental promover a transformação na forma como operamos e produzimos efeitos nos ambientes operacionais. Exemplo disso, tem sido a importância crucial do espectro eletromagnético em todas as vertentes das operações militares, especialmente nos domínios cibernético, marítimo, terrestre, aéreo e espacial. A digitalização do campo de batalha, impulsionada por tecnologias disruptivas, reforça a necessidade de uma abordagem mais adaptável e focada no futuro.
A atual tendência de automatização assume preponderância em quatro áreas tecnológicas essenciais: sensores, análise de dados, tomada de decisão e nos vetores de atuação.
Neste contexto, torna-se necessário adotar processos inovadores para o desenvolvimento, aquisição, operação e sustentação de novas capacidades baseadas em tecnologias emergentes e disruptivas, atendendo a princípios de racionalidade económica e assegurando requisitos adequados às ameaças e ao cumprimento das missões.
Neste âmbito, devem constituir-se como pilares prioritários no desenvolvimento futuro a robotização, os sistemas autónomos, o Big Data e a Inteligência Artificial (IA).
Em resumo, o atual ambiente geoestratégico torna imperiosa a capacitação para conflitos de alta intensidade e para a luta antissubmarina. Para além disso, a tendência crescente de agravamento das ameaças que se manifestam nos espaços marítimos e os desafios impostos pela evolução tecnológica recomendam que as Forças Armadas, e a Marinha em particular, embarquem num processo de transformação abrangente que possibilite uma resposta adequada.
O esforço na edificação e no emprego de capacidades requer ainda o necessário alinhamento cooperativo no quadro das alianças e organizações internacionais de que Portugal faz parte.
É, assim, exigida uma Marinha pronta, útil, significativa e tecnologicamente avançada, capaz de ocupar e dissuadir interesses e ações que atentem contra o direito internacional e os interesses nacionais e aliados, bem como contribuir para a defesa e segurança coletivas nas geografias próxima e afastada, nomeadamente no Atlântico Norte, na Europa de Leste, no Atlântico Sul, no Mediterrâneo e no Mar do Norte.
Neste quadro, a Marinha está a realizar um profundo processo de transformação e inovação que incorpora as lições aprendidas das mais recentes evoluções no ambiente estratégico internacional, fomentando, em paralelo, uma cultura própria, onde prevaleça o inconformismo e a vontade de testar e implementar novas soluções.
Apresenta-se, de seguida, o processo de transformação da Marinha sistematizado em quatro grandes dimensões, designadamente, recrutar e reter o capital humano, modernizar e renovar a esquadra, inovar na tecnologia e nos processos e, finalmente, operar de forma holística, distribuída e simbiótica.
a. Recrutar e reter o Capital Humano
No âmbito do recrutamento e da retenção, uma Marinha pronta para combater em conflitos de alta intensidade, de elevado pendor tecnológico e multidomínio, tem de possuir um número adequado de militares altamente qualificados e motivados.
Para isso, a Marinha tem procurado implementar medidas transformacionais, centradas na valorização das pessoas, das suas condições de trabalho e das oportunidades. O objetivo deverá ser contribuir para que a carreira militar volte a ser considerada como uma oportunidade profissional aliciante, que permita o crescimento pessoal e profissional e a adequada compensação financeira pelo compromisso assumido pelos jovens em servir Portugal nas Forças Armadas.
b. Modernizar e Renovar a esquadra
No âmbito da modernização da esquadra, em 2030 teremos uma Marinha renovada. Entre outros projetos, estamos a trabalhar em soluções inovadoras que permitam criar um novo modelo de plataformas, bem como desenvolver navios reabastecedores com capacidades logísticas reforçadas, que proporcionarão uma componente de superfície modernizada e logisticamente sustentável.
Assim, em antecipação ao desenvolvimento do projeto de aquisição dos navios sucedâneos das fragatas, já foi assinado o contrato para a construção da Plataforma Multipropósito, o futuro NRP D. João II.
Será um navio revolucionário que poderá influenciar o desenho da nova geração de navios combatentes, assentes em tecnologias emergentes e disruptivas, abrindo caminho para as operações multi-domínio, distribuídas e simbióticas.
Estes futuros navios estarão aptos para combater em conflitos de alta intensidade, com capacidade anfíbia, com robusta defesa próxima e portadores ou transportadores de armas de longo alcance, bem como de um núcleo variado de drones, continuando a ser dotados de helicópteros orgânicos para missões de transporte de pessoal e armamento pesado.
Entretanto, estamos a terminar a modernização das fragatas da classe “Bartolomeu Dias” e a dar início à modernização das fragatas da classe “Vasco da Gama” com vista a vocacionar estes navios para a guerra antissubmarina com a aquisição de sonares rebocados ativos, uma adaptação fundamental no atual contexto. A modernização destes navios ficará concluída no segundo semestre de 2027.
Brevemente, iniciaremos o projeto e construção de dois navios reabastecedores com capacidades logísticas acrescidas, designadamente ao nível de transporte e projeção de forças anfíbias, mantendo, assim, a permanente capacidade de sustentação logística e mobilidade estratégica das nossas forças e unidades navais.
A partir de 2027, começaremos a receber os essenciais Navios de Patrulha Oceânica da terceira série. Estes navios estarão equipados com sistemas de deteção submarina, passando a desempenhar uma função estratégica no seio da NATO. O desenho modular e adaptativo permitirá transformar um navio tipicamente de fiscalização numa unidade combatente, reforçando o valor militar da Marinha Portuguesa.
Está, também, em curso o programa dos Navios de Patrulha Costeira, que substituirão as atuais Lanchas de Fiscalização Costeira e as Lanchas de Fiscalização Rápida. Estes navios terão capacidades para operar meios não tripulados nos três ambientes.
Além disso, fruto também das lições aprendidas no conflito na Ucrânia, o desenvolvimento e investimento nas capacidades de vigilância e proteção das infraestruturas críticas submarinas deve ser reforçado e centralizado na Marinha, designadamente através de meios navais e veículos submarinos não tripulados.
Os recursos necessários à edificação, operação e manutenção da Marinha não podem ser entendidos como uma despesa, mas sim um investimento estruturante e multiplicador. Assim, a Marinha deve assumir-se como um forte catalisador económico e um acelerador de mudança, pelo que importa também dinamizar o cluster da indústria de construção, reparação e manutenção naval, e pugnar pela conversão da Arsenal do Alfeite, S.A. (AASA) numa entidade altamente qualificada e geradora de valor que sirva os interesses da Marinha e potencie a economia de defesa nacional.
c. Inovar na tecnologia e nos processos
No domínio da inovação, a evolução do emprego de plataformas não tripuladas, a par da Inteligência Artificial, será crucial para as operações em ambiente marítimo, aéreo e terrestre, como aliás é notório no conflito na Ucrânia. Estes meios permitirão criar uma bolha de deteção multidimensional alargada e servirão também para guiar as armas orgânicas aumentando o seu alcance, a precisão e a discriminação sobre os alvos a atingir.
Em crescimento exponencial, a necessidade de sinais eletromagnéticos para comunicação, comando, controlo e transferência de dados, juntamente com a congestão e vulnerabilidade do espectro, cria uma oportunidade para ataques cibernéticos, através das fragilidades inerentes à natureza aberta do espectro e à dependência de tecnologias sem fio que podem comprometer missões e tarefas. Nesse sentido, estamos apostados em desenvolver métodos e estratégias para garantir a segurança do espectro e das operações cibernéticas.
O investimento que estamos a efetuar na robotização da guerra reveste-se de grande pertinência e é uma prioridade, alicerçada num ecossistema que compreende o Centro de Experimentação Operacional da Marinha (CEOM), a recém-criada Esquadrilha de Meios não tripulados (X31), a Célula de Inovação e Experimentação Operacional de Sistemas não Tripulados (CEOV) e a Zona Livre Tecnológica Infante D. Henrique (ZLT).
Em curso está também o processo de transformação digital da Marinha, que irá tornar-se numa alavanca essencial para a modernização dos processos e para a inteligência colaborativa, permitindo interligar plataformas e explorar dados, beneficiando da inteligência artificial com o objetivo de alcançar superioridade organizacional e operacional.
Como corolário deste processo de transformação, a Marinha Portuguesa tem-se assumido como uma referência mundial no domínio das operações robotizadas, participando, neste âmbito, na Maritime Capability Coalition de apoio à Ucrânia e promovendo o maior exercício de experimentação operacional de sistemas não tripulados do Mundo – o exercício Robotic Experimentation and Prototyping Augmented by Maritime Unmmanned Systems (REPMUS), que envolve mais de 1400 pessoas, 25 Marinhas e dezenas de entidades.
d. Operar, de forma holística, distribuída e simbiótica
No domínio das operações, apostamos numa Marinha holística, que compreenda e opere na globalidade do espetro de atuação da segurança marítima. Nesse sentido, importa desenvolver um modelo baseado numa lógica funcional de integração e complementaridade de capacidades, assegurando um paradigma de atuação militar e não militar, com base num modelo pós-moderno e de duplo uso.
A guerra na Ucrânia permitiu identificar mudanças significativas no caráter da guerra, nomeadamente no desenvolvimento das operações distribuídas, da necessidade de integração perfeita homem-máquina na utilização de drones, a que designamos de operações simbióticas e, no âmbito das operações navais, na importância da negação de área (Anti-Access/Area Denial).
A transformação na Marinha assenta, assim, na capacidade de executar operações marítimas distribuídas, apostando na mobilidade, na surpresa, racionalidade e eficiência, com implicações no novo conceito de emprego das forças de fuzileiros e dos mergulhadores, que se insere num alinhamento estratégico transversal com o desenvolvimento dos conceitos dos navios sucedâneos das fragatas e dos navios reabastecedores de esquadra, privilegiando, entre outras, a projeção de força, a operação de veículos não tripulados e a adaptação face aos novos domínios das operações e às tecnologias emergentes e disruptivas.
A exploração dos drones aéreos, de superfície e de subsuperfície permitirá, através das referidas operações simbióticas, maximizar a eficácia operacional, a adaptabilidade, reduzir o risco e potenciar o efeito multiplicador, que decorre da simbiose entre a inteligência e a criatividade inerente aos seres de carbono e a velocidade e a precisão que caracteriza os seres de silício.
Ainda neste âmbito, a aquisição em curso dos novos meios possibilita a dispersão de meios e o reforço da presença naval nas ZEE dos Açores, da Madeira e do Continente, possibilitando, por exemplo, contrariar a ameaça submarina Russa. Este novo paradigma conduz à necessidade de reforço das facilidades portuárias fora da área de Lisboa, reforçando a BNL e os Pontos de Apoio Naval de Troia e Portimão e edificando uma Base Naval na Praia da Vitória, Açores, e um PAN em Viana do Castelo e no Funchal, reforçando as capacidades já existentes.
Em conclusão, o atual conflito na Ucrânia e as mudanças geopolíticas e geoestratégicas no Sistema Internacional, sublinham a importância da capacidade de adaptação a novos cenários de guerra, onde as ameaças híbridas assumem um papel preponderante.
A Marinha, face ao ambiente estratégico envolvente, tem vindo a adaptar-se em três áreas:
– Esforço genético na qualificação e valorização dos seus recursos humanos e na renovação da esquadra numa perspetiva de flexibilidade, de futuro (acomodar novas tecnologias) e privilegiando a luta antisubmarina, que é, de facto, o aspeto mais relevante no quadro da defesa do espaço atlântico;
– Na inovação e transformação tecnológica, com implementação do uso de sistemas não-tripulados e do desenvolvimento da IA, tão decisivos para as batalhas do futuro como bem demonstra o conflito na Ucrânia; e na
– Reconfiguração dos conceitos de operação, modernizando-os e adaptando-os às novas necessidades, como é o caso recente do novo conceito de emprego operacional de forças de Fuzileiros no âmbito das operações distribuídas.
O conflito na Ucrânia está a provocar uma resposta inequívoca do Ocidente e de Portugal. A Marinha está comprometida com o apoio à Ucrânia, vai integrar a coligação Marítima e continuar a modernizar-se, tornando-se mais resiliente e preparada, para garantir os nossos interesses, os compromissos no quadro da segurança cooperativa e para que Portugal e os Portugueses usem o mar em segurança.
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* O texto reflete a visão da Marinha e foi elaborado com o contributo do Estado-Maior da Armada.