Jorge Dias (1985: p. 56) destaca o paradoxo como um traço identitário do ser português.
Luís Vaz de Camões será um exemplo maior de perfil contraditório e, simultaneamente, também de figura geradora de contradições.
Senão, vejamos: o príncipe dos poetas portugueses, símbolo do nacionalismo, afinal, é descendente de galegos (tese suportada por Fernão Lopes, Manoel Severim de Faria, Lope da Vega, Manuel de Faria e Sousa, que referem Vasco Pires de Camões, poeta galego, como seu antepassado), sendo reivindicado também como herói da Galiza, a título de exemplo, por Frei Félix de La Gandára, in Armas i Triunfos. Hechos heroicos de los hijos de Galicia.
Fr. Martín Sarmiento, cit in FEIJÓ: 2019, p. 20, vai mais longe e assume que o génio poético de Luís Vaz é herança galega.
Paradoxal é ainda o facto de a efeméride evocativa do poeta ser a data da sua morte, 10 de Junho, sugerindo, a olhares mais travessos, que a mesma seria uma benesse (ao olhar dos jovens que têm o poema épico de Camões como leitura obrigatória nos 9.º e 10.º anos, esta tese não é assim tão absurda: imagine-se quantas estrofes se acrescentariam às 1102 se o poeta tivesse vivido mais tempo. Quão dura seria a vida dos nossos adolescentes.). Obviamente que a escolha desta data se prende com o desconhecimento do dia do seu nascimento. Contudo, talvez se justificasse que o Dia de Portugal e de Camões fosse celebrado a 12 de março, a data da 1.ª edição d’Os Lusíadas, afinal a epopeia do povo português.
Contrassenso maior, os seus compatriotas reconheceram-no como “príncipe dos poetas” e Portugal proporcionou-lhe uma vida de miséria extrema, sujeito à caridade de amigos.
As contradições da pátria sobejaram-lhe, que, para ele, bastavam-lhe as suas somente.
Ascendências à parte, é inquestionável a portugalidade do poeta, intrínseca na singularidade do seu olhar e do seu percurso de vida, podendo-se assumir Camões como um símbolo de Portugal e dos portugueses. Também pelo carácter contraditório da figura e da obra, na esteira de Jorge Dias.
São várias as dicotomias em torno das quais se desenrola o universo do poeta.
A começar pela vida.
Como esclarece José Hermano Saraiva (OSÓRIO: 00:00:13) é muito o que o poeta nos legou e pouquíssimo o que sabemos sobre ele, mas parece ser assumida a origem nobre, a par dos fracos recursos económicos, o que explicará, talvez, a facilidade com que se movimentava nos mais diversos espaços sociais. Com o mesmo à-vontade frequentava o ambiente palaciano, as tabernas e ruelas mal-afamadas, com passagens pela prisão e desterros.
De erudição extrema, não há provas documentais de que tenha frequentado a Universidade, então, em Coimbra, mas, pela obra, é incontornável o árduo estudo e o elevado conhecimento, evidências de um perfil curioso, culto e determinado.
A roçar o insólito, acresce o facto de que nem tudo o que Camões “escreveu” é da sua autoria. Clarifiquemos: grande parte da sua obra lírica foi publicada somente após a morte do poeta, sendo estes poemas coligidos em épocas diversas, a partir de diferentes manuscritos, não assinados, com critérios de seleção díspares e questionáveis. Aconteceu, então, que vários poemas assumidos, em algum tempo, como sendo da autoria de Camões não o são efetivamente, tendo sido expropriados, por camonistas demasiado entusiasmados e pouco criteriosos, poetas como Diogo Bernardes, Sá de Miranda, Soropita, entre outros.
De temperamento irascível, impulsivo e conflituoso, a valer-lhe o epíteto de Trinca-Fortes, revela, surpreendentemente, uma capacidade de disciplina, labor e brio, evidente no rigor da sua obra, particularmente na rigidez formal d’Os Lusíadas, com 1102 oitavas, todas com versos decassilábicos e esquema rimático fixo – rima cruzada nos seis primeiros versos e emparelhada nos dois últimos.
A sua autorrepresentação oscila entre o retrato negativo de um indivíduo que se responsabiliza pelo percurso trágico da sua vida, “Erros meus, má fortuna, amor ardente”, se caracteriza como “humilde, baixo e rudo” (Os Lusíadas, X, 154), e que, paradoxalmente, tem a consciência de ser um homem de exceção, correspondendo ao ideal renascentista, na conciliação da erudição com a experiência, mas, sobremaneira, pelo seu talento enquanto poeta: “Nem me falta na vida honesto estudo, / com longa experiência misturado, / nem engenho, que aqui vereis presente, / cousas que juntas se acham raramente” (Os Lusíadas, X, 154).
A obra é indissociável do seu pensamento, perfil psicológico e da sua biografia, pelo que também se define por contrastes e oposições.
Luís Vaz [1524?-1580?] foi, indiscutivelmente, um homem do Renascimento, humanista, com um percurso de vida a consolidar uma largueza de espírito singular, cultivada, sem margem para dúvidas, por leituras sistemáticas, denunciadas na extrema erudição evidente no seu legado.
A mundividência que as viagens por África e pelo Oriente lhe proporcionaram foi o garante da experiência complementar ao seu saber e do conhecimento da essência humana manifesto no seu pensamento.
Camões conciliou os ideais do seu tempo com os do passado medieval, sem negar uns ou outros.
Em termos formais, a sua obra lírica é testemunho do culto da tradição, bem como da inovação (vide ponto 4).
As próprias competências pelas quais se identifica, como militar, “braço às armas feito” (Os Lusíadas, X, 155), e como poeta, “mente às musas dada” (Os Lusíadas, X, 155), sintetizam duas atitudes radicadas em mentalidades distintas, a medieval e a humanista.
Da Idade Média, reflete os ideais cavalheirescos, a perspetiva histórica e a hierarquização social.
Na lírica, enquanto sujeito poético, assume-se um cavaleiro andante ao serviço do amor, o ideal supremo (vide ponto 8); na epopeia, avocou o espírito de cruzada, na defesa da expansão da fé, elegendo a viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia como o eixo central da narrativa. Note-se que esta viagem é configurada como um serviço a Deus (Os Lusíadas, VI, 82).
Em diversos episódios épicos, adota a perspetiva medieval da história dos grandes feitos masculinos e militares, como a Batalha do Salado ou a Batalha de Aljubarrota.
Inclusivamente, a veneração à figura do rei está tão incrustada no poeta que, na narração do episódio “Inês de Castro” (III, 118-133), D. Afonso IV surge completamente desresponsabilizado da morte de Inês. O narrador responsabiliza o amor, o povo, o destino, nunca o monarca, que, inclusivamente, é caracterizado como sensato (est. 122), piedoso (est. 134), bondoso (est. 130). Curiosamente, o único adjetivo de valor negativo usado ocorre somente na qualificação de D. Afonso IV na relação familiar com os netos que ficam órfãos de mãe, “avô cruel” (est. 125).
A própria religiosidade está eivada de uma conceção medieval: perante a grande tempestade que Vasco da Gama consegue enfrentar não é o feito do homem a ser enaltecido, mas sim a intervenção milagrosa de Deus (Os Lusíadas, VI, 94).
Imbuído desta mentalidade medieval, ao terminar a obra, incentiva o rei à guerra no Norte de África, os vassalos ao serviço do reino, dando ele próprio o exemplo, ao dispor-se a servir o rei como militar e como poeta (C.X). Pouco tempo depois, morreria doente e desiludido com a tragédia de D. Sebastião, a quem vaticinara tanta glória.
Ainda assim, a cultura renascentista marca indelevelmente a obra do poeta, que é, sobretudo, um homem do seu tempo.
Além das temáticas e conceitos versificatórios explorados na lírica, n’Os Lusíadas, a influência clássica surge logo na escolha do género – a epopeia –, à imitação da arte greco-latina, sendo que o poeta cumpre escrupulosamente todos os preceitos do género, com uma dificuldade acrescida, convencer que o povo português é um herói épico à altura de Eneias e de Ulisses (vide ponto 5).
A escolha do herói e da matéria épica, a viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia, resultam, efetivamente, de um processo de valorização do humano, de exaltação da capacidade de superação do homem, assumida como forma de imortalização.
O foco em Vasco da Gama, segundo Manuel Severim de Faria, poder-se-ia explicar por motivos familiares (era antepassado do lado paterno), mas dever-se-á, essencialmente, à época em que o poeta viveu, algumas dezenas de anos decorridos da proeza do Gama. Vivia-se, então, em Portugal, um legítimo orgulho no ser português e uma crença nas capacidades do homem.
Foi a junção da fome à vontade de comer: havia a matéria épica, havia o género, juntou-se-lhes o homem capaz de escrever a obra.
À luz da mentalidade dos nossos dias, será evidente que o materialismo da lógica expansionista não se coaduna com o espírito e os valores cristãos. Contudo, Camões assume a expansão portuguesa como uma ação subordinada ao ideal cristão: “Vós [portugueses] por muito poucos que sejais, / Muito façais na santa Cristandade” (VII, 3).
Também isso definirá o povo português, “A última ideia [Fé] justificou a primeira [Império] e não o inverso” (Dias: 1985, p. 30).
N’Os Lusíadas, o poeta rege com mestria as suas referências cristãs e a mitologia, exigida enquanto regra do género épico e usada como forma de embelezar a ação.
O maravilhoso cristão contribui, por um lado, para enquadrar os valores que presidiram à expansão portuguesa, mas, por outro lado, de certa forma, reduz a grandeza dos feitos humanos, atribuídos a Deus (vide ponto 1).
Em contraponto, o maravilhoso pagão é uma estratégia de enaltecimento do humano, na medida em que os portugueses dominam deuses e figuras mitológicas (Neptuno, Marte, Adamastor), permitindo ao poeta um exercício de imaginação, liberdade e embelezamento do texto.
O plano mitológico é indissociável do plano da viagem, mostrando que as ações de deuses e homens andam a par.
Sendo nesse aspeto que a mestria de Camões se evidencia, com passagens narrativas quase surrealistas.
A título ilustrativo, no excerto “Tempestade e Chegada à Índia”, Baco, aliado aos ventos, consegue provocar uma tempestade terrível; o Gama, desesperado pede ajuda a Deus, em vão, pois a tempestade aumenta. Quem o salva é Vénus, com a ajuda das ninfas, que se adornam com grinaldas de flores no cabelo, seduzindo e acalmando os ventos.
No final, o Gama ajoelha-se a agradecer a Deus.
Os deuses mitológicos surgem, assim, subordinados a uma entidade superior, o Deus cristão.
Esta hierarquia atípica é explicitada no episódio “Consílio dos Deuses”: “Deixam [os deuses] dos sete céus o regimento, / Que do poder mais alto lhe foi dado, / Alto poder que só co pensamento / Governa o Céu, a Terra e o Mar irado” (I, 21).
No crivo da censura, Frei Bartolomeu Ferreira (ANASTÁCIO: 2012) houve por bem alertar os leitores que o autor “usa de ua ficção dos Deuses dos Gentios”, esclarecendo que a mesma serve o propósito de esclarecer a dificuldade da aventura do Gama, “ficando sempre a verdade de nossa sancta fé”.
Talvez a supracitada estrofe 21, do canto I, tenha ajudado a esta assunção.
O poeta cultivou a lírica tradicional de inspiração medieval, com redondilhas, cantigas e vilancetes, explorando de forma superior a medida nova renascentista, o dolce stil nuovo, do qual os seus sonetos decassilábicos são paradigmáticos.
A sua obra lírica concilia assim a tradição com as tendências artísticas mais novas da época, as formas de cariz popular com a poesia aristocrática.
Na linha do classicismo renascentista, preconiza a imitação dos clássicos gregos e latinos, concretamente, na configuração das epopeias antigas, de Virgílio e de Homero, como modelos da sua narrativa épica.
Contudo, evidenciando a modernidade da sua genialidade criativa, Camões não só mostrou saber fazer igual aos grandes poetas da Antiguidade, como evidenciou talento para os superar numa missão mais difícil.
Aos heróis individuais e mitológicos da Ilíada e da Odisseia, o nosso poeta contrapõe um herói coletivo e real, conseguindo de forma magistral e verosímil configurá-lo como um verdadeiro protagonista épico, superando a sua própria humanidade.
Assim, o povo português vê-se elevado à categoria de herói supra-humano.
No título, Os Lusíadas são os descendentes de Luso, configurando-se uma ascendência divina. Na Proposição, o domínio dos mares e a vitória nas guerras são, afinal, a submissão dos deuses a um valor superior: “Que eu canto o peito ilustre Lusitano / A quem Neptuno e Marte obedeceram” (I, 3).
Culmina a obra com a elevação do Gama e da sua tripulação a um estatuto divino, pela união com as ninfas e pelo acesso ao conhecimento.
A viagem do Gama, em particular, e toda a aventura marítima portuguesa são representadas n’Os Lusíadas como fruto de uma característica distintiva e identitária dos portugueses, a ousadia: “Ó gente ousada, mais que quantas/ no mundo fizeram grandes cousas” (V, 41).
É pela mesma que o gigante Adamastor se indigna com os portugueses, visando puni-los. O próprio já fora anteriormente punido pelos deuses pelo seu atrevimento.
No canto IV, a figura do Velho do Restelo, “um velho, d’aspeto venerando” (est. 94), com o seu saber de experiência feito, faz a apologia da contenção e da prudência, constatando que “Nenhum cometimento alto […] Deixa intentada a humana geração” (est. 104).
Certamente que o poeta, como o Adamastor, terá sofrido na pele as consequências da sua audácia, ainda assim, na obra, prevalece a apologia dos espíritos audazes, na Ilha dos Amores, assumida como o prémio que o mundo guarda aos “feitos grandes, da ousadia” (IX, 88).
Na globalidade da obra lírica, o poeta explora uma diversidade de retratos femininos que vai da beleza da rapariga do povo, “Fermosa e não segura” (“Descalça vai pera a fonte”), à senhora de perfil petrarquista, “ Um mover d’olhos brando e piedoso” ou “Ondados fios de ouro reluzente”, mas também à exaltação da sensualidade e sedução exóticas, como no poema “Endechas a Bárbara Escrava”, a realçar a “Pretidão de Amor”.
É, enfim, a exaltação da mulher de diferentes níveis sociais e de diversos tipos físicos, também esta uma evidência da sua portugalidade: “o português tem decidida inclinação por mulheres doutras raças” (Dias: 1985, p. 54).
A temática amorosa atravessa toda a obra do poeta, evidência certamente da sua experiência de vida, que se suspeita comprometida e iluminada pela vivência do amor: “Erros meus, má fortuna, amor ardente / Em minha perdição se conjuraram / Os erros e a fortuna sobejaram / Que para mim bastava amor somente”.
Este sentimento reveste-se de uma complexidade de representações.
É referido enquanto fonte de desgraça, como nos versos citados ou no episódio “Inês de Castro” (Os Lusíadas, III, 118-135), qual força cruel, sequiosa de sangue, a determinar a morte de Inês e a destruir a felicidade dos amantes.
O mesmo sentimento é capaz de felicidade extrema, “Estando em terra, chego ao céu voando” (in “Tanto de meu estado me acho incerto”).
Surge caracterizado como, ele mesmo, um sentimento contraditório, “Amor é fogo que arde sem se ver / Ferida que dói e não se sente/Um contentamento descontente […] tão contrário a si”.
Assumida a missão de vida pelo poeta, “Farei que Amor a todos avivente” (in “Eu cantarei de amor tão docemente”); simultaneamente, é reconhecida a falta de verdadeira dedicação à sua vivência pessoal: “Em várias flamas vagamente ardia” (in “Do tempo que de amor viver soía”).
Também neste campo se inscreve nos traços coletivos da portugalidade, segundo Dias, “[o português] é capaz de mostrar grande afeição e amor profundo” (1985: p. 54).
Na narrativa épica, a dimensão espiritual da viagem é assumida na reivindicação da fé como motivação, mas também na configuração do percurso do Gama como um caminho iniciático, recompensado pelo acesso ao conhecimento, nunca antes revelado ao homem.
Também na lírica há a espiritualização do amor, de conceção platónica, enquanto sentimento idealizado e contemplativo, “pura semi-ideia” (“Transforma-se o amador na cousa amada”), forma de ultrapassar a morte, “E amor é feito de alma e sempre dura” (“Aquele que do amor descomedido”).
Mas é de Camões que falamos, assumido que “Em baixas prisões fui um tempo atado”, logo o pendor da sensualidade irrompe tanto na lírica como na épica: “Está no pensamento como ideia / [E] o vivo e puro amor de que sou feito / Como matéria simples busca a forma” (“Transforma-se o amador na cousa amada”).
No episódio “Ilha dos Amores”, o poeta liberta a sua imaginação erótica e, numa perspetiva assumidamente de erotismo masculino, descreve um espaço paradisíaco, com belas ninfas nuas, prontas a servir os bravos portugueses, como recompensa pelos grandes feitos alcançados. A nudez e a sexualidade são descritas de forma sugestiva, apelando às diversas sensações. Com um piscar de olho ao leitor, o poeta alerta que o vivido na ilha preparada por Vénus “Melhor é experimentá-lo que julgá-lo. / Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo” (C. IX, 83).
Ainda assim, a obra passou no crivo da Inquisição. Como?
O poeta atribuiu uma dimensão simbólica ao erotismo, a união com as ninfas foi legitimada num compromisso formal, assumidas elas como esposas. Essa ligação era a forma de divinização dos heróis.
Antes, Vénus garantira, com a ajuda de Cupido, que as ninfas estariam apaixonadas. O amor a dignificar o sexo.
Há ainda a explicitação do sentido alegórico: as ninfas e a ilha mais não são que as “Honras que a vida fazem sublimada” (IX, 89).
Talvez por isso, Frei Bartolomeu Ferreira, o censor, atestou que “não achei neles [Os Lusíadas] cousa algua escandalosa, nem contraria à fé e aos bons costumes. […] é poesia e fingimento” (ANASTÁCIO: 2012).
Apesar do aproveitamento ideológico d’Os Lusíadas, enquanto obra nacionalista e enaltecedora da glória portuguesa, o poeta não se cinge ao elogio, revelando um olhar crítico e, inclusivamente, amargurado com a realidade do seu tempo.
Paradigmática desta atitude é a passagem “Despedidas em Belém”, na qual se dá conta da partida da armada do Gama rumo à Índia. Além de acentuar a grandeza do feito, o poeta dá a voz aos que discordavam deste empreendimento, sobretudo familiares dos homens que partiam a enfrentar o mar desconhecido.
Nos discursos lacrimosos de uma mãe e de uma esposa, fazem-se ouvir todas as mulheres que ficaram sem o sustento, sem a proteção e sem o amor.
No mesmo momento histórico, o Velho do Restelo assume que o excesso de ambição e a cobiça levam à tragédia, ao sofrimento, à morte, deixando o reino sem proteção.
Nesta dicotomia, Camões assume uma postura pós-modernista, muito antes de tempo, na medida em que faz a defesa da viagem e a sua condenação.
Nas considerações, mormente, no final do canto X, o poeta dá largas ao seu espírito crítico, adotando um tom declaradamente antiépico para, entre outros aspetos, atestar o materialismo como fonte de corrupção, denunciar a indiferença a que são votadas as letras em Portugal, uma pátria “metida / No gosto da cobiça e na rudeza / Dua austera, apagada e vil tristeza” (X, 145).
Em suma, no quinto centenário do nascimento do nosso poeta maior (salvaguardando-se a subjetividade da escala de apreciação), ainda há muito a descobrir sobre ele.
Certas são as contradições em torno da receção da obra, da representação biográfica e do perfil do poeta.
O legado que nos deixou revela-nos um homem extremamente erudito, disciplinado e rigoroso, características discordantes do Trinca-Fortes intempestivo e boémio.
Herdeiro de uma mentalidade medieval, evidente nas questões da fé, do proselitismo religioso e do serviço ao rei, é, sobretudo, um homem do seu tempo, que encarna o ideal da aliança entre a erudição e a experiência.
Desenvolveu toda a sua obra em torno de temáticas e características contrastantes ou mesmo contrárias, evidências da complexidade do seu pensamento e de um profundo conhecimento do humano.
Algumas das dicotomias do universo camoniano desenrolam-se em torno de uma diversidade de representações femininas e da complexidade do sentimento amoroso; acrescem o Medievalismo vs. Humanismo, com implicações na organização da lírica (Medida Velha vs. Medida Nova); Fé vs. Império; Maravilhoso Cristão vs. Maravilhoso Pagão; Imitação dos Clássicos vs. Superação dos Clássicos; Prudência vs. Ousadia; Espiritualização vs. Sensualidade.
O pendor crítico e reflexivo do poeta confere modernidade e atualidade à sua obra.
ANASTÁCIO, Vanda – Convergência Lusíada, n.º 27, pp. 28 e 29. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 2012.
CAMÕES, Luís de – Os Lusíadas. Emanuel Paulo Ramos [Ed]. Porto: Porto, 1974.
DIAS, Jorge – Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa. Lisboa: INCM, 1985.
CIDADE, Hernâni – Luís de Camões. O Lírico. Lisboa: Presença, 1992.
CIDADE, Hernâni – Luís de Camões. O Épico. Lisboa: Presença, 1985.
FARIA, Manuel Severim de – A Vida de Camões. Mem Martins: Europa-América, 1987.
FEIJÓ, Elias J. Torres – Portugal Para Quê? Seis Marcos no Relacionamento Galego-Português. Santiago de Compostela: Andavira Editora, 2019.
OSÓRIO, João (realizador) – Grandes Livros, episódio: Os Lusíadas. RTP 2, s/d.
SANTOS, Joaquim José Moreira – O Medievalismo em Camões. Os Doze de Inglaterra. Coimbra: Almedina. 1985.
Mestre em Estudos Portugueses – Literatura e Cultura dos Países Africanos de Expressão Portuguesa.