Com que melhor podemos, um dizia,
Este tempo passar, que é tão pesado,
Senão com algum conto de alegria,
Com que nos deixe o sono carregado?
Responde Leonardo, que trazia
Pensamentos de firme namorado:
Que contos poderemos ter milhores,
Para passar o tempo, que de amores?
Não é, disse Veloso, cousa justa
Tratar branduras em tanta aspereza,
Que o trabalho do mar, que tanto custa,
Não sofre amores, nem delicadeza;
Antes de guerra férvida e robusta
A nossa história seja, pois dureza
Nossa vida há-de ser, segundo entendo,
Que o trabalho por vir mo está dizendo.
(Canto VI, 40-41)
Na Proposição d’Os Lusíadas indicam-se, como heróis, os “...barões assinalados”, pelo esforço guerreiro ou seja, aqueles que “...foram dilatando / A fé, o Império, e as terras viciosas / de África e de Ásia andaram devastando.” (I, 2)
Logo a seguir, e ciente de que o seu enaltecimento não pode ser feito apenas pelo engenho humano, Camões dirige-se às ninfas do Tejo, solicitando a inspiração necessária para levar por diante um Canto novo. Nesse passo, explicita bem o tipo de ajuda de que necessita. Não se trata já do auxílio que lhe favoreceu o “verso humilde”. O que agora se requer é um “estilo grandíloco e corrente”, possibilitando “igual canto aos feitos da famosa/ gente vossa, que a Marte tanto ajuda”. (I, 5)
A nota de ímpeto guerreiro mantém-se e acentua-se na terceira e última parte do que podemos considerar como Prólogo da epopeia. Referimo-nos à extensa Dedicatória (de 13 estâncias), dirigida ao jovem Rei D. Sebastião. Lembrando o exemplo dos dois avós (Carlos V e D. João III), o poeta é claro no caminho que aponta ao monarca: “Em, vós esperam ver-se renovada / Sua memória e obras valerosas”. (I, 17)
Apreciando o poema na sua globalidade, fica-se com a ideia de que o programa que se anuncia no início acaba por cumprir-se. Não faltam batalhas campais, desde logo: Ourique (III, 42-54), Salado (III, 109-117) e Aljubarrota (IV, 29-43). Não falta ainda a evocação de cercos e conquistas: na Europa, em África e no Oriente.
A própria viagem à Índia é inscrita no ideário cruzadístico que tinha sido apontado a Afonso Henriques na já citada batalha de Ourique e afastada da lógica mercantil que, em boa parte, a determinou. Com o intuito de tornar mais nítido esse objetivo, o poeta faz radicar a decisão de preparar e enviar a armada num episódio onírico: a aparição dos rios orientais ao Rei D. Manuel. São justamente o Indo e o Ganges que visitam o monarca em sonhos e lhe anunciam o tempo das conquistas orientais, mencionando o sacrifício e, por fim, o sucesso do empreendimento:
Custar-te-emos contudo dura guerra;
Mas insistindo tu, por derradeiro,
Com não vistas vitórias, sem receio
A quanta gentes vês porás o freio.
(Canto IV, 74)
Boa parte dos obstáculos encontram-se relacionados com os interesses árabes já instalados ao longo da costa oriental da África e na orla ocidental da Ásia. Assim sucede, em concreto, com o alinhamento entre estes mesmos interesses e a figura de Baco, o deus conquistador do Oriente. A tenaz oposição à viagem movida por esta entidade (companheiro de Luso, por sinal) deve-se ao facto de o sucesso dos lusitanos colocar em perigo o ascendente que detinha nessas paragens.
Pode então concluir-se que o objetivo da Proposição se cumpre e que as Musas responderam ao apelo do poeta, concedendo-lhe a “fúria grande e sonorosa” que pediu, em vez da inspiração humilde relacionada com a poesia lírica?
Coloquemos a questão por outras palavras: Os Lusíadas situam-se na senda de poemas épicos predominantemente centrados no ardor guerreiro ou devem ser antes colocados na senda das epopeias híbridas, nas quais a Guerra não se basta a si mesma, servindo de base para a representação de valores morais e afetivos?
A resposta a esta pergunta está longe de ser irrelevante. Bem pelo contrário: afigura-se central para definir a identidade da epopeia camoniana.
A ela procuraremos responder nas próximas páginas. Para tanto, integraremos a questão formulada num conjunto alargado de dualidades que atravessam o poema.
Familiarizado com um processo de criação centrado no computador, o leitor contemporâneo mal pode já imaginar o processo oficinal que se encontrava por detrás da feitura de um livro no século XVI.
Escrito à mão, em folhas de papel de textura bem mais espessa e grosseira do que aquele a que hoje estamos habituados, os carateres eram desenhados com uma pena, de pato ou de ganso, alimentada a tinta, que ia da cor sépia ao azul e ao preto.
Escrevia-se então a um ritmo bem mais lento, o que favorecia a ponderação de cada palavra. De todo este processo resultava um volumoso manuscrito, que requeria especiais cuidados de conservação, na medida em que podia ser afetado por vários tipos de acidente, com destaque para a humidade e o fogo.
Esse mesmo manuscrito deveria ser submetido ao exame de entidades civis e eclesiásticas, a fim de obter licenças de impressão. A sua entrada na oficina do tipógrafo marcava uma nova fase na criação material da obra. De posse dele, o tipógrafo dedicava-se durante vários meses ao trabalho de composição: havia primeiro que selecionar os tipos metálicos, até se alcançar uma palavra, uma frase, uma página. Após a impressão, havia finalmente que coser os fólios que, juntos, tomavam a forma de códice ou de livro.
Os volumes eram compostos um a um, já que a matriz ia sendo desmanchada, à medida que cada livro ia avançando no processo de impressão. Este processo tanto dava azo a erros (eventualmente não cometidos em exemplares anteriores) como a melhorias. Assim se explicam as diferenças maiores ou menores, que hoje se verificam entre os exemplares de uma mesma edição quinhentista.
Por todas estas razões, o processo criativo de um livro como Os Lusíadas teve necessariamente que desenrolar-se ao longo de muitos anos. Porque o texto demorou a escrever, desde logo; mas também porque seguramente demorou muito tempo a pensar.
A própria arquitetura dos planos, envolvendo a forma como se dispunham e entrelaçavam, deverá ter suscitado hesitações e tentativas de vário tipo. Na tentativa de reconstituir o processo, o lusófilo e camonista alemão W. Storck imagina que, ainda em Lisboa, Camões pode ter começado por querer contar em verso apenas a viagem descobridora de Vasco da Gama. Só depois, quando se encontrava no Oriente, lhe terá ocorrido agregar a História de Portugal.
Neste mesmo registo de hipótese, podemos equacionar outros aspetos. Seria estranho, por exemplo, que Camões se tivesse limitado a escrever as (1102) estâncias que acabou por incluir no poema. Mais cedo ou mais tarde (dependendo do usus scribendi de cada um), a generalidade dos escritores (de qualquer época) não deixa de aplicar à sua obra um processo de depuração. O mais provável é que, antes da entrega do manuscrito na oficina de António Gonçalves (e antes da submissão às instâncias censórias), também Camões tenha procedido a uma escolha ditada por motivos de ordem estética, moral ou política1.
É justamente sobre alguns desses polos de hesitação que, de seguida, procuraremos fazer incidir a nossa atenção. O objetivo essencial é mostrar como o poema foi construído no quadro de um complexo trabalho mental.
1.1 Matéria lendária // matéria verídica
Um dos principais dilemas que Camões enfrentou diz respeito à substância do seu poema: deveria optar por matéria lendária ou deveria fixar-se em matéria verídica? Não faltavam modelos e argumentos a favor de uma e de outra solução.
A favor da matéria lendária ou fantasiosa situava-se o argumento da liberdade criativa, que era muito superior àquela que o poeta conservaria se viesse a optar por matéria verídica.
A vantagem da opção pela matéria histórica era de outra natureza: residia, sobretudo, na possibilidade de melhor influenciar o público recetor. É sabido que mais do que a ficção (mesmo do que a ficção verosímil) a verdade detém um potencial persuasivo que permite a quem fala ou a quem escreve tocar mais profundamente quem ouve ou quem lê.
Como bem sabemos, Camões viria a adotar a matéria verídica, tomando-a como base dos dois níveis da sua narração: a História de Portugal, contada encadeadamente por Vasco da Gama ao rei de Melinde, entre os cantos III e V, e, de forma seletiva, por Paulo da Gama ao Catual, no canto VII. Por sua vez, a viagem à Índia é contada pelo narrador de primeiro nível a um destinatário interno. Num caso e no outro a margem de efabulação do poeta fica limitada à possibilidade de selecionar os episódios: podia não ter incluído o episódio de Inês de Castro ou podia não ter feito depender a Batalha do Salado da súplica da “fermosíssima” Maria. Do mesmo modo, poderia ter conferido menos importância ao facto de Nun’Álvares Pereira defrontar os próprios irmãos em Aljubarrota. No que se refere ao essencial da matéria histórica, contudo, o poeta tomou por base os factos registados nas crónicas que decerto conheceu: as Crónicas Breves de Santa Cruz ou a Crónica de D. Afonso Henriques, de Duarte Galvão para a parte respeitante ao período medieval, e as Crónica de Castanheda, Barros, Gaspar Correia e Diogo do Couto, para a parte da expansão asiática.
A maior quota de liberdade reservou-a Camões para a fábula mitológica. Usando dessa liberdade, o poeta colocou Vénus como protetora dos portugueses, e Baco como opositor à sua chegada à Índia. Resulta ainda da sua inventiva a construção da figura do Adamastor: não tanto como obstáculo a superar no domínio dos mares mas enquanto vítima de um engano amoroso.
Da conciliação entre verdade e fantasia não chega porém a resultar uma verdadeira dialética. A mitologia existe no poema não para servir de contraponto à verdade histórica mas para a sublinhar. É com a verdade que se inicia o poema e é com ela que acaba.
Quando poderia ter concluído a ação com a apoteose da ilha dos Amores, Camões prefere fazer regressar os heróis à Pátria, para aí servirem de exemplo e de esperança aos vindouros (X, 144).
E é nessa base que se conclui a epopeia: com um apelo saído da história e dirigido à história. Falamos do apelo para que D. Sebastião retome a missão original do Reino. Afonso Henriques tinha-o fundado sob o signo da cruzada e o rei para quem Camões escreve é chamado a refundá-lo, orientando a conquista contra os mouros de Marrocos.
1.2. Herói individual // herói coletivo
Uma outra hesitação – ainda central – deve ter acometido a mente de Camões. Se é certo que a elaboração de uma epopeia pressupõe a escolha de um herói (não há realmente epopeias centradas em figuras comuns), a natureza desse herói envolve escolhas difíceis: pode o protagonista ser mais ou menos ativo, desde logo; pode ser mais ou menos humanizado (sentir medo ou ser sempre corajoso). Na epopeia de Camões, contudo, a escolha verifica-se em função de um outro critério: trataria o poema de um herói individual ou de um herói coletivo?
O que acabamos por ver em Os Lusíadas é uma moldura de heroísmo, completa e exigente. Dela faz parte um conjunto de virtudes de natureza moral, intelectual e física. À medida que as diferentes figuras são confrontadas com o modelo em apreço, porém, as insuficiências tornam-se evidentes: Afonso Henriques, apesar de toda a sua bravura, não é um filho virtuoso; da mesma forma, D. Afonso IV, que tinha sido sensível à súplica da filha, acaba por não usar da misericórdia para com Inês; por sua vez, Vasco da Gama, o capitão das naus descobridoras, não revela nenhum tipo de familiaridade com as musas.
Esta longa série de incompletudes levou já alguns críticos a concluir que, escolhendo a história, Camões ficou demasiado limitado por ela. De tal modo que chega a reservar para si (e apenas para si) o estatuto de herói (Macedo, 1980).
A escolha de um herói coletivo serve retamente esse desígnio: “o peito ilustre lusitano” que Camões se propõe cantar representa não apenas aqueles que fizeram a História de Portugal mas também os que nela podem vir a inscrever-se, mesmo que como heróis parcelares ou incompletos.
Só assim se entende que, depois de concluída a ação principal, o poeta tenha sentido necessidade de rematar a epopeia de uma forma aparentemente tão insólita: falamos das estâncias finais, em que se apela a uma nova partida. Trata-se da partida do Rei para África, qual Afonso Henriques ressuscitado e transfigurado. É a esse rei que Camões se oferece enquanto cantor e enquanto soldado (X, 155). Se o herói não fosse coletivo, o poema não poderia ter este remate futurante, ainda ávido de ação.
1.3. Fé e Mitologia
Uma outra escolha que Camões teve que fazer é de carácter estético e relaciona-se com o tipo de mitologia a utilizar. Poderia Camões, na linha da veracidade que adoptou, optar pelo fundo cristão em vez dos deuses do Olimpo? Sem dúvida. Mas o seu poema não teria então o equilíbrio que efetivamente possui. Ao incorporar n’Os Lusíadas uma fábula mitológica, à maneira dos poemas da Antiguidade, o autor visa alcançar, pelo menos, dois objetivos: pretende, em primeiro lugar, conferir beleza ao seu poema e fazê-lo de forma criativa (o que não conseguiria recorrendo a figuras da fé cristã); mas pretende ainda contrabalançar os níveis de verosimilhança com que revestiu os outros planos da história.
Se no caso de Vénus a filiação virgiliana é muito evidente, a figura de Baco pode considerar-se uma aposta algo imprevista. Não se trata apenas de decalcar a figura de Juno que surge na Eneida e a resistência malévola por ela encarnada no poema de Virgílio. Podendo ser lido como metáfora do despeito, Baco opõe-se à chegada dos portugueses ao Oriente, temendo que eles o destronem justamente nos domínios que conquistou2.
Por vezes, Camões serve-se da mitologia para expressar juízos profundos sobre o Amor, a Vida, a Guerra, a Morte e a Natureza. É o caso, em tudo singular, do Adamastor. O episódio é, muitas vezes, lido em registo épico. Nele são sobretudo destacadas as profecias dissuasoras que incluem a morte dos pioneiros Bartolomeu Dias e D. Francisco de Almeida, para além da terrível morte de Manuel de Sousa Sepúlveda, de sua mulher, D. Leonor de Mascarenhas, e dos “filhos caros”.
A parte mais impressiva do episódio, porém, corresponde à história dos amores fracassados que o referido titã vivera antes. Apaixonara-se por uma ninfa e, como não fosse correspondido, lançou a guerra no Oceano. Foi então que Tethys e sua mãe (Dóris) o atraíram a uma cilada e, prometendo-lhe a satisfação dos seus desejos, o transformaram num penedo. Condenaram-no assim a uma morte somática e a uma terrível penitência psíquica. O castigo foi muito agravado pela circunstância de, mesmo aprisionado, o gigante ter continuado a ver a responsável pelas suas desventuras: “e por mais dobradas mágoas / me anda Tetis cercando destas águas.” (V, 59)
Deste episódio (englobando uma dimensão épica mas também uma outra lírico-trágica) se retiram duas ideias: o Amor “alto” não se compagina com a violência nem com os impulsos e o castigo da infração amorosa revela-se particularmente tormentoso.
1.4. Recompensa do herói
Recompensar o herói faz parte dos preceitos da epopeia. A hesitação que Camões coloca na mente de Vénus (IX, 18-21), há-de ele tê-la sentido pessoalmente como problema a resolver. Como premiar um herói tão singular? A ideia da ilha namorada ajusta-se à figura da divindade que protege os portugueses. Enquanto deusa do amor, faz sentido que ela queira recompensar os nautas, proporcionando-lhe uma experiência de consumação erótica. Mas o episódio serve, antes de mais, para reforçar a caraterização da personagem. Afinal, a deusa nascida das águas não dispensa a sua proteção aos portugueses apenas pelas razões aduzidas no primeiro consílio: os fortes corações, as vitórias em Marrocos e a semelhança do português com o latim (I, 33). Confrontada com o desconcerto e a rebeldia dos homens que (“…estão / Amando cousas que nos foram dadas, / Não para ser amadas, mas usadas”, IX, 24), a deusa cípria pretende que os seus protegidos sejam intérpretes de um plano grandioso: nada mais nada menos do que regenerar a raça humana. Desta forma, o que vai suceder na ilha dos Amores não tem um caráter estritamente gozoso; o que está em causa é também fazer com que os nautas enobrecidos e as ninfas previamente feridas com as setas amorosas de Cupido venham a dar origem a uma “progénie forte e bela”, capaz de reconverter o mundo que se encontra em “Erros grandes” (IX, 25).
A consumação sexual, tantas vezes interpretada em registo estritamente fruitivo, constitui o prelúdio de uma nova Idade do Ouro, centrada no Amor e no Conhecimento. Assim se explica que, logo após o ato amoroso, nautas e ninfas celebrem esponsais (IX, 84) e participem num Banquete (X, 2-5). Esta última circunstância pressupõe um nivelamento de condição, uma vez que, após o encontro erótico com as ninfas, os nautas alcançam a natureza divina. Os marinheiros de D. Manuel são ainda premiados com a revelação do Tempo: a dádiva ocorre já nos “paços radiantes”, onde tinham entretanto subido, e surge no relato de uma ninfa, que desvenda os feitos futuros dos Portugueses no Oriente. Esses mesmos feitos tinham sido antes ouvidos a Proteu que, por sua vez, em sonhos os tinha visto representados numa esfera transparente e oca (X, 6-73).
Por fim, a titânide que desposa Vasco da Gama (Tétis), conduz o capitão ao cimo de um alto monte, para lhe proporcionar (a ele e aos seus companheiros) os segredos do Espaço:
Faz-te mercê barão, a Sapiência
Suprema de, c’os olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Sigue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu c’os mais.
Assi lhe diz e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.
(Canto X, 7)
A ascese, que começara na aproximação à ilha, culmina agora no cimo do “monte espesso”, com a revelação que está para além da “vã ciência”. O caminho da sabedoria encontra-se, de resto, bem balizado: pressupõe firmeza, fortaleza e prudência, atributos bem presentes no modelo de heroísmo camoniano.
Depois de superadas as adversidades do cabo tormentório, encontrando-se a armada já na costa oriental de África, o narrador evoca um raro momento de distensão. É de noite e alguns marinheiros encontram-se em posição de vigilância. Para permanecerem despertos, resolvem contar histórias. Ocorre então uma querela entre dois soldados: Leonardo prefere histórias de amores, mas Veloso pretende que se narrem histórias “de guerra férvida e robusta”, alegando que se ajustam mais às circunstâncias “duras” em que se encontram, naquele momento preciso3.
O episódio que se segue é o dos Doze de Inglaterra e surge narrado por Fernão Veloso (VI, 43-69). Nesse mesmo episódio, tomado da tradição novelística, um grupo de cavaleiros lusitanos dispõe-se a viajar até às ilhas britânicas para desagravar a honra de donzelas que haviam sido desmerecidas por cavaleiros da corte do Duque de Lencastre.
O ethos que sobressai está longe de se esgotar na “guerra férvida e robusta” que o próprio Veloso havia anunciado e ajusta-se ainda aos requisitos de afeto que Leonardo tinha reclamado no início. Neste âmbito, o destaque vai para a generosidade e o impulso abnegado do Magriço, posto à prova antes e depois da peleja de Londres4.
De alguma forma, esta solução de compromisso aplica-se à generalidade do poema. É certo que, como vimos já, o poeta tinha solicitado às Tágides uma inspiração bem definida. Ao longo do poema, porém, a oposição entre matéria afetiva e feitos bélicos vai-se esbatendo. Para além das convenções do género – que realmente obrigariam a abdicar do estilo lírico – a própria idiossincrasia do poeta parece não consentir a total separação entre a Guerra e o Amor.
Vamos assim encontrar na epopeia camoniana uma constante associação entre episódios afetivos e bélicos: a participação de Afonso IV na batalha do Salado é uma consequência da súplica da formosíssima Maria, por exemplo; como Inês de Castro constitui um recuo dessa mesma conquista afetiva, já que são os cavaleiros do Salado quem se encarniça contra o peito da donzela, retirando-lhe a vida. Mesmo em Aljubarrota, mais do que castelhanos e portugueses, Camões coloca frente a frente os amantes da Pátria e aqueles que a traíram.
Nessa perspetiva, tal como o narrador Fernão Veloso, Camões não conseguiu (ou não quis conseguir) superar o dilema entre a guerra e o amor, optando por uma síntese legitimadora. É, de resto, com base num dos planos mais elevados do Amor (o Amor da Pátria) que todo o poema se institui e justifica, desde o primeiro ao último verso.
À luz da verosimilhança histórica, torna-se difícil admitir um qualquer herói individual. Mas assentando o poema num desígnio persuasivo, o heroísmo teria de desempenhar um papel reforçado.
As condições, que antes se tinham verificado com Afonso Henriques e com D. João I e Nun’Álvares, pareciam agora de novo verificar-se na pessoa de D. Sebastião, visto por Camões como “maravilha fatal da nossa idade” (I, 6) ou seja, como ungido, destinado a reerguer a nação da “austera, apagada e vil tristeza” em que estava mergulhada.
Essa circunstância explica a invulgar presença do rei ao longo de todo o poema: depois de lhe ter dedicado 13 estâncias numa Dedicatória invulgarmente direta e extensa (notaram-no, desde logo, os primeiros comentadores do poema), nunca mais o poeta deixa de falar para aquele Rei-Menino.
De tal forma que bem pode dizer-se que nele ocupa o lugar de novo Rei Fundador. Se Cristo tinha aparecido a Afonso Henriques para lhe assinalar a missão do Reino, Sebastião é, também ele, um sinal da Providência. Os passos da história de Portugal são afinal convocados enquanto fonte de ensinamento. A ele se indica o caminho de uma partida nova, que recupere o sentido de Ourique.
Não parecem restar dúvidas de que o Norte de África era, na altura, um território que se revestia de grande interesse geopolítico para as potências cristãs do sul da Europa. Encarar a jornada que viria a ter lugar em 1578 como uma resposta ao apelo camoniano de 1572 é, porém, excessivo. As estâncias finais do poema assentam num fundamento de circunstância mas devem ser lidas como o corolário de uma obra longamente amadurecida. Apesar das coordenadas históricas que a envolvem, é necessário lembrar que, enquanto epopeia, nela se celebra sobretudo o tópico da partida. As estâncias finais devem ainda ser lidas como aquilo que são: parte de um poema. Desse poema espera-se não apenas o decalque da verdade factual mas a sua sublimação. Quando fez imprimir o seu livro, Luís de Camões assumiu-se como artista comprometido. Assim se explica que entregue à Pátria algo que ela parecia ter perdido: um sentido de memória e uma possibilidade de futuro.
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1 O alvará régio que concede licença de impressão foi lavrado no dia 24 de Setembro de 1571, o que faz supor que a impressão do poema tenha sido iniciada pouco depois, nos últimos meses do mesmo ano.
2 Sobre os significados da figura de Baco pode consultar-se, com proveito, o estudo (pouco conhecido) de Roger M. Walker. Mais recentemente e para além de Luiza Nóbrega, surgiram contributos dissonantes de João Figueiredo e V. M. Aguiar e Silva “O mito de Baco e o seu significado n’Os Lusíadas ”, in A Lira dourada…, pp. 131-152.
3 Por entre as chamadas estâncias omitidas de Os Lusíadas encontradas por Faria e Sousa, em Madrid, na livraria de Pedro Coelho contam-se três, interpoladas entre a 43 e a 44, que prolongam o debate entre Veloso e Leonardo. O esbatimento da oposição entre a Guerra e o Amor que nelas se verifica contribui para uma melhor compreensão das duas personagens, que hão-de surgir no Canto IX em posição antagónica: um deles, imediatamente beneficiado pelo Amor (Veloso), e um outro (Leonardo), ainda então perseguido pela má sina, que o obriga a correr atrás de Effire, a única ninfa que ainda não havia sido totalmente submetida pelas setas de Cupido e pela Fama que precedera a chegada dos nautas.
4 Por estes motivos, é lícito concluir que o episódio se destina também a repor a ordem ofendida com a morte de Inês de Castro.
Professor Catedrático da Faculdade de Letras, onde vem regendo a cadeira de Estudos Camonianos.