Cabeças pelo campo vão saltando,
Braços, pernas, sem dono e sem sentido.
E doutros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o gesto amortecido.
Já perde o campo o exército nefando,
Correm rios do sangue desparzido,
Com que também do campo a cor se perde,
Tornado carmesi de branco e verde.
Já fica vencedor o Lusitano,
Recolhendo os troféus e presa rica;
Desbaratado e roto o Mauro Hispano,
Três dias o grão Rei no campo fica.
Aqui pinta no branco escudo ufano,
Que agora esta vitória certifica,
Cinco escudos azuis esclarecidos,
Em sinal destes cinco Reis vencidos.
(Canto III, 52 e 53)
O citado de início, de forma intencional, permite às operações do espírito calcorrearem vários trilhos e caminhos aprimorados, quer para um mesmo destino final, quer para diversas estações durante a «linha», de carreiras mais ou menos longas, passando por paisagens diferentes amarradas a espaços objeto de toponímias específicas, como literatura, poesia, história, relações internacionais, ciência política, estratégia, geopolítica/geoestratégia, geografia, entre outros, que convinha (convém) visitar, colmatando negligentes ignorâncias, que se refugiam no dito primado da especialização.
Não saber a tabuada de memória, porque a minha área não é a das «matemáticas»…; notável. Sociedades mais fáceis de conduzir, com ignorância negligente porque se não tem grau ou com ignorância, também assim tipificada, por grau a mais, pairando como a Terra de outrora na forma de um disco, navegando em água solta. E quem as conduz? Classes dirigentes, em lato sentido, de onde se extraem as políticas, paridas no «especial berço», porque o geral enfrasca cérebros preguiçosos, que recorrem à ajuda do instrumento tecnológico, concebido por outros mais trabalhadores, mas especializados, que pelo facto de o serem, não ponderam consequência, nem fará impressão a ausência de resposta para duas questões fundamentais: para quê? Que sociedade futura queremos?
Não falamos, porque não somos os mais competentes para o fazermos, da constituição em dez cantos, dos versos em oitavas com 10 sílabas poéticas, da rima cruzada nos seis primeiros e da emparelhada nos dois últimos e por aí fora. Quando nos convidaram, certamente não terá sido para isso. Foi, diria… para não fugir!!
Não debandemos para o que se encerra na dita incapacidade de os Estados conduzirem, substituída pela capacidade reguladora (?)… bem, 500 anos…para quê? Para ter palavras nos estandartes nacionais? Para se lembrarem, quando é necessário brincar aos intelectuais? Quando nos solicitam para escrever qualquer coisa, porque outros se esqueceram, no pressuposto da obrigatoriedade em ostracizar tal esquecimento? Para nos recordarmos de momentos de sofrimento, de sangue tipificados, de altares da história concebidos, de mitos e de crenças que estereotipam comportamentos, de epopeias gloriosas, que de glória na atualidade se esvaziaram, de um sistema educativo que parece incorporar a preocupação da avaliação quantitativamente superior, sem paralelo com o qualitativo apreendido?
É sobre Camões ou melhor, neste caso, sobre «Os Lusíadas». A obra é um livro de história, mas o compêndio atravessa-a, utiliza-a, com ela comunica e dela sofre interação, na rica língua portuguesa… coloca Portugal na forja, em circunstância eleva-o, convoca identidades e pertenças, liga a sua existência e imprescindibilidade ao divino; bem, faz-nos lembrar o método histórico, aplicado na metodologia de análise geopolítica.
Reparemos… voltamos ao Canto III, amiúde violento. Pois… por lá Vasco da Gama fala pela primeira vez, a Europa é objeto de alguma descrição, o caminho até Viriato é recordado, assim como o Conde D. Henrique e D. Afonso Henriques, o primeiro Rei que, no poema, abre fileiras para todos até D. Fernando.
A batalha de Ourique, a peleja fundadora encontra-se viva nas estrofes compreendidas entre a 42 e a 54. Diz-nos alguma coisa? Associa-se também com a nossa Bandeira, símbolo nacional? Porque será? As palavras indutoras de agressividade e de violência convoca imagens da altura e de agora, como na Ucrânia ou na Faixa de Gaza, como de todas as guerras, ou não fosse o facto violento um dos critérios delimitativos do próprio conceito de guerra. Nelas também se liberta a hostilidade, a intencionalidade, elementos preponderantes do fenómeno estratégico, mas a existência de um inimigo, um «hostis», pese embora não tenha sido a intenção do Poeta, certamente, ensina-nos que para termos guerra é necessária tal existência (escrutinada diferença para Operações de Apoio à Paz nos nossos dias, sejam elas quais forem).
E se aprofundássemos, porque há no Povo ainda quem leia, a hostilidade, o ódio precisa de ser incutido naqueles que combatem… o «hostis», para já não falar no «inimicus» (a isto regressaremos)… e aqueles, somos nós, o Povo, qual figura assente num dos vértices da figura triangular de Clausewitz. Mas já voltamos ao III…
No Canto I, Luís de Camões confidencia-nos o que os Deuses reunidos no Olimpo falaram e até Júpiter favorece os Portugueses, pese embora a oposição de Baco; Marte e Vénus estiveram por nós (antes fosse assim, hoje); a frota portuguesa desafia o oceano Índico e pára na minha terra, Moçambique (Camões por lá esteve preso, na fortaleza localizada na Ilha de Moçambique. Já agora, recordaríamos que a obra foi iniciada em 1556 e concluída somente no ano de 1571. É publicada em Lisboa em 1572. Em boa verdade, três anos após o retorno de Camões do Oriente, por Moçambique); seguem-se aventuras e desventuras do nosso Gama, em saga contra os Mouros; valeu-nos Vénus e chegámos a Mombaça, destino manipulado por aquele Baco que estivera contra nós nas interações entre os Deuses.
No Canto II, é contada a nossa saga em Mombaça, com matéria de indiscutível modernidade, como por exemplo, os portugueses condenados feitos desembarcar para irem à procura de informações no meio hostil. Os Mouros continuam a dificultar-nos a vida, bem como Baco, sempre contra nós e Vénus sempre a nosso favor (sem esquecer as Nereidas).
Interessante também a ação de Vasco da Gama na busca de auxílio para encontrar a terra que queria; podendo falhar tudo, pede a intervenção divina (a modernidade) e não é que Vénus se eleva até ao «sexto Céu» para encarar, de novo, Júpiter, seu pai, dando-lhe conta de que, segundo a sua opinião, os Deuses não estarão a fazer bem o seu trabalho de proteção dos portugueses. O pai acede à filha e até envia Mercúrio para localização terrena e, logo em Melinde, Vasco da Gama e sua tripulação, sentiram a diferença. E, de novo e sempre a história… o Rei de Melinde solicita ao nosso navegador que lhe conte um pouco da história do nosso Portugal. Notável…
No Canto IV, a nossa aflição… o vácuo existente deixado por D. Fernando e depois D. João I, forçando a alguma afirmação do que hoje se chamaria nacionalismo (e porque não naquele tempo). D. João de Castela, casado com D. Beatriz, a filha legítima (única) de D. Fernando mereceu forte contestação; o valor da palavra camoniana plasma-se nas palavras feitas discurso de Nuno Álvares Pereira, que desembocaram em mais uma batalha, a de Aljubarrota – reparem na riqueza, enquanto produtoras de identidades, de culto da terra dos pais, de sentimento de pertença dos povos (e sim, como a maior parte dos animais, o Homem necessita de um território e marca-o), na prática da hostilidade, de uma batalha.
Para o mal e para o bem, o sangue vertido, feito sacrifício coletivo, efetuado de muitas maneiras, acompanhado das muitas almas que se libertam do invólucro corporal, para se alojarem no Céu ou no Inferno, constituem elementos que uma boa forja transforma em união, coesão, agregação (e isto não tem nada a ver com o cidadão do mundo, afirmado por Sócrates), grilhetas a espaços e povos que, as classes dirigentes, não devem deitar para o caixote do lixo da história, a não ser que, aqueles, sejam alvo de injeção da substância da ignorância e ou da cobardia; até um dia… os tais «veios de índole geopolítica» adormecidos.
Deu sinal a trombeta Castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso.
Ouviu o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães que o som terríbil escuitaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram
(Canto IV, 28)
Já pelo espesso ar os estridentes
Farpões, setas e vários tiros voam;
Debaxo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam
Espedaçam-se as lanças, e as frequentes
Quedas co as duras armas tudo atroam.
Recrecem os inimigos sobre a pouca
Gento do fero Nuno, que os apouca
(Canto IV, 31)
Permitam, pelo reconhecido significado da batalha, a utilização de alguns comentários nossos, que servirão também de algum sustento para as nossas considerações finais, por um lado e, por outro, corroboram letras escritas anteriormente.
Aqui a fera batalha se encruece
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas; [atentem no que se passou na batalha de Aljubarrota, utilizando o Poeta uma ordem gradativa descendente]
A multidão da gente que perece [o respeito aqui traduzido]
Tem as flores da própria cor mudadas.
Já as costas dão e as vidas; já falece [a fuga; a diminuição da ferocidade]
O furor e sobejam as lançadas;
Já de Castela o Rei desbaratado
Se vê, e de seu propósito mudado.” [a conquista de Portugal como propósito. O objetivo político]
(Canto IV, 42)
O campo vai deixando ao vencedor, [o Rei vencido deixa o espaço de batalha]
Contente de lhe não deixar a vida. [E deixa o espaço de batalha vivo]
Seguem-no os que ficaram, e o temor
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.
Encobrem no profundo peito a dor
Da morte, da fazenda despendida, [o dinheiro gasto]
Da mágoa, da desonra e triste nojo [o desgosto]
De ver outrem triunfar de seu despojo.
(Canto IV, 43)
Alguns vão maldizendo e blasfemando
Do primeiro que guerra fez no mundo;
Outros a sede dura vão culpando [a ambição, a cobiça]
Do peito cobiçoso e sitibundo.
Que, por tomar o alheio, o miserando [Por virem conquistar Portugal..]
Povo aventura às penas do Profundo, [atraíram o seu povo para o Inferno]
Deixando tantas mães, tantas esposas,
Sem filhos, sem maridos, desditosas
(Canto IV, 44)
Nota: Luís de Camões encerra nesta estância as mágoas dos castelhanos e cumulativamente lança uma maldição àquele que iniciou a guerra.
Continuando… a projeção portuguesa para o Norte de África é trazida por Camões nas estrofes 48, 49 e 50, com a tomada de Ceuta, marcando, talvez o início do império. O restante de tão importante Canto reboca os reis D. Duarte, D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I. «Descobre-me o caminho marítimo para a Índia», com s reticências levantadas por “…um velho, de aspeito venerando…” (94), ancoradas em razões de cobiça, de fama, de vaidade, que acaba por piedade para os portugueses: “Nenhum cometimento alto e nefando/Por fogo, ferro, água, calma e frio/Deixa intentado a humana geração/Mísera sorte! Estranha condição!” (104).
No Canto V, revela-se o Adamastor, plasmando as dificuldades no dobrar o Cabo das Tormentas e Luís de Camões ainda tem tempo para «atacar» aqueles que o criticavam, injuriando a sua poesia ou então criticando o desprezo geral a que aquela era votada:
Enfim, não houve forte Capitão
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão-somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque quem não sabe arte, não na estima.
(Canto V, 97)
Neste Canto V, Camões ainda dá conta da largada de Lisboa, esclarece sobre a viagem até ao Zaire, referencia a estrela Cruzeiro do Sul –
Já descoberto tínhamos diante
Lá no novo Hemisperio, nova estrela
Não vista de outra gente, que, ignorante
Alguns tempos esteve incerta dela
Vimos a parte menos rutilante
E, por falta de estrelas, menos bela
Do Pólo fixo, onde inda se não sabe
Que outra terra comece ou mar acabe
(Canto V, 14)
narra o desespero devido ao escorbuto traduzido pela morte que o acompanhou e elogia o carácter dos portugueses face ao empreendimento que corporizavam (a importância dos povos, da sua mobilização, do conhecimento sobre as suas características. Não vemos nada disso hoje? Em «missões» perigosas, em que a morte se encontra sempre pronta para se tornar companheira?). Bem, e estávamos em Melinde.
Cumulativamente, não deixa de ser interessante a menção à tragédia, ao desastre, importantes circunstâncias cravadas na nossa forma de estar e de sentir, tal como assinalado pelo poeta com o naufrágio de Manuel de Sousa Sepúlveda, casado com D. Leonor, a «fermosa dama»:
Outro também virá, de honrada fama,
Liberal, cavaleiro, enamorado,
E consigo trará a fermosa dama
Que Amor por grão mercê lhe terá dado.
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que, duro e irado,
Os deixará dum cru naufrágio vivos,
Pera verem trabalhos excessivos
(Canto V, 46)
Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados e nacidos;
Verão os Cafres, ásperos e avaros,
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos membros e preclaros
À calma, ao frio, ao ar verão despidos,
Despois de ter pisada, longamente,
Cos delicados pés a areia ardente.
(Canto V, 47)
E verão mais os olhos que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dous amantes míseros ficarem
Na férvida e implacábil espessura.
Ali, despois que as pedras abrandarem
Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados, as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão.
(Canto V, 48)
No Canto VI, vamos de Melinde para a Índia e o inimigo Baco vai a «casa» de Neptuno, convencendo-o de que os portugueses iriam afrontar os seus domínios na Índia e, como tal, seria necessário que convocasse os deuses do mar, para dificultar a saga portuguesa; assim o fez, e os terríveis ventos libertos por Éolo rapidamente se fizeram sentir. E foi (é) o costume, isto é, Vasco da Gama roga o auxílio de Deus e logo Vénus faz atravessar as “ninfas amorosas” (86) ou também apelidadas de “…Ninfas belas/Que mais fermosas vinham que as estrelas.” (87) e a terrível tempestade logo passa. No final, Calecute à vista.
No Canto VII, Camões releva a luta dos portugueses contra o inimigo mouro, criticando outros países que não acompanham tal desiderato e espírito e seguem-se depois os procedimentos e acontecimentos em Calecute. Merece para nós, dado o contexto, as questões do Catual feitas a Paulo da Gama sobre aquilo que se encontra desenhado nas bandeiras.
Purpúreos são os toldos, e as bandeiras
Do rico fio são que o bicho gera;
Nelas estão pintadas as guerreiras
Obras que o forte braço já fizera;
Batalhas tem campais aventureiras,
Desafios cruéis, pintura fera,
Que, tanto que ao Gentio se apresenta,
A tento nela os olhos apacenta.
(Canto VII, 74)
Pelo que vê pergunta; mas o Gama
Lhe pedia primeiro que se assente
E que aquele deleite que tanto ama
A seita Epicureia experimente.
(Canto VII, parte da 75).
No Canto VIII, Paulo da Gama responde ao Catual e os adivinhos que praticavam o aruspício, logo anteviram o sofrimento das gentes indianas causado pelos portugueses e, ainda para mais, lá aparece novamente Baco, nem que fosse num sonho, a forjar opinião contra os portugueses. Estava criado o mau ambiente para o nosso navegador, que chega a ser preso, por não fazer a frota aproximar-se; no final, prevalece o comércio e Vasco da Gama lá regressa a bordo, por troca com fazendas da Europa. Luís de Camões acaba por elaborar pensamento sobre o vil metal. Afinal, os muçulmanos tinham corrompido o Catual.
No Canto IX, as contrariedades na Índia continuam e os dois feitores portugueses encarcerados serviriam para a esquadra de Gama demorar, permitindo à muçulmana, oriunda de Meca chegar; presos de um lado e de outro são trocados (lembra-nos o quê na atualidade?) e finalmente, o regresso a Portugal, à terra dos Pais, agora e sempre com o apoio de Vénus que, juntamente com o filho, quem diria, um tal de Cupido, dá a conhecer em ilha pejada de maravilhas, as Ninfas e o seu amor; casamentos houveram…que melhor prémio para o esforço do lusitano?
No Canto X, o merecido descanso continua e o repasto feito banquete é oferecido por Tethys e as outras ninfas. Neste último esforço poético, Camões faz com que se revele aos portugueses os feitos (futuros) a que estão destinados e, bem em profundidade, a ferramenta «Conhecimento» assume centralidade.
Tais feitos colam-se a lugares e territórios, descritos geograficamente e mostrados afinal pelos Deuses (Tethys), que permitem no alto de um monte, a visualização do «Universo», da «Máquina do Mundo». O Império Português, a esses lugares distantes chegará.
Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: «O trasunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vas e irás e o que desejas.
(Canto X, 79)
Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
(Canto X, 80)
Finalmente, Luís de Camões faz chegar os portugueses a casa, assim como terminará «Os Lusíadas», não sem antes, entrar de novo no plano temático das considerações, realçando as qualidades dos lusos, aconselhando a El-Rei, entre outros, ao seu aproveitamento e preconizando mais ações gloriosas.
E não sei por que influxo do Destino
Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os ânimos levanta de contino
A ter pera trabalhos ledo o rosto.
Por isso vós, ó Rei, que por divino
Conselho estais no régio sólio posto,
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.
(Canto X, 146)
Quantos discursos vos lembram estas palavras de exaltação?
E a centralização dos feitos no Rei, por mais longínquos que fossem os territórios marítimo e ou terrestre, em que se traduzissem? Os «espaços» eram olhados pelo Rei…
Para vos servir, a tudo aparelhados;
De vós tão longe, sempre obedientes
A quaisquer vossos ásperos mandados,
Sem dar reposta, prontos e contentes.
Só com saber que são de vós olhados,
Demónios infernais, negros e ardentes,
Cometerão convosco, e não duvido
Que vencedor vos façam, não vencido.
(Canto X, 148)
Estará na altura de regressar, como anunciado, ao Canto III, mais que não fosse porque por lá guerreiam palavras sobre o Fundador e esse é o patrono do Exército, instituição a que não deixarei de pertencer… sentimento, «coisa» do domínio do intangível, que nos irá lançar para breve conversa, porque será também nessa floresta que convive por uma lá uma ou várias árvores escondidas e que, em momentos de decisão farão sentir o seu efeito, como em gigante momento de ficção, pudemos dar conta num dos filmes da saga do «Senhor dos Anéis».
Mas ainda temos tempo, antes desse anunciado movimento organizado para a retaguarda, para fazer lembrar, acautelando a impossibilidade de esmiuçar em circunstância, cinco tópicos que devem estar (sugere-se) sempre na mente de quem possa colocar a vista em cima deste pequeno articulado – e que também «navegam» em «Os Lusíadas» –:
i) a mais que óbvia relação entre a literatura e o Poder. Poder (relações de Poder) acorrentado à Ciência Política, stricto sensu, com a Polis como objeto, sofrendo efeitos dos métodos. E se alargarmos a mais amplo território, tocamos e violamos, forçosamente, a porosa fronteira com a Geopolítica ou não estivéssemos a tratar de modelos de dinâmica de Poder;
ii) o efeito associado à relação entre a Geografia e a História, sem ostracizar, como não podia deixar de ser, os povos que aí respiram, feitos amigos ou inimigos, alguns traduzindo o «hostis» com tendência para o «inimicus», com raízes que a polemologia procura percorrer ou descortinar, entrando sempre, pelo menos, nos campos pelados ou relvados daquelas – a Geografia e a História;
iii) Afinal, os planos da viagem do Gama, traduzindo a 1.ª epopeia portuguesa – a descoberta do caminho marítimo para a Índia – e da própria História de Portugal prolíficos na obra apontada, constituem evidência sobejamente conhecida;
iv) por óbvia declinação, a importância dos saberes ligados à origem das Nações e aos tortuosos caminhos que terão percorrido na busca da idade adulta – os fenómenos identitários –.
Estamos a falar, por exemplo, nos momentos e locais fundacionais – onde o sacrifício foi traduzido em sangue –, ou de significado primordial para tal, tornados pesados com elementos de convicção profunda, como o «divino», originando até sítios hoje sagrados. Podemos até aproveitar para dar conta de mais uma dimensão temática do épico, isto é, a mitológica; a permanência de dicotomias entre o Eu e o Outro importância essa que muito simplesmente, pode levar ao erguer de espadas outrora enterradas ou então ao esquecimento que tais objetos existiram e para que serviram (abre-se aqui um trilho que não iremos calcorrear, mas que está pejado de matéria que corporiza os diferentes sistemas educativos e inerentes níveis).
Reparem que D. Afonso Henriques é o patrono do Exército, porque formalmente, o despacho que sustenta a comemoração do dia desse Ramo (despacho n.º 37 de 9 de março de 1979, de Sua Excelência o Chefe do Estado-Maior do Exército) chama à colação o suor e sangue vertidos pelas forças comandadas por D. Afonso Henriques na batalha de Ourique, travada a 25 de julho de 1139; mas não só, realçando as qualidades do 1.º Rei de Portugal como guerreiro feito comandante e como político; afinal, o Reino foi obra de soldados, e o «fazedor-mor» assenta a sua ação, na essencialidade, numa base militar;
iv) as características dos povos. O elemento humano percebido e avaliado, com profundidade do ponto de vista qualitativo; a sua tenacidade, o seu espírito aventureiro, a tendência para o comércio, a procura do mar, as incongruências que grassem; enfim… tudo o que pode estar induzido em frases como: «o povo afegão nunca perdeu uma guerra»;
v) a exaltação de todas estas tipicidades (também acautelando ingenuidades, verdadeiras ou falsas, que enviam para o caixote do lixo, aquilo a que chamamos manipulação, de eficácia para alvos ignorantes), em momentos de assustadora necessidade ou por ela mascarados porque, afinal, quem vai pegar nas espadas é o elemento móvel de qualquer grupo político, ou seja, a população.
Ahhh... então o terceiro e em linha com o fio condutor:
Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floreça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente.
(Canto III, 20)
Atentemos na intenção de localizar Portugal, onde o Sol se põe, na Europa (Vasco da Gama situa Portugal), aliás, descrita nas estâncias anteriores (a Geografia) e na afirmação permanente da luta contra o Mouro e a inerente sequela, conhecida por Reconquista Cristã.
Continuando:
Esta é a ditosa pátria minha amada,
À qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela antam os íncolas primeiros
(Canto III, 21)
Não podíamos deixar passar a «21», mais que não fosse pelo seu primeiro verso, onde o nosso símbolo maior foi buscar a sua divisa, inscrita nas vergônteas de loureiro que rodeiam a esfera armilar; porventura, também por aqui se «nota» a ansiedade do marinheiro em cumprir a missão – destino de sua vida – e isso dar a conhecer.
E de seguida, a formação de Portugal – estâncias identificadas e as que se seguem na obra – com alusão a todos, diria, heróis que tomaram parte no processo, começando pelo Pastor Viriato. A compreensão ilumina-se, julga-se, com a explicação de que «Herculano» virá de «Hércules» e de que o Monte Calpe é Gibraltar, por um lado, e por outro, a extensão configura-se ao perceber-se que a «Cáspia Serra» é a região do Cáucaso. Já agora: o Afonso que foi na Espanha e que fez tanta guerra aos Sarracenos, é o Rei de Leão, Afonso VI. E continua a despejar-se sangue e sacrifício…
Desta o Pastor nasceu que no seu nome
Se vê que de homem forte os feitos teve,
Cuja fama ninguém virá que dome,
Pois a grande de Roma não se atreve.
Esta, o Velho que os próprios filhos come,
Por decreto do Céu, ligeiro e leve,
Veio a fazer no mundo tanta parte,
Criando-a Reino ilustre; e foi destarte.
(Canto III, 23)
Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha,
Que fez aos Sarracenos tanta guerra,
Que, por armas sanguinas, força e manha,
A muitos fez perder a vida e a terra.
Voando deste Rei a fama estranha
Do Herculano Calpe à Cáspia Serra,
Muitos pera na guerra esclarecer-se,
Vinham a ele e à morte oferecer-se.
(Canto III, 23)
A via III traçada pelo épico poema, no momento, passa por circunstância preponderante para Portugal, representada pela batalha de São Mamede (24 de junho de 1128), estação assinalada pelo número 31, que inicia mais um percurso de lança, com D. Teresa como «soberba»:
De Guimarães o campo se tingia
Co sangue próprio de intestina guerra,
Onde a mãe, que tão pouco o parecia,
A seu filho negava o amor e a terra.
Co ele posta em campo já se via;
E não vê a soberba o muito que erra
Contra Deus, contra o maternal amor;
Mas nela o sensual era maior
(Canto III, 31)
O confronto de São Mamede (no campo de S. Mamede de Aldão, a cerca de 2 km para Norte da cidade de Guimarães) também se encontra gravado (queremos acreditar que sim) na nossa memória coletiva; um gutural chamamento pela independência, um eventual início da história para Portugal. A descrição camoniana, no mínimo ou para os mais curiosos, cria condições de despertador, lembradas de imediato pelo ataque, a iniciar, portucalense, comandado por um tal jovem D. Afonso Henriques, responsável pela defesa da conhecida hoje como cidade berço, armado cavaleiro, em 1125, na catedral de Zamora, que teve entre os seus principais conselheiros Egas Moniz e o Arcebispo de Braga.
O primeiro é o leal vassalo:
Mas o leal vassalo, conhecendo
Que seu senhor não tinha resistência,
Se vai ao Castelhano, prometendo [o Castelhano é Afonso VII, o soberano de Leão]
Que ele faria dar-lhe obediência.
Levanta o inimigo o cerco horrendo,
Fiado na promessa e consciência
De Egas Moniz; mas não consente o peito
Do moço ilustre a outrem ser sujeito
(Canto III, 36)
E porque está muito em voga – verdadeiramente sempre esteve – a influência que o sistema educativo e as próprias experiências de vida têm nas decisões e ações de quem chefia coletivos, em contexto aproveita-se para retirar um «pacote» do baú das memórias, forçados como estamos a ser por Luís de Camões, e verificar que o filho de Henrique de Borgonha e da Infanta de Leão, Teresa (filha ilegítima de Afonso VI de Leão), nascido em contexto e ambiente militares, em território onde a conflitualidade pulula em permanência, presente na maior parte da sua vida, em diferentes campanhas, foi entregue, ainda criança, à responsabilidade de… de novo, o tal vassalo, Egas Moniz, em boa verdade, Ermígio Moniz, “chefe da poderosa linhagem de Ribadouro (…) principal magnata das terras portucalenses. Ermígio (ou Egas) representa a poderosa nobreza local, onde o casal condal se integra e se quer assumir como poder” (Varandas, 2022, p. 16).
Egas Moniz assumiu assim a educação do guerreiro, em plenitude, quer fazendo-o ler, certamente, compêndios e outros escritos sobre a temática da guerra, quer tornando-o competente em cima de um cavalo e ou no manuseamento das armas utilizadas à altura.
Sim… D. Afonso Henriques é educado para a guerra. “A maneira como os condes, seus pais, o entregam a um dos mais duros e competentes chefes de guerra do condado espelha bem o que se faz naqueles tempos” (Varandas, 2022, p. 16) e o príncipe também disso – dos feitos na guerra – vai tirar proveito, ganhando reconhecido prestígio, veiculado e expandido, realçando-se neste propósito os monges de Santa Cruz de Coimbra, moldando e configurando “uma ideia de Rex, de «César», de autonomia e independência política” (Varandas, 2022, p. 20).
E já agora, a propósito das razões para a guerra, não deixa de ser curioso que a vitória portucalense não levou à exigência de mais território ou de independência, em virtude de não ter colocado à discussão a autoridade do Senhor de Castela e Leão, D. Afonso VII, e inerente soberania sobre o espaço do condado.
D. Afonso Henriques mantém-se vassalo do primo e as interações entre os dois podem classificar-se como «normais» até à altura em que o príncipe portucalense dá ordem para a construção do castelo de Celmes, em espaço da Galiza (condado de Límia), que passaria a controlar a ligação entre aquela e a capital de Leão (Varandas, 2022). Mais um caminho de pedras que nos vai levar à paz de Tui, cidade onde se vão encontrar os oponentes.
Mas isso já seria outro articulado; estamos apenas a apontar caminhos lançados pela poesia do Poeta (e que podem ser caminhados na companhia de «Os Lusíadas») e que são tão velhos, quanto tão novos…
No início e agora, estamos e chegámos a Ourique (25 de julho de 1139), ao sítio de São Pedro das Cabeças, «imortalizado» pela Ermida com o mesmo nome, localizada em território do atual município de Castro Verde1... momento e circunstância fundacionais de um Reino português independente, pese embora o seu reconhecimento como tal, se venha apenas a dar muito mais tarde, em 1179; esse, o reconhecimento formal – do Papa – dizia respeito, quer para a titulação do então Príncipe, quer para o Reino.
O que parece ser certo e que após a vitória, D. Afonso Henriques é aclamado pelas forças portuguesas como Rei e a partir de 1140, a chancela usada fazia ver a intitulação de Rei – Rex Portugallensis –. Tal título é reconhecido mais tarde, isto é, no ano de 1143, pelo Rei de Leão e Castela, Afonso VII, suserano de Portucale.
O encontro foi em Zamora, em outubro, na senda de um acordo de paz (no próprio ano de 1140, tinha-se dado a troca do costume, isto é, fomos para a Galiza e os castelhanos entraram-nos também por «Portugal» adentro), com a participação do cardeal Guido de Vico, representante do Papa, entre outros; perdeu-se o texto do Tratado ou pacto. “Aparentemente, concedia a Afonso Henriques o título de Rei, embora mantendo todas as cláusulas de auxílio militar sempre que necessário. Não era ainda a independência” (Oliveira Marques, 2024, p. 96).
Cinco Reis Mouros são os inimigos,
Dos quais o principal Ismar se chama;
Todos experimentados nos perigos
Da guerra, onde se alcança a ilustre fama.
Seguem guerreiras damas seus amigos,
Imitando a fermosa e forte Dama
De quem tantos os Troianos se ajudaram,
E as que o Termodonte já gostaram.
(Canto III, 44)
A matutina luz, serena e fria,
As Estrelas do Pólo já apartava,
Quando na Cruz o Filho de Maria,
Amostrando-se a Afonso, o animava.
Ele, adorando Quem lhe aparecia,
Na Fé todo inflamado, assi gritava:
«Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis,
E não a mi, que creio o que podeis!»
(Canto III, 45)
Com tal milagre os ânimos da gente
Portuguesa inflamados, levantavam
Por seu Rei natural este excelente
Príncipe, que do peito tanto amavam;
E diante do exército potente
Dos imigos, gritando, o céu tocavam,
Dizendo em voz alta: «Real, real,
Por Afonso, alto Rei de Portugal!»
(Canto III, 46)
Tal do Rei novo o estâmago acendido
Por Deus e polo povo juntamente,
O Bárbaro comete, apercebido
Co animoso exército rompente.
Levantam nisto os Perros o alarido
Dos gritos; tocam a arma, ferve a gente,
As lanças e arcos tomam, tubas soam,
Instrumentos de guerra tudo atroam!
(Canto III, 48)
Ali se vem encontros temerosos,
Pera se desfazer hua alta serra,
E os animais correndo furiosos
Que Neptuno amostrou, ferindo a terra.
Golpes se dão medonhos e forçosos;
Por toda a parte andava acesa a guerra.
Mas o de Luso arnês, couraça e malha,
Rompe, corta, desfaz, abola e talha
(Canto III, 51)
E nestes cinco escudos pinta os trinta
Dinheiros por que Deus fora vendido,
Escrevendo a memória, em vária tinta,
D’Aquele de Quem foi favorecido.
Em cada um dos cinco, cinco pinta,
Porque assi fica o número comprido,
Contando duas vezes o do meio,
Dos cinco azuis que em cruz pintando veio
(Canto III, 54)
Parece lógico que, desde há anos, D. Afonso Henriques estivesse a utilizar os exemplos de Navarra e de Aragão, por um lado e, por outros não seria desconhecedor da realidade que ditava que o próprio título de Rei não implicava diretamente «independência», percebida como a quebra completa dos elos feudais (Oliveira Marques, 2024).
O reconhecimento formal, de Rei e do Reino, estava, à altura, guardado nos baús papais e, por conseguinte, o nosso primeiro Rei encomendou Portugal à Santa Sé (política externa dos nossos tempos…), não colocando em dúvida a vassalagem ao Papa e comprometendo-se a pagar, anualmente, um tributo em ouro – “quatro onças de ouro (uns 120g)” (Oliveira Marques, 2024, p. 96).
Como hoje, por razões de natureza política/estratégica, algumas conformadas por conselho geopolítico/geoestratégico (Ex. o confronto com o Islão no território ibérico), de facto, a tentativa do fundador viu-se gorada, com o papa Lúcio II a ostracizar o «Rex», chamando-lhe «Dux Portugalensis» e ao «Reino», apenas «terra». (Oliveira Marques, 2024).
Só, então, em 1179, o papa Alexandre III iria revogar a decisão de Lúcio II, mas a preço elevado; eis o extrato do documento oficial, a bula Manifestis Probatum:
“Alexandre, Bispo, servo dos servos de Deus, ao caríssimo filho em Cristo, Afonso, rei ilustre dos Portugueses e aos seus herdeiros. Para perpétua memória.
Está demonstrado com provas manifestas que, através de esforços bélicos e aguerridas pelejas, tens sido um intrépido extirpador dos inimigos do nome cristão e um diligente propagador da fé cristã; e, como bom filho e príncipe católico, tens também tido variadas atenções de benevolência para com tua mãe a Santa Igreja, deixando aos vindouros um nome digno de louvor e um exemplo a imitar. Mas é de justiça que também a Sé apostólica ame com sincero afecto aqueles que, por disposição celeste, foram lá do alto escolhidos para governo e salvação do povo, procurando eficazmente aceder às suas legítimas instâncias. Por isso Nós, reconhecendo a tua pessoa dotada de prudência e equidade, e portanto idónea para governar, te recebemos e ao reino de Portugal sob a protecção de S. Pedro e Nossa, com todas as honras e dignidades próprias dos reis, concedendo-te, por virtude da autoridade apostólica, e confirmando-te na posse de todos os lugares que, com o auxílio da divina graça, conseguires arrancar das mãos dos Sarracenos, sem que os príncipes cristãos teus vizinhos possam alegar sobre eles quais quaisquer pretensões. E para que a tua devoção e obediência a S. Pedro, Príncipe dos Apóstolos, e à Santa Igreja Romana cresçam cada vez mais, quanto te concedemos a ti pessoalmente isto mesmo concedemos também aos teus herdeiros, tomando como um dever do nosso múnus apostólico defendê-los, com a ajuda de Deus, em tudo o que fica concedido. Por tua vez, filho caríssimo, terás o cuidado de te conservar submisso e devotado à Santa Igreja de Roma, exercitando-te, conforme as circunstâncias o permitirem, na dilatação dos confins da fé cristã, de modo que a Sé Apostólica se alegre por tão devoto e glorioso filho e descanse no teu amor. Como prova de que o predito reino pertence por direito a S. Pedro, tu mesmo, para maior demonstração de reverência, estabeleceste dar-Nos todos os anos, a Nós e aos Nossos sucessores, dois marcos de oiro; o qual censo, para Nossa utilidade e dos nossos sucessores, tu e os teus herdeiros depositareis todos os anos nas mãos do Arcebispo de Braga, que então estiver à frente daquela Sé.” (Oliveira Marques, 2024, p. 97).
Em boa verdade, a «encomenda» à Santa Sé efetuada por D. Afonso Henriques, também pode ser percebida como tentativa de contorno ao soberano de Leão e Castela, Afonso VII, e à submissão que a ele estávamos obrigados; aliás, em momento posterior e no desenvolvimento do processo de reconhecimento, a diplomacia leonesa procurou obstaculizar a intenção portuguesa.
Questões políticas, de diplomacia, de reconhecimento, de autoridade competente para o efetuar, de pagamento…encontrar-se-á, com a cautela arrastada pelos ventos da temporalidade, alguma similaridade, com os dias de hoje?
Mas os versos camonianos citados acima, para além da dimensão violenta (e já agora, organizada, da guerra) e política, remetem-nos de novo, e sem grandes explicações da nossa parte, por falta de «espaço», para o Divino, corporizado no conhecido milagre de Ourique (como já nos apercebemos, a religião ocupava (ocupa) «território» importante nestes assuntos; aliás e alargando pensamento, grande parte das questões de fé, de convicção, de dogma), motivador e anunciando previamente a vitória, com a justificativa primordial de reforçar a matriz católica do Reino.
Episódio relatado por D. Afonso Henriques em pergaminho datado de 1152 e encontrado em 1506, no cartório do real mosteiro de Alcobaça:
“Não te apareci deste modo para acrescentar a tua fé, mas para fortalecer o teu coração neste conflito… Confia, Afonso, porque não só vencerás esta batalha, mas todas as outras em que pelejares contra os inimigos da minha Cruz. Acharás a tua gente alegre e esforçada para a peleja; e te pedirá que entres na batalha com o título de rei (…). E para que teus descendentes reconheçam quem lhes dá o reino, comporás o escudo de tuas armas do preço com que Eu remi o género humano, e daquele por quem fui comprado pelos judeus, e ser-me-á santificado, puro na fé e amado na minha piedade” (plíniocorreadeoliveira.info; janeiro de 1974; consultado em 22de julho de 2024, 12h45m)2.
O nosso imaginário preenchido, encontra tradução na simbologia nacional, na nossa Bandeira Nacional, constitucionalmente preconizada como símbolo nacional, no artigo 11.º da Constituição da República Portuguesa. Estamos a falar de quinas ou escudetes, besantes, matéria, independentemente da discutida origem e interpretação, que não nos passa ao lado, dizemos nós… ou esses «saberes» estarão adormecidos, na generalidade? Bem, Luís Camões, lá os escreve, de retorcida e bela forma.
A associação com o sacrifício, com a religião, com a violência, com a simbologia e até com um coletivo está, em síntese, feita; mas antes de avançar um alerta: não se menosprezem estes assuntos de mito, de lenda, muitos deles imanentes de refregas; por exemplo, no nosso caso, e bem mais tarde, Alexandre Herculano (1810-1877) “ousou… falar em mito a propósito de Ourique [e] foi, como seria de esperar, acusado de inimigo da fé e da verdade…” (Nogueira, 2011, p. 113).
De tamanhas vitórias triunfava
O velho Afonso, Príncipe subido,
Quando quem tudo, enfim, vencendo andava,
Da larga e muita idade foi vencido.
A pálida doença lhe tocava,
Com fria mão, o corpo enfraquecido;
E pagaram seus anos deste jeito,
À triste Libitina seu dereito.
(Canto III, 83)
Os altos promontórios o choraram,
E dos rios as águas saudosas
Os semeados campos alagaram,
Com lágrimas correndo piadosas;
Mas tanto pelo mundo se alargaram,
Com fama, suas obras valerosas,
Que sempre no seu Reino chamarão:
«Afonso! Afonso!» os ecos; mas em vão.
(Canto III, 84)
Não poderíamos «fechar» sem o «caso triste», a circunstância daquela que foi Rainha depois de morta, Inês de Castro:
Passada estão tão próspera vitória [a vitória de D. Afonso IV no Salado]
Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra.
O caso triste e dina da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha
(Canto III, 118)
Como pôde acontecer isto, questiona o Gama:
Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co sangue só da morte indina
Matar do firme furor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina.
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra hua fraca dama delicada?
(Canto III, 123)
Foi por vontade popular… foi o Povo… o Rei até a queria perdoar:
Traziam-na os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava.
(Canto III, 124)
Queria perdoar-lje o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra hua dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?
(Canto III, 130)
Na essência, o povo… a responsabilidade dos povos, manipulados ou não, como justificativa. Ontem, como hoje…
A exaltação dos feitos portugueses efetuada pelo Poeta é óbvia, congregando várias variantes, mas essencialmente assentes numa base sobre a qual se vão erguendo outras; aquela integra, maioritariamente a Geografia, a História e a Religião, que encerram muitas vezes «saberes» prontos a emergir, trazidos a borbulhar e podendo ser «trabalhados» conforme a utilidade requerida pela finalidade.
Importa ainda, muito sucintamente dizer sobre isto, que no início é preciso saber e depois, regá-lo, também no pressuposto de que possuímos ainda (?) a capacidade de forjar e conduzir sociedades a contento dos diferentes povos e agregados… a vontade do Povo… para isto e afins, também importaria, no caso português, que o nosso Conceito Estratégico de Defesa Nacional dissesse alguma coisa sobre valores e saberes a cultivar, com orientações para o sistema educativo em geral (aliás, como noutros tempos e recentes, já o afirmou), onde se poderia até incluir linha de transdisciplinaridade, a níveis de ensino mais elevados… afinal, hoje os jovens preferem cachorros às sardinhas.
Com Luís de Camões em «Os Lusíadas», vários caminhos podem ser trilhados e por lá aparecem, como podemos ler, onde a atualidade e o passado se podem encontrar, numa zona cinzenta sempre permanente, até que sejamos substituídos por maquinaria que pense e que seja autónoma.
As perguntas (novamente) feitas ao longo do texto, algumas até de maneira irónica, isso corporizam, mas acreditem que o poema tem muito de política, de estratégia, do que se hoje se conhece por geopolítica/geoestratégia e fatores que aqui se estudam e se colocam em movimento, procurando corporizar dinâmicas de Poder, de ciência política, de sociologia, de economia, entre outros, certamente.
Mas entre o já afirmado e em acumulação, damos conta do «eu» e do «outro», do permanente combate ao mouro, ao islâmico, das razões para o confronto, do que se encontra envolvido na chegada à Índia e posterior controlo da rota das especiarias – A coroa portuguesa estabeleceu regras quanto ao comércio das especiarias: “O rei de Portugal tinha sempre direito a um quinto dos lucros das operações comerciais, os privados podiam investir e armar navios mercantes desde que respeitassem estas regras (…). A frota que D. Francisco de Almeida levou à India, por um custo de 250000 cruzados, foi financiada em quase 70% por um sindicato bancário organizado por alemães e italianos. Mas o comando estava nas mãos do rei D. Manuel e dos seus agentes” (Nogueira Pinto, 2013, p. 59) –, da valorização de um povo humilde, mas sempre tenaz, da incessante busca da contraposição ao poder espanhol, quase em «legítima defesa» e da importância do nosso alargamento territorial a três continentes, com as inerentes sequelas políticas, económicas e comerciais, apoiado sobretudo por um «poder marítimo», que se traduzia, entre outros, pela navegação das nossas esquadras em três oceanos (Nogueira Pinto, 2013).
E sobre a guerra? Não temos com Luís de Camões, reitera-se, os seus parâmetros definidores: constituir-se como um facto violento organizado, um facto político e um facto coletivo? Tomara consciencializarmo-nos disso hoje, com as conflitualidades contemporâneas, particularmente, as da moda.
Afinal, não temos a Portugalidade no português que irá dar o seu nome a um tal de novo aeroporto? O que significa ser «Português»? É diferente em substância, do «Português» de outrora? Identidades…
Muita coisa terá ficado por dizer, mas a finalidade deste texto, anunciada de maneira camuflada no início, era só lembrar…
Nem deixarão meus versos esquecidos
Aqueles que, nos Reinos lá da Aurora,
Se fizeram por armas tão subidos,
Vossa bandeira sempre vencedora:
Um Pacheco fortíssimo e os temidos
Almeidas, por quem sempre o Tejo chora,
Albuquerque terríbil, Castro forte,
E outros em quem poder não teve a morte
(Canto I, 14)
Camões, Luís de (1974). Os Lusíadas, Emanuel Paulo Ramos [Ed], Porto Editora, Porto.
Nogueira, José Manuel Freire (2011). O método geopolítico alargado. Persistências e contingências em Portugal e no Mundo, Instituto de Estudos Superiores Militares, Lisboa.
Oliveira Marques, A. H. (2024). História de Portugal. Das origens às revoluções liberais, João Alves Dias [Ed. atualizada e aumentada], Presença, Lisboa.
Pinto, Jaime Nogueira (2013). Portugal. Ascensão e queda. Ideias e políticas de uma Nação singular, Dom Quixote, Lisboa.
Varandas, José (2022). D. Afonso Henriques e o Exército, Caleidoscópio, Lisboa.
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1 Embora haja alguma incerteza quanto ao local (por exemplo, a possibilidade da batalha ter ocorrido nos campos de Vila Chã de Ourique, no atual distrito de Santarém), o que se apresenta é o mais consensual.
2 Em «digitarq.arquivos.pt», consultado em 22 de julho de 2024, pelas 12h51, do Arquivo Nacional Torre do Tombo, encontra-se referência a documento intitulado: «Translado de um papel que se achou no cartório de Alcobaça, muito antigo em latim sobre o juramento do rei D. Afonso Henriques em que declara o modo em que lhe apareceu Cristo na cruz antes da batalha de Ourique».