Nº 2671/2672 - Agosto/Setembro 2024
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
N’Os Lusíadas… D. Afonso IV e e Batalha do Salado
Tenente-coronel
Abílio Pires Lousada

Luís Vaz de Camões, o mais português de sempre!

A vida de Camões (1524?-1580?) atravessa a ascensão, o apogeu e o declínio do Império Português do Oriente, ou seja, sentiu e viveu as grandezas e misérias do Portugal Imperial. Cantou as grandezas e ignorou as misérias, submetendo-se ele próprio a esse opróbrio.

Estudante em Coimbra e homem de corte em Lisboa, errou pela vida; entregou-se de amores a despeito e quase perdeu o respeito; arruaceiro nas horas vagas, passou pelas masmorras régias; soldado de espada forjada nas guerras do Norte de África, perdeu um olho; desterrado nas Índias e expedicionário entre Goa, Macau ou Malaca, o funcionário, mercador e aventureiro viveu atolado em dívidas e entregue a favores alheios; foi lírico, épico e teatral, e deixou enrolar o virtuosismo nas redondilhas da tacanhez de gente obscura; em Os Lusíadas cantou a Pátria como ninguém, mas mendigou no inverno da vida.

Desalentado de tantos trabalhos e canseiras pousou a pena e deixou-se ficar… à espera. Com os exércitos de Filipe II às portas de Lisboa e a Dinastia Hispânica plasmada no horizonte escorregou para as brumas da imortalidade, dizendo-se que disse: “ao menos morro com a Pátria”, num último sopro de lamento!

 

Contexto Histórico Oriental

A partir de finais do século XV, a Europa assistiu a profundas alterações políticas, sociais, culturais, científicas e religiosas, que se traduziram na rutura com os modelos medievais e no alvorecer da modernidade. A uma Europa espartilhada e fragmentada em inúmeros pequenos Estados, com um débil poder régio, dependente do poder de Deus materializado no Papa, sucedeu o pensamento secular de monarquias centralizadoras que formaram e consolidaram nacionalidades organizadas e independentes. O Renascimento cultural italiano, o heliocentrismo de Copérnico e de Galileu e a imprensa de Gutenberg deram uma rápida expansão ao humanismo, ao racionalismo e ao individualismo, consentindo um maior intercâmbio cultural e civilizacional.

Expansão Portuguesa e Espanhola nos séculos XVI e XVII.

In Público, Geografia do Continente Europeu através dos tempos, Maio de 2001

 

A Europa gozava então de um conhecimento científico e tecnológico acumulado, uma sociedade dinâmica e ávida de bem-estar. O majestático poder reinante e a sociedade de consumo ansiavam pelo acesso a produtos requintados como a seda, pedras preciosas e especiarias, enquanto luxuoso padrão de vida. Acontece que esses produtos existiam a Oriente, eram transacionados por rotas marítimas controladas pelos muçulmanos e chegavam à Europa, via Mediterrâneo, pela mão de genoveses e venezianos; que os vendiam a preços elevadíssimos. Assim, ou os Estados definiam rotas comerciais alternativas e buscavam a obtenção dos produtos na fonte de produção, entrando em competição com poderes instalados, ou aguentavam a dependência dos intermediários. Os «falcões da política europeia», como a Inglaterra, a França ou o Império Habsburgo aquietaram-se. Mas não Portugal e a Espanha, de certo modo afastadas pelos Pirenéus do centro da Europa. Crónicos rivais, os dois reinos tornaram a fronteira que os separava num espaço de equilíbrio terrestre e acertaram posições relativamente «às coisas do mar». O marco decisivo foi o Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494: Portugal desbravou a rota do Cabo e fez do Índico um espaço de interação comercial e confronto militar; a Espanha sulcou o Atlântico rumo a Ocidente à procura do minério americano. E assim, até ao último quartel do século XVI, as duas potências ibéricas controlaram as cobiçadas rotas marítimas do Índico e do Atlântico, impondo o mare clausum. Domínio que cabia na esfera da Respublica Christiana, onde permaneceram fiéis, pese embora o cisma religioso protestante. Portugal era então um império global, primeira potência comercial e Nação de referência.

Contudo, com territórios imensos e dispersos, de “fronteiras” imprecisas e descontínuas, situados a milhares de quilómetros da metrópole, sustentar o império índico e garantir o seu usufruto comercial revelava-se tarefa ciclópica. Agravada porque Portugal tinha um estrato populacional pouco superior a 2.000.000 de habitantes. Consequentemente, ainda durante o reinado de D. João III (1551-1557), a reafectação imperial a Oriente tornou-se irreversível, também devido ao choque com as potências marítimas europeias emergentes, particularmente a Inglaterra e as Províncias Unidas (Holanda).

 

A Dedicatória Sebástica e a África em mente!

Nascido, segundo data mais comummente aceite, em 1524, curiosamente ano da morte em Cochim do então Vice-rei Vasco da Gama, o herói primacial de epopeia n’Os Lusíadas, Camões “canta” através dele a gesta dos Portugueses enquanto herói coletivo, fazendo da descoberta do caminho marítimo para a Índia (1497-1498) o maior dos feitos da humanidade, só ao alcance dos predestinados ou dos favorecidos pelos… deuses do Olimpo. Senhores do mundo; Camões define o providencialismo lusitano gravado na esfera armilar manuelina, apresentando os portugueses como povo de proa civilizacional e de conciliação espiritual entre cristãos, mouros, turcos e gentios.

Mas a master obra do poeta lusitano, assente na «viagem de todas as viagens», publicada mais de sete decénios decorridos (1572), surge em parte algo fora de contexto da dinâmica estratégica então vigente. Dedicada ao rei D. Sebastião (Canto I, Estrofes 6-18), “O Desejado” que reinava de facto há quatro anos, enaltece-o como o garante da “segurança da liberdade do povo português e esperança certa de aumento da fé cristã; o pavor dos mouros e a maravilha do destino que Deus ofereceu a Portugal para propagação do Cristianismo”1. Camões puxa-o para a galeria dos fautores da Portugalidade e guardiães da cristandade, entre os quais Egas Moniz, Fuas Roupinho, D. Afonso Henriques, D. Dinis, D. Afonso IV, D. João I, D. Nuno Álvares Pereira ou os grandes capitães de mar e de terra da Índia – o panteão dos imortais.

Camões como que o exorta a fazer muita guerra no Norte de África, para onde realmente o jovem rei já estava animicamente orientado. Doutrinado pelo jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, que o incentiva a ser paladino da cristandade romana numa Europa de falsa-fé (protestantismo) e ameaçada pelos turcos (islamismo), tinha como mentor militar Aleixo de Menezes, nobre que fez parte da carreira no Norte de África. Eis D. Sebastião, o guerreiro que trataria de fazer muita cristandade, o garante da pátria celeste, sucessor do projeto templário de D. Afonso Henriques, do culto do Espírito Santo com D. Dinis, da epopeia marítima da Cruz de Cristo através do infante D. Henrique e da universalidade temporal de Vasco da Gama no tempo de D. Manuel O Venturoso. O “ideal heróico”, na senda da medieva e reta conduta cavaleiresca, que o épico propõe a D. Sebastião, aquele que pode romper com o comodismo e até a obscuridade em que o reino mergulhou. O chefe que rompe com a letargia, o facho de luz que ilumina o caminho, pois a excelência da obediência de valorosos vassalos prontos a servi-lo e a segui-lo estão presentes e desejosos, lembra Camões a encerrar a Obra (Canto X, Estrofes 146-151).

Luís de Camões. Poeta da Renascença,
combatente de ideais medievos
.

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quien-fue-camoes

África. O Norte desse agreste e litigioso continente justificava um novo sonho imperial para Portugal. A oportunidade para D. Sebastião se apresentar como paladino dos príncipes europeus e, quem sabe, Camões versar ainda novos feitos dos sempre valorosos lusitanos de peito feito. Sim, para o monarca e a corte, África era a «praça de armas» da nobreza portuguesa, onde se ganhava esporas e prestígio, tão perto de casa e quase ignorada à conta das especiarias do longínquo e competitivo Oriente e do novo el-dourado que pareceria despontar no Brasil. Era para Marrocos que as sinergias deviam ser de novo canalizadas: Espanha passava a ser vigiada a Sul, o Mediterrâneo controlado, a pirataria moura anulada e os turcos contidos.

No entanto, como pressagiando o pior, Camões também alerta para que o rei se aconselhe com a sensata experiência dos mais velhos, pois nas coisas da guerra o “saber de experiência feito” (Canto IV, Estrofe 94) está para além dos sonhos, dos estudos ou da fantasia (Canto X, Estrofes 152-153). De facto, “o fim do poema mostra-nos um misto de inquietação e de esperança da parte do poeta para com o rei português, que ele sabia jovem e sem experiência”2. Seis anos decorridos, o pior do temor camoniano materializou-se nas areias escaldantes de Alcácer-Quibir! Vestido com a armadura da fé e de espada em riste, organizou militarmente a nação, solicitou, em nome de Deus, auxílio militar aos príncipes da Europa, constituiu um exército, pediu a bênção papal e rumou para África, no verão de 1578. Finalmente, D. Sebastião ia ao encontro da guerra, fazer a sua batalha e marcar o seu destino. Dois anos depois de D. Sebastião ter mergulhado o reino por Marrocos adentro, Filipe II mergulhou a Espanha Portugal adentro. Seguia-se o nevoeiro da lenda pela espuma dos tempos!

 

Na Península Ibérica: Enquadramento Camoniano da Batalha do Salado

Camões publicou Os Lusíadas em época tardo-renascentista, onde encaixa naturalmente a epopeia dos heróis da Pátria ou dos conselhos dados a quem governa, a apologia do amor e da fecundidade, a mitologia pagã e do sobrenatural dos Clássicos Greco-Romanos, mas também do humanismo pacificador e atreito à conciliação e ao desenvolvimento e bem-estar a bem das comunidades. Não obstante, e quase como um contrassenso, Camões como que coloca “uma epopeia renascentista ao serviço de ideais cavaleirescos”3. Um recuo temporal para os ideais da guerra medieval, mediante sobrevalorização da coragem e da bravura individuais por oposição ao egoísmo e às paixões viciosas, da aventura e da retidão moral da coletividade face ao comodismo e ceticismo, da divinização da pátria e disponibilidade para o martírio em nome da fé, do enaltecimento dos fortes capitães que fazem forte a forte gente enquanto garantes da terra dos egrégios avós, da guerra justa, sábia e proporcionada.

Camões projeta nos seus conterrâneos a necessidade de recuperação da sabedoria perdida, do sonho ausente e da fortaleza cadente, conjugados pelas virtudes da temperança e da justiça. Virtudes cardinais que urgem laborar o futuro, lembrando os feitos gloriosos dos «maiores», dando especial destaque a reis de espada na mão como D. Afonso Henriques e a Batalha de Ourique, D. Afonso IV e a Batalha do Salado e D. João I e D. Nuno Álvares Pereira e a Batalha de Aljubarrota; “os heróis que se tornaram ilustres sobretudo na guerra, vencendo Marte”4.

E assim temos Luís Camões de pena tingida com a seiva do Renascimento, vestido com a armadura da fé em ambiente medieval!

A Batalha do Salado merece n’Os Lusíadas um destaque de 11 Estrofes (Canto III, Estrofes 107-117), com um introito centrado na “Fermosíssima Maria” (Canto III, Estrofes 101-106). Neste contexto, acorrendo à súplica da filha, D. Afonso IV auxilia militarmente o rei de Castela Afonso XI contra as forças muçulmanas de Granada e Marrocos. A sua ação na batalha travada a Sul de Algeciras/Tarifa, a 30 de Outubro de 1340, é decisiva e faz dele O Bravo.

No início do verão de 1340, D. Maria dá entrada no paço real de Évora, onde se encontra com o pai, D. Afonso IV de Portugal. Apresenta-se como emissária do marido, Afonso XI de Castela, e o assunto que apresenta é pertinente. A primogénita do rei de Portugal vive estados de alma contraditórios. Por um lado, sente-se despeitada na corte, onde a sevilhana Leonor Nuñez de Guzman paira como cortesã favorita das infidelidades do marido. Por outro lado, pelo facto de este se sentir perigosamente acossado pelos muçulmanos, tanto no Mediterrâneo como nas fronteiras terrestres, intercede por auxílio militar junto do pai.

Entrava a Fermosíssima Maria

Polos paternais paços sublimados,

Lindo o gesto, mas fora de alegria,

E seus olhos em lágrimas banhados.

Os cabelos angélicos trazia

Pelos ebúrneos ombros espalhados,

Diante do pai ledo, que a agasalha,

Estas palavras tais, chorando, espalha:

Canto III, Estrofe 102

 

A “Fermosíssima Maria” suplica com erudição a um D. Afonso IV pouco disposto a aligeirar problemas político-militares do genro, por quem não morre de amores. Diz-lhe que o rei de Marrocos domina a navegação no Estreito, que reuniu tropas por toda a África e está disposto a conquistar a Hispânia. E que o rei de Castela, com poucas e exaustas forças, se encontra em graves dificuldades para fazer face à ameaça. Por isso, além de proclamar o amor de esposa ignorada, roga ao verdadeiro amor de pai, a quem pede que acuda ao perigo que se vive em Castela. Porque, se o não fizer, vê-la-á privada de marido, de reino e de ventura. Camões faz ainda um paralelismo do diálogo com a mitologia latina, em que Vénus (deusa romana do amor) suplica a Júpiter (pai dos deuses) proteção para Eneias (famoso chefe troiano). O pedido de Vénus (Maria) foi tão comovente que Júpiter (D. Afonso IV) anuiu e tudo concedeu a Eneias (Afonso XI).

A conjuntura mereceu a atenção de D. Afonso IV, que desfiou as relações com Castela e interiorizou as suas debilidades, intuiu o perigo islâmico e pensou nas palavras da filha.

 

A Batalha do Salado – 30 de Outubro de 1340

D. Afonso IV de Portugal e Afonso XI de Castela assumiram a governação régia no mesmo ano de 1325; aquele já homem maduro, com 34 anos, este ainda adolescente com 14. Ao contrário de Castela, ainda a braços com a vizinhança muçulmana de Granada e a contínua pressão feita a partir do Norte de África pelos berberes benimerines (herdeiros da dinastia almóada), Portugal tinha terminado a Reconquista em meados do século XIII, através do seu avô, D. Afonso III. No reinado seguinte, o pai, D. Dinis, delimitou o território através do Tratado Alcañices, firmado em 1297 com Fernando IV de Leão e Castela. A fronteira peninsular, fator de pressão e de conflitualidade, passou para polo de cooperação e equilíbrio.

Até à política de casamentos.

 

Raciocínio estratégico

Casado, desde 1309, com a infanta castelhana D. Beatriz, filha de Sancho IV de Castel, D. Afonso IV estabeleceu o Acordo de Confirmação Luso-Castelhano em 1328, casando a primogénita D. Maria com o rei de Castela Afonso XI. Depois, na procura de diversificar relações e influências, aprazou o casamento do príncipe D. Pedro com Constança Manuel, filha de João Manuel de Castela e de Constança de Aragão, rivais da casa real de Afonso XI. Não correu bem! No primeiro caso, acusou Afonso XI de repudiar e molestar a filha; no segundo, de reter Constança Manuel em Castela, numa clara oposição ao seu casamento em Portugal. O resultado foi a guerra entre os dois Estados (1336-1339), marcada por operações terrestres e navais nas fronteiras do Minho-Galiza, Alentejo-Extremadura hispânica e Algarve-Andaluzia.

Com vantagem portuguesa em terra, mas preponderância castelhana no mar, o conflito lavrou sob o signo do impasse estratégico. Enquanto isso, Granada e Marrocos acompanhavam com atenção os acontecimentos e o Papa Bento XII, que anteviu o perigo, interveio. Assim, no verão de 1339 alcançou-se a paz em Sevilha e fez-se transferência das terras ocupadas, de prisioneiros e de material de guerra capturados. E, finalmente, Constança Manuel viajou para Portugal. Mas, curiosamente, sobre o respeito devido à rainha D. Maria nem uma palavra; Afonso XI manteve a conveniência de Leonor de Guzman como amante.

D. Afonso IV orientou, depois, o raciocínio para o mosaico ibérico, que contava três reinos cristãos e o muçulmano de Granada. A Leste, o reino de Aragão, de Pedro IV, era um reino politicamente estabilizado, com boas relações de cooperação com a França e proveitosa interação comercial no Mediterrâneo. A Oeste, Portugal era um reino fundamentado, que olhava para o Atlântico como espaço a explorar e mantinha o Mediterrâneo debaixo da sua esfera de interesses. Relativamente a Castela, tinha relações de cooperação com Aragão e de acomodação com Portugal, padecia de rivalidades internas entre os grandes senhores e a casa real e sujeitava-se a ameaças muçulmanas junto à fronteira andaluza, situação que obrigava o monarca a uma ação itinerante pelo território. O problema agudizou-se em 1339, quando forças comandadas por Abu Malik, filho do sultão de Marrocos, atravessaram o Estreito e tomaram Gibraltar. Tratou-se de uma enorme contrariedade para o rei de Castela, que perdeu o mais importante ponto de vigilância e de defesa da embocadura do Mediterrâneo.

Depois de medir o lado cristão, D. Afonso IV infere Granada. Trata-se do último bastião muçulmano na Península, um enclave ameaçado pelos cristãos em terra e pela dinastia benimerine a partir de África. Enquanto Portugal e Castela se guerrearam entre 1336-1339, Yssuf-Abu-Hajiab, rei de Granada, firmou uma aliança com o sultão de Marrocos, Abu-l-Hasan’Ali. Se, para Granada, a motivação é a recuperação de décadas de retração fronteiriça, para o sultão benimerine o status quo que se vive na Península permite-lhe a possibilidade de concretização do sonho de reedição do al-Andaluz, qual Tarik de 711. Acresce que o controlo do Estreito e a importância que os portos de Málaga e Algeciras (domínios de Granada), Tarifa e Gibraltar (praças de Castela) têm no comércio marítimo entre o Mediterrâneo e o Atlântico justificam uma intervenção militar marroquina na Hispânia.

A partir de 1338, iniciaram-se atividades navais no Estreito de Gibraltar. No ano seguinte, o rei de Granada, com o apoio de Abu Malik, conquistou territórios a sul da Andaluzia (que incluiu Gibraltar, já referido), obrigando Afonso XI, perante a exaustão das suas forças, a procurar tréguas com os muçulmanos. Entretanto, quando em princípios de 1340, o sultão de Marrocos intensificou a transferência de tropas para Granada, o rei de Castela solicitou apoio naval a Pedro IV de Aragão. Através uma operação coordenada, (castelhanos em terra e aragoneses no mar), a frota muçulmana, que operava no Mediterrânio, foi derrotada no Estreito, enquanto a hoste marroquina em ação na região de Librija (celeiro da Andaluzia) foi desbaratada e Abu Malik morto em Jerez de La Frontera.

A morte do filho de Abu-l-Hasan’Ali precipitou a invasão marroquina da Andaluzia, que pôs cerco a Tarifa. Em resposta, Afonso XI enviou a armada de Castela e Aragão (trinta navios e seis galés) para o Estreito de Gibraltar. Porém, frente a uma numerosa armada de trezentas embarcações, a cristã, comandada pelo almirante castelhano Tenório, sofre uma humilhante derrota, em 16 de abril de 1340. Com as linhas de comunicação marítimas desimpedidas, Abu-l-Hasan’Ali atravessou o Estreito e desembarcou o seu exército em Algeciras, onde as forças do rei de Granada se lhe reuniram.

Perante a concentração de um poderoso exército muçulmano nas costas da Andaluzia, com Tarifa sob assédio (cuja perda implicaria a de Jerez de la Frontera) e o controlo do Estreito em suspenso, Afonso XI reconheceu a incapacidade da aliança castelhano-aragonesa para fazer frente à ameaça. Esta conjuntura fez, inclusivamente, soar as «campainhas de alarme» na cristandade; a Península estava em perigo. É neste contexto que o papa Bento XII envia a Afonso XI uma carta de teor duro, pela qual lhe exige um profundo exame de consciência relativamente à sua inaceitável situação pública de concubinato, em detrimento «da sua salvação e da sua glória», leia-se, assumir a rainha sua mulher e aproximar-se politicamente de D. Afonso IV. E lança a Bula de cruzada Exultamus in Te.

 

Nas margens do Rio Salado

Revisitados os cenários, D. Afonso IV ou acorre militarmente em auxílio de Afonso XI, ou ignora a situação e deixa Castela ao desvario de uma invasão sarracena! No meio-termo está a filha, que se impõe dignificar enquanto rainha de Castela, e o Papa, que pede intervenção. O amor de pai e o sentir cristão falam mais alto e Afonso XI tem o trunfo português para jogar contra a pressão muçulmana. E, assim, D. Afonso IV “entra nas terras de Castela, com a filha gentil, Rainha dela” (Canto III, Estrofe 108).

Os dois monarcas encontram-se em Juromenha e firmam acordo, a 10 de julho de 1340. Por esta via, Castela, Portugal e Aragão estabeleceram uma liga ofensiva e defensiva contra a aliança Granada-Marrocos, assumindo que o perigo era comum. Mas D. Afonso IV exige ao genro uma condição: a expulsão de Leonor Guzman da corte e tratamento condigno a D. Maria, enquanto rainha de Castela.

D. Afonso IV lançou pregão de guerra no reino, concentrou tropas da Estremadura, Alentejo e Algarve em Elvas, enquanto as reunidas na Beira, Trás-os-Montes e Minho seguiram diretamente para Sevilha. No total mil lanças, ou seja, outros tantos cavaleiros e cerca de 3 a 4 mil homens apeados, entre arqueiros, besteiros e piqueiros. Acompanhavam o rei grandes figuras do reino, como o arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira, e os mestres das Ordens do Hospital, de Santiago e de Avis, respetivamente D. Álvaro Gonçalves Pereira, D. Garcia Peres de Abreu e D. Gonçalo Vaz, o que dá a ideia da importância religiosa e militar da empresa. Por mar, deslocou para a área de Algeciras uma frota de dez galés, destinada a auxiliar o controlo do Estreito, facilitar o desembarque de tropas e permitir apoio logístico.

Os exércitos concentraram-se em Sevilha, onde os monarcas acertaram estratégias. Para alguns cronistas, ao todo eram 120 mil infantes e 18 mil cavaleiros; para outros, não eram mais do que 14.000 a cavalo e cerca de 65 mil a pé. Depois, o trajeto até Tarifa, iniciado a 16 de outubro, foi feito em pequenas jornadas, demorando cerca de duas semanas. Espaço temporal em que foi enviada uma mensagem ao sultão que intimava à retirada.

Contudo, os sarracenos decidiram dar batalha, escolhendo, para o efeito, terreno na área de Tarifa – Peña del Ciervo – onde concentraram um volume de tropas superior 100 mil efetivos, que duplicavam com a presença das respetivas famílias. Na manhã de Domingo de 29 de outubro, os cristãos acercaram-se do local, numa pequena serra com 400 metros de elevação. Daqui conseguiam avistar a força muçulmana, distribuída pela margem oposta do Salado e até ao cimo das elevações que conduziam a Tarifa, 3 km à retaguarda. Uma multidão de tal monta que mais dava a impressão que toda a África se tinha para ali deslocado em peso.

Dispositivos de Batalha no Rio Salado.

Cortesia de Óscar Lousada

 

Os exércitos dispuseram-se para a batalha. O emir de Marrocos colocou o seu pavilhão a Oeste, junto ao mar, e o sultão de Granada a Leste, na serra, separados por um cotovelo do rio. À sua retaguarda estava Tarifa, fracamente guarnecida e que podia servir de ponto de apoio. Os benimerines, fortes em cavalaria e atiradores, aguentariam a posição, face ao previsível ataque frontal castelhano, e os granadinos, com a cavalaria ligeira e peonagem, envolveriam os portugueses, se o rio fosse transposto. Assumindo uma postura defensiva, o terreno não foi organizado, convencidos que o poder do número, o Salado como obstáculo e a posição escolhida lhes daria a vitória. Contudo, os dois exércitos estavam desligados.

Os cristãos acamparam na margem Norte do Salado e definiram o plano de batalha para o dia seguinte. O rei de Castela atacaria o flanco esquerdo do dispositivo do emir, pelo lado do mar, secundando a vanguarda apeada do infante Juan Manuel, que fixaria o centro do inimigo, e apoiado pelos navios fundeados no mar. O rei de Portugal, reforçado com cavaleiros castelhanos comandados pelos mestres de Alcântara e Calatrava, atacaria o flanco direito do sultão, pelo lado da serra. Na praia de Tarifa desembarcaria quanta gente fosse possível. A retaguarda foi colocada ao cuidado de Gonçalo de Aguilar e da sua milícia de Córdoba, Pedro Nuñez de Guzmán e os asturianos apeados constituíam o corpo de reserva.

O plano era complementado com um ardil. Reconhecimentos furtivos permitiram aferir que o acesso a Tarifa pela encosta era fácil e que, daqui, até à tenda do sultão marroquino era «um pulo». Se, na véspera da batalha, se pudesse acometer a tenda do sultão isso obrigaria a um frémito defensivo por parte dos sarracenos, dispersando-lhes atenção e esforços. Assim, durante a noite, um grupo de «combate», entre homens de armas e peonagem, coordenados por Afonso de Benavides, subiu a encosta em «passo fantasma», travou escaramuças com os mouros e forçou a entrada no reduto. Os guardas, com medo de represálias, ocultaram o caso ao sultão e, após cortarem a cabeça de um cristão morto durante a escaramuça, apresentaram-se com ela diante de Abu-l-Hasan’Ali, descansando-o relativamente a Tarifa. Mas a verdade é que o sultão berbere tinha, sem o pressentir, um perigoso efetivo infiltrado «nas suas costas».

 

A Batalha

No dia 30 de outubro, ao romper do dia, as hostes cristãs confessaram-se, dispuseram no terreno a ordem de batalha e atacaram de forma coordenada.

Batalha do Salado.

Original Aguarela de Roque Gameiro in História de Portugal de M. Pinheiro Chagas

 

Eis as lanças e espadas retinam

Por cima dos arneses, bravo estrago;

Chama, segundo as leis que ali seguiam,

Hus Mafamede e os outros Santiago.

Os feridos com grita o Céu feriam,

Fazendo de seu sangue bruto lago,

Onde outros meios mortos se afogavam,

Quando o ferro as vidas escapavam.

Canto III, Estrofe 112

 

Numa primeira fase, a vanguarda de Juan Manuel é travada pelo centro dos benimerines, nas margens do Salado, enquanto Afonso XI procura forçar passagem mediante uma reiteração de esforços. Em várias ocasiões tiveram os castelhanos de retroceder, à custa dos disparos de um inimigo superior em número. Na luta corpo a corpo, os cavaleiros apeavam e combatiam a pé, enquanto os comandantes mais à retaguarda, atentos ao que se passava, iam recolocando os peões onde a refrega estava mais encarniçada.

Santo Lenho usado para exortação na Batalha do Salado. Igreja de Vera Cruz de Marmelar/Portel.

Foto do autor

 

Entretanto, D. Afonso IV, apesar da resistência encontrada, consegue atravessar o rio e fixa as forças da parte central do dispositivo de Granada. Para dar ânimo aos seus homens, o rei fez chegar à frente o prior do Hospital, que lhes mostrou a Vera Cruz de Marmelar, uma relíquia do Santo Lenho onde Jesus Cristo foi crucificado. Estava dado o suplemento de alma. Entoando-se o salmo “Exurgat Deus, & dissipentur Inimici ejus”5 (Levante-se Deus, e sejam destruídos os seus inimigos), D. Afonso IV desenvolveu então um ataque de flanco, que surpreendeu os granadinos.

Esta manobra permite ao rei de Castela resolver o impasse na sua zona de ação. Flanqueia a vanguarda de Juan Manuel, que continua empenhada e sem capacidade de progressão, e ataca o flanco direito de Abu-l-Hasan’Ali. Ao mesmo tempo, ocorriam desembarques de castelhanos e aragoneses. É nesta fase que Afonso de Benavides, aproveitando a ação portuguesa e a manobra castelhana, acomete a retaguarda do sultão com os homens que infiltrara em Tarifa, obrigando-o a desviar forças e a combater em frentes invertidas. O caos instala-se na tenda do sultão, que dá ordens e contraordens, sem nexo nem consequência.

Nessa altura, D. Afonso IV contorna a serra e efetua um envolvimento montado ao dispositivo de Granada, beneficiando do ataque apeado que os asturianos, comandados por Pedro Nuñez de Guzmán, concretiza ao centro. Esta ação instala o pânico no adversário, obrigando o rei Yusûf I a retirar. Consumada a derrota granadina, a situação entre os benimerines degradou-se rapidamente. As forças do sultão estão envolvidas e o seu próprio arraial é atacado, iniciando-se uma debandada de guerreiros e concubinato.

Nos flancos do dispositivo mouro, a vitória cristã estava consumada. Ao centro permanece o impasse e é aí que Afonso XI concentra o esforço. É recebido por uma «chuva» de setas e dardos, que causam grandes estragos e esmorecem os homens. O rei está irado e mais fica quando uma seta se crava na sela do seu cavalo. Lança então um grito de guerra lancinante «Eu sou rei de Castela e Leão e hoje quero saber quem são os meus fiéis vassalos; porque hoje ficais a saber quem eu sou». Um dos destinatários é Pedro Nuñez de Guzmán, que combateu os granadinos ao lado de D. Afonso IV, ao arrepio das suas instruções. Os peões asturianos são, então, canalizados contra os benimerines, em complemento das cargas montadas de Afonso XI.

Perante a iminência da derrota, Abu-l-Hasan’Ali foge para Algeciras, onde se lhe junta Yusûf I, deixando tudo para trás. Acossado, consegue atravessar o Estreito e recolher às suas terras norte-africanas. Entretanto, a perseguição dos cristãos é desencadeada sem contemplações, mas limitada no espaço, terminando na ribeira de Guadamicil, a duas léguas do campo de batalha. Regressados, reorganizam as forças, contabilizam os prisioneiros com interesse de resgate e recolhem os despojos, avultados em ouro e prata. As fontes cristãs referem, naturalmente, as poucas baixas das hostes reais, mas as árabes não conseguem disfarçar o desastre, considerando a batalha do Salado «infausta e cruel para os fiéis que sofreram em grande número o martírio da espada». A este respeito não deixa Camões de enfatizar: Quando o poder do Mauro, grande e horrendo, // Foi pelos fortes reis desbaratado, // Com tanta mortindade, que a memória // Nunca no mundo viu tão grã vitória (Canto III, Estrofe 115).

Para a época, em que as guerras eram travadas em nome de Deus, árbitro justo e soberano, enquanto os cristãos foram protegidos pela cruz, os sarracenos foram abandonados pelo profeta. A cruzada venceu a jihad.

 

O Crepúsculo Muçulmano na Península Ibérica

Seguiu-se uma triunfal entrada em Sevilha.

D. Afonso IV, que teve uma atuação decisiva no Salado e dali saiu cognominado o Bravo, não quis dividir os despojos da batalha. Generosamente proclamou que tinha assumido a empresa como um serviço a Deus e por honra ao rei de Castela. Afonso XI insistiu e D. Afonso IV levou para Portugal, como cativo, o filho do rei de Segilmença, cinco bandeiras tomadas aos mouros, algumas espadas, uma cimitarra ornada de pedrarias e a trombeta do sultão de Granada.

Afonso XI tentou aproveitar a dinâmica da vitória, decidido a sitiar a praça de Algeciras. Desistiu ao perceber que o exército carecia de abastecimentos, que a aproximação do inverno agravaria. Na primavera de 1341, desencadeou uma campanha terrestre contra o reino de Granada, ocupando algumas praças, enquanto a esquadra mantinha uma estreita vigilância entre Algeciras e Ceuta. Durante o mês de agosto de 1342, cercou Algeciras, que finalmente conquistou. Restava Gibraltar, cercada em 1349, onde Afonso XI, o Justiceiro, morre de peste, a 27 de março do ano seguinte, sem atingir os objetivos.

Depois de se recomporem em Algeciras, o emir de Marrocos, Abu-l-Hasan’Ali, permaneceu temporariamente em Gibraltar e seguiu para o Norte de África, e o sultão de Granada, Yusûf I, regressou aos seus domínios peninsulares. Mas ai dos vencidos, pelo que o destino de ambos estava traçado – assassinados devido a disputas internas de poder.

O Salado foi a última grande e decisiva batalha da Reconquista Cristã na Península. Mas o processo de eliminação completa da presença árabe no al-Andaluz foi lento. Só depois de um século de bloqueios económicos, tréguas e devolução de cativos, a obra da reconquista é levada a bom termo pelos reis católicos, Fernando e Isabel, que conquistam Gibraltar, em 1462, e Granada, após um cerco prolongado, em 1492. Por esta altura, reinava em Portugal D. João II e imperava o conceito estratégico «conter Castela em terra e batê-la no mar», com a rota da Índia pelo Índico «em linha de vista» depois de Bartolomeu Dias ter chegado ao Cabo da Boa esperança, em 1488.

 

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Abílio Pires Lousada

Militar Historiador. Sócio Efetivo da Revista Militar. Co-Diretor da Revista Portuguesa de História Militar.

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