Nº 2671/2672 - Agosto/Setembro 2024
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Guerras no Norte de África
Prof. Doutora
Margarida Garcez Ventura

Eis aqui, quási cume da cabeça

De Europa toda, o Reino Lusitano […]

Este quis o Céu justo que floreça

Nas armas contra o torpe Mauritano,

Deitando-o de si fora; e lá na ardente

África estar quieto o não consente.

Os Lusíadas, III, 201

 

Não tens junto contigo o Ismaelita,

Com quem sempre terás guerras sobejas?

Não segue ele do Arábio a lei maldita,

Se tu pola de Cristo só pelejas?

[…]

Deixas criar às portas o inimigo,

Por ires buscar outro de tão longe,

Por quem se despovoe o Reino antigo,

Se enfraqueça e se vá deitando a longe.

Os Lusíadas, IV, 100 e 101


 

EFEMÉRIDES

Tomada de Ceuta – 22 de Agosto de 1415

Tratado de rendição após a derrota em Tânger – 16 de Outubro de 1437

Derrota de Alcácer-Quibir – 4 de Agosto de 1578

 

Lembramos desde já o que é óbvio para os historiadores: a posição de Camões sobre os assuntos que se seguem são as do seu tempo; a linguagem é a do seu tempo; e, mesmo num tema tão sensível como o do Islão, importa dizer que lhe interessa, não especialmente o plano doutrinal, mas a sua implementação em termos de poder político-militar, isto é, ocupação de territórios e de rotas comerciais. Afinal, também neste assunto Camões nos ensina a trabalhar a anterioridade, quando exorta: «Não meças o passado c’ o presente!»2.

Camões: Poeta, soldado, sem dúvida. Mais do que isso: um homem conhecedor da História de Portugal e do mundo. Ou melhor: conhecedor da História de Portugal no mundo, um conhecimento global das condições a que agora chamamos geopolítica e geoestratégia3; muito mais do que os seus contemporâneos Jerónimo Corte-Real, D. Jerónimo Osório ou João de Barros, por exemplo, mas alinhado com a diplomacia portuguesa na corte de Roma e nas da Europa4.

Para o tema que nos foi proposto situamo-nos, com toda a legitimidade, em Os Lusíadas. Na verdade, está dito e comprovado que constituem uma «narrativa histórica comentada» e apresentam «uma concepção histórica coerente de Portugal, dotada de motivações internas e razões de sequência»5. E, por isso mesmo, não isenta de críticas à actuação de reis e de algumas personagens, no sentido de os chamar às exigências decorrentes das suas responsabilidades6.

Camões elucida-nos sobre a posição que Portugal tinha e deveria manter no mundo. Assim sendo, não considera Portugal confinado à Europa nem sequer à Cristandade, mas, sempre em prospeção, posiciona – insistimos – Portugal no mundo: aquém e além-mar em África, nas rotas do Mar-Oceano e até à Pérsia e à Índia. Como ficou expresso, de forma não despicienda, na titulatura régia quinhentista7.

A realidade que é o reino de Portugal construiu-se ao longo do tempo num determinado espaço geográfico e com os seus protagonistas: reis e súbditos (leigos e eclesiásticos) interagindo em pactos e oposições. Na primeira metade do século XVI8 Camões pode traçar as grandes linhas de força desse caminho comprovadamente eficaz, que se vai fazendo de escolhas entre alternativas; consegue traçar constantes do comportamento dos vários poderes em interação e percecionar o que desejam para Portugal. E aí entra a narrativa da História de Portugal, que é sequência vivida ao longo de quatro séculos até que Vasco da Gama chega a Melinde e a narra ao rei (assim é designado por Camões) dessa cidade portuária, às portas da índia9.

Fixemo-nos no início dessa lição de História – sempre de «sanguinosa guerra» – que o Gama inicia após a explanação da «larga terra»10, isto é, do enquadramento geográfico: o reino lusitano forma-se empurrando o «torpe Mauritano» para fora da Europa e continua, já em África, a não lhe dar sossego11. Veja-se como Camões vincula o nascimento e permanência de Portugal às vitórias sobre o Islão12 e as convoca para a actualidade, já no reinado de D. Sebastião: na verdade, continuam as acções bélicas contra os muçulmanos, embora, numa primeira fase, se cruzem com assentamentos comerciais e estabelecimento de alianças com potentados locais. Por serem posteriores à sua impressão, não ficarão registadas n´Os Lusíadas a Primeira Jornada de D. Sebastião a África (1574) nem a de Alcácer Quibir (1578). Voltaremos ao tema mais adiante.

A empresa marroquina não pode ser interpretada como o delírio de um rei inflamado por ultrapassados ideais cruzadísticos13. O facto é que o turco e seus aliados berberescos avançavam pelo sudeste da Europa e ilhas do mediterrâneo. Diversos portos marroquinos e o próprio litoral algarvio eram assolados por corsários ou por piratas, que, em 1540, avançaram pelo atlântico até aos Açores e ao Brasil14. Por isso segurança do reino, assim como a afirmação política frente a Castela e a outros reinos da Europa, exigiam uma acção contra o Turco, autónoma e concertada entre os diversos segmentos do reino.

Trata-se de uma intenção longamente ponderada que começa a ganhar forma depois de 1570, com presença do monarca no Algarve e périplo por Ceuta e Tânger. Fundamentadamente, Camões apelida D. Sebastião como «novo temor da Maura lança»15. Sem dúvida que conhece e incentiva o seu redobrado empenho militar no Norte de África.

Retomemos o quase axioma que o Poeta enuncia como ponto de partida e como objectivo do reino de Portugal: é empurrar o «torpe Mauritano» para fora da Europa e mais além, considerando a época de observação plasmada no Poema. Em 1572, ano da primeira edição de Os Lusíadas, a batalha naval de Lepanto dá a vitória à armada cristã sobre os turcos otomanos e sustem a progressão do Islão sobre a Europa. Mas esse êxito da cristandade, momentaneamente unida, já não integra a análise política do Poema. Como já dissemos, o que Camões vive e assinala é Jerusalém na posse do Império Otomano e o inexorável avanço do Islão, eficaz perante a Europa dividida, dilacerada por guerras de religião e ambições políticas: «Ó míseros Cristãos, pola ventura / Sois os dentes, de Cadmo desparzidos, / Que uns aos outros se dão à morte dura / Sendo todos de um ventre produzidos?»16. Resta Portugal em consonância com a vontade de D. Sebastião, a qual, insistimos, o Poeta defende e proclama: «certíssima esperança / De aumento da pequena Cristandade»17. Insistimos na forma como Camões traz para o tempo presente, diante de D. Sebastião, o tema fundacional de Portugal, ou seja, a luta contra o Islão.

Vasco da Gama continua a narrar a história de Portugal ao rei de Melinde. Expulsos os muçulmanos com a conquista definitiva do reino do Algarve (1249), nem na «ardente África» podem estar tranquilos18. Deixando de parte a mítica pertença ao reino visigodo, o facto é que o norte de África havia configurado a província romana da Tingitana e, por isso, tinha sido cristão (nosso) até à conquista muçulmana nos começos do século VIII. Tal facto conferia às campanhas portuguesas e de qualquer exército cristão no Benamarim o estatuto de guerra justa, pois se tratava de recuperar o que tinha sido nosso: o ciceroniano e mais consensual parâmetro do jus ad bellum19.

D. João I é evocado como o «primeiro rei que se desterra da pátria» isto é, que passa a fronteira. Com a tomada Ceuta, reverte a «má e desleal manha» do conde Julião e obriga os senhores dessa região a reconhecer «pelas armas, quanto excede / A lei de Cristo à lei de Mafamede».20

Ceuta é a primeira conquista (reconquista) cristã fora da Europa e a fronteira de Portugal atravessa o Estreito21. D. João I acrescenta o senhorio de Ceuta ao seu título real22.

Sabemos como foi difícil foi a manutenção desta praça, isolada no meio de territórios muçulmanos. A solução seria a conquista de outras áreas do Benamarim. Esse projecto – amadurecido, pelo menos, desde as reflexões do infante D. Pedro plasmadas na carta de Bruges (1427), cujo destinatário é D. Duarte, herdeiro do trono – parece apontar para a continuação da guerra no norte de África para permitir a mudança do poder político23. Aliás, foi esta uma das últimas vontades de D. João I.

A campanha militar no Benamarim, que viria a dirigir-se para a conquista de Tânger, foi longa e publicamente debatida, quer no reino e na família real, quer na cúria papal e no concílio de Basileia24. D. Duarte irá sopesar os vários pareceres e ultrapassar objecções. Sob sua responsabilidade e cuidada preparação25, decidiu avançar para a conquista.

Camões nem sequer dá nome a esta praça nem menciona a derrota infligida. Recuperando a narrativa da tristeza e do remorso, lançadas por Zurara e por Rui de Pina, lamenta que a Fortuna tenha abandonado D. Duarte. O Poeta omite o nome do infante D. Henrique, responsável pela má condução da campanha militar e responsável pela leviandade das negociações e do acordo de rendição assinado com Salah-ibn-Salah. Do rei, escreve apenas: «Viu ser cativo o santo irmão Fernando / Que a tão altas empresas aspirava / Que, por salvar o povo miserando / Cercado, ao Sarraceno se entregava.»26

As conquistas africanas ficam suspensas durante uma vintena de anos. Camões, pela boca de Vasco da Gama, assinalará a retoma com D. Afonso V, o qual transformará em «baxa e humílima miséria» a «soberba do Bárbaro fronteiro»27.

Note-se que o Poeta faz lembrar que os muçulmanos estão do outro lado do Estreito, em frente do reino do Algarve. Tendo em conta o que sabemos sobre a presença portuguesa no além-mar, logo no reinado de D. João I – essa «exportação do estado» de que nos falava Jorge Borges de Macedo –, assim como a nova titulação do rei de Portugal como «senhor de Ceuta», acima referida, não será muito ousado dar um salto semântico… e dizermos que Camões coloca aí, no norte de África, a nova fronteira de Portugal e, também, da cristandade.

 

 

 

Gravura de Ceuta no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572.

 

Depois, numa mesma sequência são narradas as conquistas de D. Afonso V (o Africano, como foi apelidado já no séc. XIX), em 1471. Após várias tentativas, as fortes muralhas de Alcácer-Ceguer, Arzila e Tânger foram «enfim, por força entradas, / Os muros abaxaram de diamante / Às Portuguesas forças, costumadas / A derribarem quanto acham diante.»28

Já no reinado de D. João II Camões estabelece a conexão entre a viagem empreendida por Pero da Covilhã e Afonso de Paiva ao mítico reino cristão do Preste João e a de Vasco da Gama: ambas se dirigem ao oriente. Mas o Poeta assinala a efectiva viragem na estratégia geopolítica do reino. De acordo com a narrativa do Gama, D. João II «foi buscar da roxa Aurora / Os términos, que eu vou buscando agora»29. O narrador omite perante o rei de Melinde a aliança que os enviados de D. João II ao Preste João buscavam contra os muçulmanos, tanto mais que o melindano conheceria as antigas guerras entre portugueses e «gente de sua Lei» 30.

No reinado de D. Manuel fecha-se um dos ciclos temporais incluídos em Os Lusíadas: o da longa narrativa da História de Portugal, a qual vai de Luso até D. Manuel e à sua decisão da viagem á Índia. Segue-se o tempo do périplo do Gama entre Lisboa e Melinde, que agora não nos interessa.

Voltemos ao Norte de África como nos foi pedido.

O Norte de África camoniano é o prolongamento de Portugal, ou melhor, do Portugal que, com D. João I, assume a continuidade da reconquista. Mas logo no reinado de D. João II Camões regista, ainda que discretamente, a inflexão: Portugal busca na África oriental aliados contra o avanço do Grão-Turco.

A charneira entre o passado de Portugal e o presente – isto é, o que era o presente quando o Gama fala ao rei de Melinde – está num sonho que o Poeta conta ter sido vivenciado por D. Manuel31. No plano simbólico, este sonho instiga-o à dilatação do reino, não mais pelo norte de África, mas até à Índia, onde, na verdade poderes territoriais e rotas comerciais estavam na posse do Islão.

Nos finais do século XV fazia sentido – nos planos da geoestratégia, da economia e da evangelização – o direcionamento do esforço português para o oriente, que inclua também, por volta de 1505, a organização de uma cruzada que libertasse Jerusalém do domínio islâmico.

Não nos esqueçamos, porém, que os povos continuavam a ser chamados a sustentar os «lugares de África», como testemunha Damião de Góis. Na verdade, D. Manuel prossegue a consolidação do poder militar e económico de Portugal em Marrocos32. A empresa marroquina de D. Manuel foi omitida por Camões.

Todavia, no pensamento camoniano sobre Portugal, não são contraditórios esses dois ramos da expansão do reino. Aliás, Camões não deixa de referir a aprovação que D. Manuel solicitou e conseguiu no conselho régio, esclarecendo que é esse órgão institucional da monarquia que dá as ordens para a concretização do projecto: «Chama o rei os senhores a conselho / E propõe-lhe as figuras da visão; / [….] Determinam o náutico aparelho, / Para que com sublime coração / Vá a gente mandar cortando mares, / A buscar novos climas, novos ares.»33

Chegámos à inevitável análise do chamado «episódio do Velho do Restelo»34.

A 8 de Julho de 1497, parte do Restelo a frota, capitaneada por Vasco da Gama, que irá descobrir o caminho marítimo para a Índia.

Leiam-se as palavras do Velho: «Mas um velho, d’ aspeito venerando, / Que ficava nas praias, entre a gente, / Postos em nós os olhos, meneando / Três vezes a cabeça, descontente [….] Tais palavras tirou do experto peito: «Ó glória de mandar, ó vã cobiça / Desta vaidade a quem chamamos Fama! / [….] Fonte de desemparos e adultérios, / Sagaz consumidora conhecida / De fazendas, de reinos e de impérios! / [….] «A que novos desastres determinas / De levar estes Reinos e esta gente? / Que perigos, que mortes lhe destinas, / Debaixo dalgum nome preminente? / Que promessas de reinos e de minas / D’ ouro, que lhe farás tão facilmente? / Que famas lhe prometerás? Que histórias? / Que triunfos? Que palmas? Que vitórias? [….] Já que prezas em tanta quantidade / O desprezo da vida, que devia /De ser sempre estimada, [….] Não tens junto contigo o Ismaelita, / Com quem sempre terás guerras sobejas? / Não segue ele do Arábio a lei maldita, / Se tu pola de Cristo só pelejas? / Não tem cidades mil, terra infinita, / Se terras e riqueza mais desejas? / Não é ele por armas esforçado, / Se queres por vitórias ser louvado?. «Deixas criar às portas o inimigo, / Por ires buscar outro de tão longe, / Por quem se despovoe o Reino antigo, / Se enfraqueça e se vá deitando a longe; / Buscas o incerto e incógnito perigo / Por que a Fama te exalte e te lisonje / Chamando-te senhor, com larga cópia, / Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.

O Poeta descreve o enquadramento humano da despedida acentuando a dor e a saudade dos que partiam e dos que ficavam. O modelo é, sem dúvida, a narrativa de Zurara após a tomada de Ceuta35. Convém salientar esse recuo até Ceuta através do compromisso e do discurso que perdurará como que em trans-memória36. Mas bem podemos afirmar que Zurara passa a Camões uma outra lição, a qual é a análise das situações tendo sempre presente as alternativas que se colocavam perante os protagonistas. Por isso, a fala do Velho insere-se no contraditório que valorizará a opção efetivamente seguida37.

Tanto Camões valoriza o contraditório que o Poeta põe na boca do capitão da armada descobridora o desejo de estar no norte de África. Imerso em tão grande tempestade ao largo do Mar-Oceano que «que o mundo pareceu ser destruído», Vasco da Gama exclama: «Oh, ditosos aquele que puderam / Entre as agudas lanças Africanas / Morrer, enquanto fortes sustiveram / A santa Fé nas terras Mauritanas»38. E ele mesmo, soldado na Índia, oferece reiteradamente os seus serviços a D. Sebastião como combatente na Mauritânia, como veremos.

O Norte de África era o espaço de guerra de conquista / reconquista de Portugal. Guerra justa de recuperação de território, como ficou dito. O Velho lança sobre o novo projecto bélico na Índia os consabidos anátemas da guerra motivada pela soberba e pela cobiça39. Será que se deveria ir buscar o (mesmo) inimigo longe, deixando-o em paz do Estreito? Se tal pergunta parece (insistimos nesta palavra) ser legítima no tempo de D. Manuel, não o era de forma alguma no reinado de D. Manuel, como vimos, e muito menos logo nos começos do de D. Sebastião.

Mas a fala do Velho serve para acentuar a alternativa: o perto, o longe e o quão longe como forma de reflexão sobre as opções de Portugal no mundo40. O projecto da Índia há-de significar o posicionamento de Portugal dentro da cristandade com uma nova capacidade geopolítica frente ao Grão-Turco: já não o perto do norte de África, mas mais longe, onde o mesmo inimigo de sempre fechava o cerco.

Entre o sonho cumprido em 1498 e a realidade contemporânea da escrita e impressão de Os Lusíadas, desenrola-se um outro tempo e um outro plano de narrativa subjacente: o tempo do Poeta e da sua obra.

Os Lusíadas foram dedicados a D. Sebastião. Mas as estrofes de dedicatória e de interpelação do monarca não foram necessariamente escritas aquando do seu nascimento (1554), nem quando ele sobe ao trono, em 1557, ou mesmo quando a obra é enviada para impressão, no verão de 1571. Dedicatória, louvores ao monarca e admoestações para que ele cumprisse o seu ofício de rei podem situar-se numa larga cronologia de reflexão e de inclusão na sequência do Poema: um processo de longa duração que inclui o tempo da escrita e (eventuais) aditamentos à boca da impressão, que é o plano temporal do intenso retorno a Marrocos, bem articulado com as condicionantes externas europeias.

Assinalemos somente, no plano externo, a reforma luterana41. Não se trata de uma crise religiosa tal como agora a entenderíamos: significa, também, o fim da unidade Republica Christiana e do reconhecimento do Papa como dominus mundi, com evidentes consequências para o enquadramento jurídico dos territórios e exclusividade de rotas detidas por Portugal.

Fixemo-nos somente em duas áreas: o Brasil e a Índia. O Brasil apenas entra nas reflexões camonianas a propósito dos feitos de Martim Afonso de Sousa, que chega à Índia depois de ter combatido os piratas franceses ao largo do Brasil42. A Índia, sim, pois nela se agudizam todos os problemas, comuns no reino, de governo e de obediência à distância, as cobiças, ambições e traições que aparecem largamente narradas e julgadas no «caso» do vice-rei Pêro de Mascarenhas43.

Mau grado o processo da ocupação do litoral e do interland brasileiro e a consolidação do poder português em algumas áreas da Índia, já durante o reinado de D. Sebastião, a presença activa da França no Brasil e a as dificuldades na carreira da Índia mantinham a percepção da fragilidade das armas portuguesas, que já vinha de longe: entre 1526 e 1530 os embaixadores de Carlos V em Portugal davam o Brasil como perdido e a Índia a ponto de se perder44.

Camões omite o recuo da presença de Portugal no norte de África logo após o reinado de D. Afonso V, nomeadamente o processo do abandono das praças de África iniciado por D. João III e que se prolonga até aos começos do treinado de D. Sebastião45: Azamor e Safim em 1541, Alcácer-Ceguer e Arzila em 1549 e 1550. Decisão polémica, cuja complexidade tem de ser analisada na interação com os potentados locais e com toda uma alteração na política europeia, em particular com a França de Francisco I e o império de Carlos V.

Portugal irá reencaminhar recursos humanos e militares para outras paragens sempre ameaçadas: Brasil e, sobretudo, Índia. Note-se que nas cortes de 1562-6346, os que se não apoiavam o abandono das praças marroquinas afirmavam ser «mais justa e mais conveniente a conquista de África que a da Índia». Note-se que a alternativa em debate era em tudo semelhante à que sucedeu no reinado de D. Manuel, aquando do projecto da viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia, debate plasmado no episódio do Velho. Mais: a guerra no norte de África era, diziam, «guerra justa», como guerra de recuperação do que havia sido nosso, como se disse atrás.

Chegado a Lisboa em 1570, Camões confrontou-se com as notícias do recrudescimento da expansão do Grão-Turco para ocidente. Por outro lado, o perigo não estava somente do outro lado do Estreito, pois, entre 1568 e 1570, os mouriscos de Granada revoltavam-se com o apoio dos muçulmanos de Marrocos e do império otomano em geral. Corriam também notícias de que o sultão de Marrocos se preparava para reconquistar praças cristãs situadas nos seus domínios. O perigo muçulmano era de tal modo grave que em 1570 o Papa Pio V relança a organização uma liga de potências católicas – a Santa Liga – que sistemática e continuadamente o combatessem.

Todavia, tal como D. Duarte antes de Tânger e D. Afonso V após a queda de Constantinopla, Portugal tem estratégia própria para combater o Islão, a qual passa pelo incremento das conquistas no norte de África.

O tempo da entrega do Poema para impressão (23 de Setembro de 1571) e sua finalização (12 de Março de 1572) é o da preparação de nova empresa em Marrocos, como sejam o périplo de D. Sebastião pelo Algarve (1573), a sua permanência por dois meses em Ceuta e Tânger (1574) ou a recusa de participar na reanimação da Santa Liga contra o Turco. Tudo isto não fica, portanto, registado n’Os Lusíadas.

Não existe nenhum fundamento para afirmar que Camões acompanhou D. Sebastião a Alcácer-Quibir, à semelhança de outros poetas; como não existe nenhum fundamento em contrário, para além da imaginação de Oliveira Martins quando afirma que Camões não participou na jornada devido à oposição dos que tinham discordado da jornada e culpavam Camões por ter incitado D. Sebastião a realizá-la47.

Todavia, temos a certeza do seu comprometimento com o projecto de domínio do norte de África48. Para além de tudo o que ficou dito antes, veja-se como Camões pede a D. Sebastião que aceite o seu «braço às armas feito» para que ele venha a ser temido nos campos e nas fortalezas de Marrocos49.

 

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1 As cit. são feitas pela edição com Leitura, Prefácio e Notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão e Apresentação de Aníbal Pinto de Castro, Lisboa, ICALP, 1989.

2 Elegia I (“O Poeta Simónides”), in Luís de Camões. Obras Completas, Vol. II, 3ª ed., Lisboa, Liv. Sá da Costa, 1968, pp. 199-207, p. 200.

3 Maria Vitalina Leal de Matos assinalou que Diogo do Couto retoma «idêntica visão do presente nacional, identicamente enquadrado na situação internacional.» Vd. “Camões lido por Diogo do Couto no «Soldado Prático»”, in IV Reunião Internacional de Camonistas. Actas, Ponta Delgada, 1984, pp. 359-372, p. 365. As controvérsias contemporâneas acentuam a certeza dessa consciência. Vd. Giuseppe Marcocci, A consciência de um Império. Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII), Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012.

4 Jorge Borges de Macedo, História Diplomática Portuguesa. Constantes e Linhas de Força, 2.ª ed., Lisboa, Tribuna da História/Instituto de Defesa Nacional, s. d. (2006), pp. 129s; Pedro Soares Martinez, História Diplomática de Portugal, Lisboa, Verbo, 1986, pp. 89s.

5 Jorge Borges de Macedo, “Os Lusíadas, narrativa histórica comentada” e “Advertência Preliminar”, in Os Lusíadas e a História, Lisboa, Editorial Verbo, 1979, pp. 77s e 17.

6 Na lição proferida a 6 de Junho de 1980, na Academia Portuguesa da História, Borges de Macedo fez como que o inventário dessas interrogações. Vd. a lição “Pode falar-se em pensamento político camoniano?”, com resumo publ. na respetiva Ata, Boletim da Academia Portuguesa da História, vol. 44 (1980), Lisboa, 1981, pp. 144-145.

7 António Vasconcelos Saldanha, “Conceitos de espaço e poder e seus reflexos na titulação régia portuguesa da época da expansão”, in La Découverte, le Portugal et l’Éurope, Actes du Colloque, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, pp. 105-129, pp. 114s.

8 Seguimos a segura cronologia da obra estabelecida no Prefácio de Costa Pimpão à edição que utilizamos, acima referida: o «principal» da obra estaria escrito em 1559. A data é deduzida pelos acontecimentos presentes ou ausentes na narrativa, nomeadamente a batalha de Lepanto (7 de outubro de 1571).

9Os Lusíadas, II, 63, 70s; III, 20s. Nas posteriores citações colocaremos somente o canto e a estrofe.

10III, 5.

11III, 20.

12Para já, Camões não menciona as lutas contra Leão e Castela: são as vitórias contra o Islão que marcam a legitimidade do novo reino, como, aliás, vem expresso na Bula Manifestis Probatum (23 de Maio de 1179).

13Constatamos como António Sérgio, embora conhecendo o contexto político e militar da época, se fixa no registo panfletário. Vd. “Camões Panfletário (Camões e Dom Sebastião)”, in Ensaios, Vol. IV, 2.ª edição, Lisboa, Guimarães Editores, 1959, pp. 125-135.

14Maria Augusta Lima Cruz, D. Sebastião, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006, pp. 45-46.

15I, 6.

16VII, 9.

17I, 6.

18III, 20.

19Tema recorrente na doutrina da guerra justa, a ponto de se tornarem lugares comuns e, por certo, do conhecimento do Poeta. Já nos meados do séc. XV os itens são recuperados de Afonso X, o Sábio (que os extraíra de escritos anteriores) para o Regimento da Guerra inserido nas Ordenações Afonsinas (Liv. I, Tít. 51). Cfr. Jorge Borges de Macedo, “História e doutrina do poder n’ Os Lusíadas”, in Os Lusíadas e a História…, pp. 120-121.

20IV, 48 e 49.

21Margarida Garcez Ventura, “Ceuta, 1415. Portugal em fronteira descontínua”, in Raízes Medievais do Brasil Moderno, Do Reino de Portugal ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, Lisboa, Academia Portuguesa História, 2016, pp. 315-333.

22Provavelmente pela primeira vez em doc. de 8 de Fev. de 1416. Vd. João Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses. 1147-1460, Lisboa, IAC, 1944, doc. 668.

23Segundo expõe D. Duarte (Leal Conselheiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, Cap. 17), a vitória das armas tem como consequência a mudança do poder político e, deste modo, a livre presença do cristianismo no território.

24Luís Miguel Duarte, D. Duarte. Lisboa, Círculo de Leitores, 2005, pp. 230s; Margarida Garcez Ventura, “«Nos o não consentiríamos com todo nosso poder». A polémica entre Portugal e Castela sobre a jurisdição de bispados de fronteira (1436-1437). Uma questão de território»”, in XVI Colóquio “Raízes medievais do Brasil moderno” no BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL”, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 2023, pp. 559-575.

25Veja-se, no plano da sistematização teórica, o «Conselho espeçial» que entregou ao infante D. Henrique a 10 de setembro de 1437, nas vésperas da expedição. D. Duarte, Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa), Lisboa: Editorial Estampa, 1982, [21.], p. 128.

26IV, 51 e 52. As «altas empresas» seriam o comando da armada destinada a recuperar a península da Moreia ou a hipótese do barrete cardinalício.

27IV, 54.

28IV, 55 e 56.

29IV, 60.

30II, 102.

31IV, 68-74.

32José Manuel Garcia, D. Manuel, o Venturoso, in História dos Reis de Portugal, Vol. I, Lisboa, QuidNovi / Academia Portuguesa da História, 2010, pp. 633-680, pp. 674-675.

33IV, 76.

34IV, 94-104. O sublinhado é nosso.

35Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1915, Cap. 101; Crónica do Conde Dom Pedro de Menezes, Porto, 1988, Caps. 10 e 11.

36Uso o conceito de Vítor Serrão: Trans-Memória das Imagens, Lisboa, Ed. Cosmos, 2008.

37Vd. Margarida Garcez Ventura, “O episódio do Velho do Restelo, projectos de Portugal em vozes cruzadas. Uma homenagem a Borges de Macedo”, in Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos (2017.2, pp. 98-109), disponível em http://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair; “O elogio do contraditório. Reflexões sobre a cronística de Zurara”, in Maria Eurydice de Barros Ribeiro e Susani Silveira Lemos França (Org.), A escrita da história de um lado a outro do Atlântico, São Paulo, Cultura Acadêmica Editora, 2018, pp. 143-166.

38VI, 70-84.

39Como ficou dito acima, o Poeta teria conhecimento da doutrina da guerra justa. No que concerne ao tema em apreço, lê-se no Regimento da Guerra «A segunda [maneira de guerra] chamam injusta, que quer dizer tanto como guerra, que se move com soberva, e cobiça, sem direito».

40Note-se o paralelismo com a crítica que «alguns» faziam ao projecto da conquista do Benamarim, por volta de 1436: não fazia sentido combater os infiéis no norte de África e permitir que vivam livre e honradamente no reino. Vd. D. Duarte, Leal Conselheiro, Cap. 17. Não sabemos se Camões conhecia o manuscrito desta obra, cujo único códice original se encontra na Biblioteca Nacional de Paris, pois ignoramos o quando e como o códice aí chegou. Vd. Dom Duarte, Leal Conselheiro, Edição crítica e anotada por Joseph M. PIEL, Lisboa, Livraria Bertrand, 1942, pp. XX-XXI.

41Martim de Albuquerque, O Poder Político no Renascimento Português, 2.ª ed. revista, Lisboa, Verbo, 2012, pp. 180-181.

42X, 63.

43X, 56-58. Jorge Borges de Macedo, “Um caso de luta pelo poder na Índia e a sua interpretação n´Os Lusíadas”, in Os Lusíadas… pp. 143-256.

44Margarida Garcez Ventura, João da Silveira – Diplomata Português do século XVI, Lisboa, Gabinete Português de Estudos Humanísticos, 1984, pp. 77, 105 e 109.

45Maria Leonor Garcia da Cruz, As controvérsias ao tempo de D. João III sobre a política portuguesa no norte de África, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997. Otília Rodrigues Fontoura, Portugal em Marrocos na época de D. João III: abandono ou permanência, Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico, 1998.

46Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. III, Lisboa, Verbo, 1978, p. 70.

47Oliveira Martins, História de Portugal, Vol. II, Lisboa, Europa América, s. d., p. 45.

48Mesmo que Camões, pouco antes de morrer, tenha acrescentado duas estofes no canto X, nas quais lamentava as «mortes e perdições» de Alcácer-Quibir. Vd. João Teixeira Soares, “As estancias ditas omittidas da Epopéa de Camões”, Círculo Camoniano, 1889, pp. 72-78.

49X, 155 e 156.

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2024-12-15
729-740
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Prof. Doutora

Margarida Garcez Ventura

Professora aposentada da Faculdade de Letras (Dep. de História) da Universidade de Lisboa, onde realizou Provas de Agregação (2003), de Doutoramento (1993) e de Licenciatura (1974).

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