Fernando, um deles, ramo da alta pranta,
Onde o violento fogo, com ruido,
Em pedaços os muros no ar levanta,
Será ali arrebatado e ao Céu subido.
Álvaro, quando o Inverno o mundo espanta
E tem o caminho húmido impedido,
Abrindo-o, vence as ondas e os perigos,
Os ventos e despois os inimigos.
Eis vem despois o pai, que as ondas corta
Co restante da gente Lusitana,
E com força e saber, que mais importa,
Batalha dá felice e soberana.
Uns, paredes subindo, escusam porta;
Outros a abrem na fera esquadra insana.
Feitos farão tão dinos de memória
Que não caibam em verso ou larga história.
Camões, Os Lusíadas, X
Feito maior das armas portuguesas no Oriente do século XVI, o segundo cerco de Diu revela, para a História, a medida do sacrifício colectivo e da fidelidade de portugueses à Coroa; e, para a História Militar, um dos mais interessantes episódios de mestria militar que dão forma a uma arte da guerra tão própria dos protagonistas envolvidos. Antes, porém, de olhar para o episódio militar, cumpre registar que o segundo cerco de Diu inscreve-se politicamente num movimento que começara doze anos antes com a celebração do Tratado de Baçaim de 1534, que o sultão de Guzerate, Bahadur Xá, querendo sacudir a pressão do imperador Mogol, assina com os portugueses dando-lhes posse das ilhas fronteiras a Bombaim, incluindo Diu. Acontece que quatro anos após a assinatura do tratado, e traduzindo a complexidade do xadrez político e diplomático do equilíbrio de poderes na região, rompe o acordo e lança uma operação militar de grande envergadura cercando Diu de Junho a Outubro de 1538. Governava a praça António da Silveira, experiente capitão que já o fora de Baçaim e de Ormuz e que, com uma conduta exemplar raiando o heroísmo próprio das lendas, comanda toda uma praça repleta de soldados, de civis mas também de mulheres e crianças durante um duríssimo cerco cuja fama atravessou oceanos e ecoou no reino.
Lopo de Sousa Coutinho relata na primeira pessoa o ordálio por que passaram os habitantes da praça. Publica em Coimbra, em 1556, o seu Primeiro Cerco de Diu, o que só veio a aumentar a aura épica do evento. Aliás, os dois cercos de Diu vieram a constar das obras de Gaspar Correia, que estava na Índia e que os relatou na sua obra Lendas da Índia que só foi à estampa em 1858, em Lisboa; na História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses de Fernão Lopes de Castanheda, publicada por volumes, em Coimbra entre 1551 e 1558; e na obra de Leonardo Nunes, Sucesso do Segundo Cerco de Diu, publicado em Coimbra em 1927, obra igualmente relevante dado que o seu autor estava na fortaleza durante o cerco tendo activamente participado nas operações da sua defesa.
Ora Camões, sabemo-lo, embarcou para a Índia em 1553, na armada de Fernão Álvares Cabral, o que significa que não poderia ter tido contacto com qualquer destas obras mencionadas, excepção feita aos primeiros quatro volumes de Castanheda (publicados entre 1551 e 1553) embora estes não contenham informação sobre o segundo cerco de Diu. A forma como, nas suas estrofes, descreve o fio dos acontecimentos, os pormenores da operação de descerco que o governador montou revela-nos conhecimento detalhado dos factos, conhecimento esse que, como vemos, era voz corrente no reino e, sobretudo, na Índia. Os 14 anos que o poeta-soldado passa no Oriente terão sido a sua fonte primária de inspiração.
Em Março de 1546, governava a Índia D. João de Castro. Diante da fortaleza de Diu surge novamente Coge Çofar à frente de cerca de 7 000 guzerates e 1 000 turcos, dotados ainda de seis dezenas de peças de artilharia de cerco. Inicia-se o que ficou conhecido como segundo cerco de Diu, ainda mais longo e violento que o primeiro, o maior desafio às armas portuguesas na Índia neste tipo de operação. Renegado italiano, de provável ascendência albanesa, Coge Çofar encontra-se ao serviço do turco desde o decénio de 1510. Morrerá de um pelouro de bombarda logo no primeiro mês do cerco, sendo substituído pelo seu filho, Rumecão. Homem prolixo e culto, Coge Çofar relacionou-se pessoalmente com Garcia de Orta que o refere, a propósito das Curcas (cataputia minor) e sua utilidade, nos seus Colóquios das Drogas e dos Simples 1.
Comandava a fortaleza D. João de Mascarenhas que imediatamente inicia os trabalhos de preparação da defesa: «com hos capitães dos baluartes e torres repartiu a gente que avya na fortaleza goardando todas has forças ho mjlhor que pode, hos quaes fezerõ muitas vallas de terra e pipas cheas della e as poserõ por riba das suas ameas pera dali jugar ha sua espingardaria da fortoleza e per ante as ameas ha artelheria, por que ha dos mouros que ajnda era mjuda não podesse passar aquelles entulhos e a gente ficasse segura pelejando ha sua vontade»2.
A utilização de barris cheios de terra como defesa contra o tiro era já amplamente conhecida. Recorde-se como os portugueses os utilizaram, como sitiantes, em Benastarim, 1512. Repete-se o modelo de cerco utilizado oito anos antes: pressão de artilharia sobre a fortaleza, tentativa de escalar as muralhas e realização de minas subterrâneas para tentar derruir os panos de muralha. Defendem-se os sitiados também da mesma forma, recorrendo à artilharia, espingardas, panelas de pólvora, pedras. Durante dois meses e meio sustiveram a fortaleza com enorme dificuldade e escassez de munições e víveres.
Até que a 18 de Maio chegou D. Fernando de Castro, filho do governador, com «quatro centos e cincoenta soldados […] e outra gente […] toda muyto bem armada que não avia algum que não tivesse espingarda e não atirasse muj bem cõ ella e loguo de novo se tornou hacrecentar aos capitães dos baluartes pera vigia da fortoleza.»3 Desembarcado, o efectivo e o seu comandante, de 19 anos, permaneceram na fortaleza, reforçando o existente.4 Somam-se as dificuldades e o que Leonardo Nunes nos descreve, enquanto protagonista da acção, é um cenário de extrema carência que, nem por isso, deixou de estimular a creatividade e o desembaraço militares: «Avya tres meses que não comyamos carne, senão de gatos e arrôs e grãos, que não punhão nihũa sustancia, nem avia vinho; […] ha polvora a este tempo falecia e não avja majs que ha que fazião cada dia na fortalesa q seria hũ quoartel e ho basalisco ha gastava toda, nē panelas senão as que cada hũ dava de sua casa, com que lhe fazião de comer, por amor do qual jnventou ho capitão duas telhas juntas hũa com outra e breadas mujto bem, com panos polas ylhargas e cabeças, com seus murões e os vãos dellas cheos de polvora e com isto se pellejava de noyte e de dia, porque has pedradas e paneladas nunca cessavão de voar.»5 Se o capitão inventou estas improvisadas granadas de mão não o sabemos. Mas que há engenho seguro não o podemos negar.
Em Junho chegam novos reforços comandados pelo outro filho do governador, D. Álvaro de Castro. A 10 de Agosto, e depois de uma eficaz acção de sabotagem, conseguem os turcos minar o baluarte S. João cuja explosão, segundo Nunes, «fez ho baluarte refinar pera o céu» morrendo D. Fernando de Castro e ficando feridos 98 homens. É então que D. João Mascarenhas, talvez pressionado pelos seus capitães, decide uma surtida: «Hos soldados que de refresco vieram, receosos do arrunhar dos mouros e do picar que hajnda fazião no lanço do muro e vendo tãobem morrer entre sy algũs portugueses, que os mouros matavão e ouvjndo falar nas mynas que he espantoso genero de guerra, como homēs desacustumados dela, pesava-lhes mujto de se verem cerqados e desejavão de jr pelejar fóra da fortaleza[…]».6
A surtida saldou-se num desastre, com a morte de mais de 100 portugueses. O governador envia novo reforço comandado por Vasco da Cunha, enquanto prepara uma armada com todos os recursos disponíveis na Índia. Controlado militarmente o mar de Diu, o problema era a cada vez mais difícil resistência do lado de terra. Durante todo este período, D. João de Castro revelou total confiança na capacidade militar de D. João de Mascarenhas, nunca questionando as suas qualidades e nunca pondo em causa o seu comando. Aliás, quando mais tarde escrever o seu relatório ao rei, dele dirá «que he tal fidalgo, e cavaleiro, que primeiro o farão em postas, que lhe tomem hũa só amea.»7
D. João de Castro, talvez entendendo que a sua presença em Diu deveria resultar numa acção rápida e decisiva, por não ser possível continuar a sofrer o cerco que bloqueava muitos dos movimentos dos portugueses na região, empenha-se nos preparativos de formação de um corpo expedicionário de auxílio à praça. Couto conta-nos este processo fornecendo informações preciosas sobre o que se passou: «[o governador] mandou fazer gente da terra pelas Ilhas vizinhas á de Goa, donde se ajuntáram mil e duzentos piães, de que deo a capitania a Vasco Fernandes, Tanadar mór da Ilha de Goa, dando a cada cento seus Naiques para os regerem, e mandou fazer alardo de todos os Portugueses que havia em Goa, que o podiam acompanhar, e achou perto de dous mil, que mandou exercitar aos Domingos, e dias Santos no campo de S. Lazaro, onde mandou fazer a fortaleza de Dio de madeira, e a parede, e estancias dos inimigos, assim, e da maneira que estavam, (porque lhas tinha D. João de Mascarenhas mandado mui bem pintadas,) e com muitas escadas que repartia pelos Capitães, e elle em pessoa armado, como se houvesse de entrar em batalha de verdade, com as bandeiras repartidas, e gente posta em ordem, commettiam as paredes dos inimigos, encostando-lhes suas escadas, ensaiando-se assim do modo que as haviam de arvorar, encostar, subir, no que andavam muito bem exercitados.»8
O primeiro elemento que aqui observamos é o do recrutamento de locais, comandados por um português, auxiliado no comando por doze naiques ou capitães, num total de 1 200 homens de infantaria. Mais dois mil portugueses, que o governador achou – a expressão é correcta pois ninguém sabia muito bem onde andavam os portugueses depois de terminarem as comissões militares na Índia – foram arregimentados para a expedição, e a todos mandou o governador exercitar. Houve, por isso, tempo para enquadramento e treino. O tipo de exercício praticado, na presença de uma réplica das defesas que os sitiantes levantaram em torno de Diu, mostra um muito elevado nível de profissionalismo. Recriar o mais fielmente possível o ambiente de combate, a identificação visual do campo de batalha, constitui prática eficaz do ensino militar em todos os tempos. Fá-lo o governador recorrendo a desenhos ou esquemas que D. João de Mascarenhas lhe conseguiu fazer chegar. E treina o efectivo, ele próprio, na repetição dos procedimentos: as unidades já constituídas e repartidas (o que pode significar que deveriam ter sido embarcadas já segundo uma dada disposição) treinam o encostar das escadas, a escalada dos muros, a ultrapassagem dos obstáculos.
Finalmente, a 6 de Novembro, chega a armada comandada pelo próprio governador sendo ele que, a partir deste momento, assume o comando de todas as operações. Três dias depois desembarca, entra na fortaleza e reúne um conselho, onde decide uma surtida em grande escala, precedida de uma manobra de diversão que veio a revelar-se de uma enorme eficácia. «Ho qual tanto que aos nove de novembro desembarcou na fortaleza, mandou que todolos piães, que cõ elle vierão de Baçaim e de Goa, se metessē ns navyos do Reyno, cõ cada hũ seu pique e que os levasē arvorados e mandou que hos marjnheiros fosē remando, cõ hũa mão e na outra levassem cada hũ, seu pedaço de murrão acesos, hos quaes piques repartidos per toda ha fustalha e dados murrões pera seu tempo, mandou que cando fizessē sinal com tres foguetes, da couraça grande, começasē de remaar e fosē demandar ha calhetaa do baluarte de Dyogo Lopez, nas quoaes fustas deu ha entender que ja sua pessoa e seu poder com levarem muytas trombetas e ataballes e charamelas e cõ hũa bandeira muyto grande e o seu feroce e elle com toda ha gente que tinha serjão dois mil e iiii soldados, determjnou de sayr pela parte da fortaleza e dar nas tranqueiras dos jmigos, deixando Antonio Corrêa, feitor que foi de Baçaim, pera goardar com muytos soldados, algũs sãos e outros mal despostos que pera pee quedo poderião bem pelejar.»9
Assim, a 11 de Novembro o que basicamente o governador faz é simular um desembarque na praia como se ele próprio o comandasse (uma bandeira muito grande, o seu alferes, trombetas, charamelas e timbales), atraindo o inimigo a defendê-la enquanto saía da fortaleza à frente de todo o efectivo remanescente. Na batalha campal que se seguiu, muito rápida e desordenada, participaram todos os portugueses disponíveis para combate, os mesmos que tinham defendido a praça durante meses – soldados, funcionários, civis, oficiais mecânicos – e numa acção violentíssima que impressionou os próprios lascarins ao serviço do governador, deixaram mais de 4.000 inimigos mortos, perante a fuga dos demais. Os lascarins, em combate, fugiram, o que atestará a sua fraca preparação ou motivação: «quis o pecado, que os nossos Lascarins sem nenhũa causa fogissem, deixando seus capitães no campo.»10
O segundo cerco de Diu mais uma vez mostra a maioritária adesão e disponibilidade para combate, independentemente da diferenciação funcional, dos portugueses presentes na região. E se não for para combater, há particulares que à sua custa armam, transportam, alimentam os soldados. É inequívoco o relatório do governador a D. João III quando escreve: «pois os leterados não comeram seus ordenados muito ociosos; por que o secretario veio em hũa fusta, o ouvidor geral em outra com muitos homēs, e armas, os quaes na batalha se ouverão mais como valentes cavaleiros que como letrados mui sesudos que elles são.» […] Antonio Martins tãobem trouxe muita gente, e lhe deu sempre de comer. E servio grandemente nas obras […] Miguel Rodrigues, cazado de Goa, […] e veio com dom Alvaro em hũa fusta com muitos homēs, aos quaes deu de comer todo o tempo, que durou o cerco; pelejou sempre muito bem».11 Claro que há desejo de projecção social, óbvio o negócio de honra, factores importantíssimos na sociedade portuguesa do século XVI. Mas o que os factos nos deixam ver é uma eficácia militar que não depende apenas do aparelho militar, da sua organização e adestramento, enquadramento e preparação técnica.
De tudo isto cantou Camões, de feitos dos portugueses de antanho, cada vez mais imperscrutáveis pela crescente vaga de esquecimento colectivo que ameaça toldar-nos o juízo e fazer-nos mergulhar numa longa e fria noite escura. Há que tomar como nossa a voz do poeta, e dizer ao mundo quem somos, dizer o que queremos, mesmo que as palavras não caibam em verso ou larga história.
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1 Dele, escreveu Ramusio: «venne uno chiamato il Cosa Zaffer, il qual è da Otranto, ma rinegato e fatto turco, ed era patron di una galea quando il signor turco mandò l’altra armata, la qual si ruppe e si perse. E il sopradetto Cosa Zaffer andò a star con il re del Diu, il quale si chiama re di Cambaia, e questo per nominarsi cosí il paese, e al predetto Cosa Zaffer il re gli aveva donato alcune terre e fatto capitano di tutto il suo regno, e lui praticava con Portoghesi e avevasi fatto lor amico; ma quando lui intese che l’armata del signor turco veniva, fece venir con bel modo gente assai del paese, e tolse la terra di man di Portoghesi e gli assediò nel castello.» in RAMUSIO, Giovanni Battista, Navigazioni e Viaggi, Turim, Giulio Einaudi editore, 1978, p. 684. Os volumes originais foram publicados entre 1550 e 1606; e Colóquios das Drogas e dos Simples, Edição da Academia Real das Sciencias de Lisboa, Dirigida e Annotada pelo Conde de Ficalho, 1891, p. 280. O original foi impresso em Goa em 1563.
2 NUNES, Leonardo, História Quinhentista do Segundo Cêrco de Diu, publicada e prefaciada por António Baião, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1927, p. 16.
3 Idem, p. 22.
4Diz o governador no posterior relatório que escreveu ao rei: «Na companhia de dom Fernando mandei Bastião coelho, por ser homem abil, exprimentado assi na guerra do mar, como na de terra, e ter visto muitos cercos, e combates, e saber bem todalas maneiras, com que se hade defender, e repairar hũa fortaleza». Idem, p. 268.
5 Idem, p. 57.
6 Idem, pp. 73-4.
7 Nunes, Leonardo, p. 268.
8 COUTO, Diogo do, Da Ásia, Década VI, Parte II, Lisboa, na Regia Officina Typografica, M.DCC.LXXXI, pp. 239-40.
9 Idem, p. 85.
10NUNES, Leonardo, ob. cit., p. 276. Termo cingalês de origem persa, designa o soldado do Ceilão e, genericamente, o que os portugueses chamavam aos soldados que recrutavam no Ceilão e na Índia. Nem sempre eram bem treinados ou sequer familiarizados com os procedimentos de guerra dos portugueses. Tal como muitos soldados portugueses, também havia lascarins especializados: «Como isto soube, em espaço de cinco dias fiz prestes vinte fustas, e seis catures com obra de quinhentos Lascaris arcabuzeiros, a mais escolhida gente de toda a India, e os mandei pola barra fora a vintatres de Julho, caminho de dio.» NUNES, Leonardo, ob. cit. p. 269. Depois de expulsos os portugueses pelos holandeses, os lascarins continuaram ao serviço dos novos senhores do Ceilão e, mais tarde, dos ingleses até aos anos 1930. Para um registo da sua presença e estrutura durante o governo holandês, Cf., por exemplo, JURRIAANSE, M. W., Catalogue of the Archives of the Dutch Central Government of Coastal Ceylon, 1640-1796, Colombo, Department of National Achives of Sri Lanka, 1943, pp. 290-95.
11Idem, p. 292.
Doutor em História pela Universidade de Lisboa. Investigador Colaborador no Centro de História da Universidade de Lisboa.