Estado e Instituição Militar, na cultura e organização da sociedade denominada europeia e ocidental, têm percorrido caminhos paralelos no longo percurso histórico iniciado com o nascimento do estado-nação e os aparelhos militares permanentes como instrumento do poder. Se o conceito de soberania foi elemento de orientação nesses caminhos paralelos, os conceitos de obediência e de disciplina foram elementos de regulação no seu relacionamento.
Há sinais de que esses caminhos estão a divergir. O Estado está a perder soberania e poderes nas suas funções tradicionais (Justiça, Ordem, Fazenda, Graças, Mercês e Milícia) e a Instituição Militar está a perder o seu carácter institucional, consubstanciado nas Forças Armadas, para voltar a ser olhado como um instrumento para um trabalho que pode ser desempenhado por alternativas.
À medida que o estado moderno perde soberania, algumas das suas características institucionais entram em declínio. As empresas públicas são reformuladas ou vendidas; os sistemas de segurança social recebem cada vez menos percentagem dos PIB’s; o sistema judicial, nalguns países, está a tomar formas de “rent a judge”, tornando-o mais célere e barato; os sistemas prisionais são privatizados, para diminuir custos; sistemas públicos de ensino e saúde na sua tentativa de rentabilização são cada vez menos públicos; as Forças Armadas, diminuindo em efectivos desde o final da Guerra-fria, procuram outras missões, confundindo-se algumas vezes com forças policiais; às polícias sobrepõem-se as companhias de segurança privadas; os meios de comunicação públicos ou pedem subsídios ou difundem tédio. A tradicional administração do Estado, procurando tornar-se mais eficiente e menos burocrática, aumenta dirigentes politizados e diminui servidores competentes e motivados, levando o tradicional “sentido de Estado” a ser servido de acordo com conveniências. O que substituirá o Estado no futuro, na ordem interna e nas relações internacionais, ainda se encontra difuso, mas parece que a burocracia será mais multinacional e a influência internacional mais ditada por movimentos que ultrapassam fronteiras do que pelos povos nos seus espaços. Repartir a soberania em espaços considerados nacionais ou acrescentar sujeitos à ordem internacional que ainda vigora parece ser uma tendência com velocidade adquirida.
O conceito de Forças Armadas como elemento estruturante do Estado e o seu carácter institucional também se encontram em mudança. Componentes distintivas do carácter institucional das Forças Armadas passam por princípios fortemente enraizados na cultura e pensamento militares, que se codificaram em ética e camaradagem de armas, comando, obediência e hierarquia, disciplina, condição militar e sentido de Estado e serviço público.
Ao escrevermos estas poucas linhas ouvíamos um programa de rádio em que se divulgava um estudo de opinião sobre o que entender por Identidade Nacional e o que motiva os portugueses para sentirem orgulho em Ser Português. Ainda que tenhamos ficado com dúvidas sobre o que de facto enraíza a nossa identidade nacional, verificámos que as Forças Armadas ainda constituem motivo de orgulho para alguns (52%, no quinto lugar) se sentirem portugueses, enquanto outros, evidenciando a pluralidade de opinião de uma sociedade democrática, procuraram nesse orgulho a História (mais de 80%), o Desporto, a Arte e Literatura ou a Ciência e a Tecnologia. Independentemente de outras leituras, interpretamos o resultado como significando que a sociedade portuguesa, contrariando algumas vozes e procedimentos apressados, ainda considera as Forças Armadas como uma Instituição da Nação.
As vozes e procedimentos apressados que têm caracterizado as sucessivas transformações nas Forças Armadas têm-se debruçado mais sobre os seus aspectos organizativos e de meios do que sobre os seus aspectos institucionais. Já dizia Napoleão que os meios e os conceitos sobre o seu emprego duravam, no seu tempo, dez anos. Hoje as mudanças são de hoje para amanhã, pelo que os aspectos institucionais da força militar e a sua definição devem merecer mais atenção.
Vozes e procedimentos têm adulterado os princípios de comando confundindo-os com a administração. Os princípios de comando, que se quiseram repor em 25 de Abril de 1974, dando aos Comandantes dos Ramos das Forças Armadas a competência e responsabilidade para escolherem e nomearem os seus subordinados, por qualidades demonstradas, retirando-as da competência de um Ministro e da administração, por vozes ouvidas parece estarem em revisão.
Por confusão gritante entre justiça e disciplina há Tribunais a porem em causa a competência disciplinar dos Comandantes, evidenciando a falta de procedimento da Assembleia da República na sua competência exclusiva para legislar sobre Disciplina Militar, que se arrasta desde 2000, quando se modificou o Código de Justiça Militar. É necessária a definição das Bases Gerais da Disciplina Militar, no novo contexto de profissionalização das Forças Armadas, para se poder definir um Regulamento de Disciplina Militar.
A Lei da Condição Militar, aprovada pela Assembleia da República, nunca foi regulamentada, levando a opinião pública a não entender o que significa essa condição no escopo dos seus deveres e no acesso aos seus direitos, que alguns ainda consideram privilégios e não o reconhecimento do Estado por aqueles, e únicos, que no universo de servidores do Estado juram defender a Pátria com o sacrifício da vida.
Outros aspectos da Instituição Militar merecerão atenção e nesse sentido a nossa Revista procura abrir um debate sobre a Nação e o Estado e a Instituição Militar. Não nos satisfaz, por ofender um conceito de Instituição que desejamos conservar e juntando-nos a outras vozes que não só na Europa mas em outras partes do Mundo discutem esta questão, a pouca atenção que o assunto tem merecido na vida nacional. Desafiamos os nossos sócios e leitores a contribuírem para esse debate.
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* Sócio Efectivo da Revista Militar. Presidente da Direcção.