Nº 2674 - Novembro de 2024
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Política, Guerra e Paz
General
António Eduardo Queiroz Martins Barrento

I – Situação

Quando ministrei no ISCSP a cadeira de “Teoria Geral da Estratégia” tive como referência principal os ensinamentos que o Tenente-general Abel Cabral Couto, meu ilustre antecessor naquela cátedra, nos transmitiu nos dois volumes dos seus “Elementos de Estratégia”. Essa referência ia ao ponto de eu dizer aos mestrandos da “Estratégia” e aos alunos da licenciatura em Ciência Política que aqueles livros eram a “Bíblia” da nossa matéria. Notava, porém, que, sendo admissível fazer a exegese da “Bíblia”, não havia impedimento de apresentar, por vezes, a minha discordância sobre determinados pontos e conceitos como, por exemplo, a definição de guerra.

O conceito de guerra apresentado pelo autor é o seguinte:

Violência organizada entre grupos políticos, em que o recurso à luta armada constitui, pelo menos, uma possibilidade potencial, visando um determinado fim político, dirigido contra as fontes de poder do adversário e desenvolvendo-se segundo um jogo contínuo de possibilidades e azares 1.

A minha discordância é sobre a parte da definição que refere… em que o recurso à força armada constitui, pelo menos, uma possibilidade potencial. Na minha opinião esta parte da definição estava datada, apresentando a situação que então se vivia de confronto entre a NATO e o Pacto de Varsóvia. Por esta razão e porque a guerra está para além de um determinado período de tempo o meu conceito é diferente.

A guerra é o estado de confronto entre grupos políticos, em que se emprega a força armada e se usa a violência de uma forma organizada, para a obtenção de fins determinados pela política 2.

Quando se refere que o recurso à força armada constitui pelo menos uma possibilidade potencial isto diz-nos que se estava a viver a “Guerra Fria” e que para que ela pudesse ser considerada como guerra… e não apenas uma confrontação sem guerra era necessária esta explicação. Isto é, para que houvesse guerra não era necessário o recurso à força armada pois bastava que esta fosse uma possibilidade potencial. Mas haver guerra sem o recurso à força armada quer também dizer que ela está a ser feita, unicamente, por outros processos, por outras formas de violência ou coacção, ideia que não partilhamos. Ainda que o problema da datação possa explicar aquela definição de guerra e apesar de na guerra, “conjuntamente” com a luta armada, serem utilizadas outras formas de violência ou coacção, julgamos que a guerra exige de facto que haja luta armada.

Se a luta armada não existir, pode haver tensão, hostilidade, conflito, ou até um estado de guerra declarado mas não há guerra. Esta última hipótese sucedeu quando a Inglaterra e a França declararam guerra à Alemanha em Setembro de 1939, até ao momento do confronto físico das suas forças armadas. Por isso se chama “la drôle de guerre”, ou seja, uma guerra ridícula, pois só em Maio de 1940 as forças se encontraram e sucedeu a luta armada. Poder-se-á dizer que a expressão “luta armada” é imprecisa e dever-se-ia ser mais claro quanto ao momento em que ela de facto se manifesta, porque as acções militares que imediatamente antecedem o embate físico das forças já fazem parte dela. Aceita-se esta objecção, mas julgamos não poder ir além das acções militares que precedem imediatamente o embate entre as forças, como a movimentação dos meios humanos e materiais para o contacto, porque uma instrução de quadros ou um decreto reorganizativo das forças armadas com vista a uma futura guerra, feito a dez ou vinte anos de distância, seriam já considerados como guerra, quando apenas são preparação para a guerra. Pensamos que não faz sentido tal interpretação de guerra porque, no limite, se consideramos que a luta armada é uma possibilidade potencial, isto significa que estamos já e sempre em estado de guerra! 3

Indiferentemente da definição que façamos de guerra lembramos que sobre ela existem, entre outras, três grandes concepções: a racional que lhe é concedida pela sua natureza como instrumento da política; a escatológica em que com ela se visa atingir os fins últimos, como um designo histórico, muitas vezes de contornos messiânicos; e a cataclísmica em que ela é comparada ao fogo, a uma epidemia, ou a um terramoto e é pensada como inevitável. Olhando estas três interpretações na concepção racional a guerra surge como um jogo para o qual se procura obter aptidão para vencer. A guerra adquire um carácter quase lúdico e quando ela sucede “há que a jogar”. Na escatológica a guerra surge como uma missão – tem um carácter imperativo, “há que a fazer”. Na cataclísmica, ela mostra-se como uma catástrofe – sendo inevitável “há que a sofrer, não há nada a fazer” 4.

No século XXI e particularmente no momento actual, em que as tensões, a violência e a guerra são numerosas, persistentes e imprevisíveis há quem fale já de uma nova “Guerra Fria”, ou até de uma “Terceira Guerra Mundial”. Esta situação, lembrando a concepção cataclísmica da guerra, não altera a nossa ideia de ter que haver “luta armada” para que haja guerra, mas sugere e obriga-nos a repensar alguns conceitos e ideias.

Desde já, constata-se que existem e são utilizadas hoje, mesmo de forma isolada e não somente como apoio à guerra, formas de coacção do âmbito da economia, vigilância, informações, propaganda e desinformação, que podem alterar significativamente as percepções das populações e dos militares de ambos os lados; atitudes individuais ou colectivas; tendências políticas; causar fome ou doenças; agir para provocar a ausência de recursos essenciais, etc. Estas formas de coacção podem, com efeito, como se pretende na guerra, “fazer ajoelhar o adversário”, diminuir a sua capacidade de sobrevivência ou reagir, ou ainda suscitar uma reacção do âmbito da luta armada. Deve porém notar-se que qualquer que seja a concepção que se tenha da guerra, com maior ou menor intensidade e valor, há sempre o predomínio da política, bem expresso naquilo que Clausewitz “descobriu” quando escrevia o Livro VIII, registou no Livro I quando o reviu e voltou a sublinhar na nota que escreveu em Junho de 1827. Para ele a guerra não é outra coisa se não a continuação da política do estado por outros meios 5. Esta “máxima”, que Raymond Aron designou por “A Fórmula”, é o pilar essencial da visão clausewitziana da guerra, em que ela não é somente um acto político mas um verdadeiro instrumento político 6, e deve estar sempre presente quando lemos “O Tratado”, ou quando estudamos e reflectimos sobre a guerra. Esta chamada de atenção é muito importante porque, existindo a ideia de que Clausewitz é um defensor e incentivador da guerra (normalmente por parte de pessoas que nem sequer o leram), tal apenas mostra desconhecimento daquilo que ele escreveu sobre a paz.

A consideração que, de uma maneira ainda mais geral, pesa na decisão de fazer a paz, consiste no dispêndio de forças já sofrido e no que estará para ser feito. Não sendo a guerra um acto cego de paixão mas um acto dominado por um desígnio político, o valor desse desígnio determinará a amplitude dos sacrifícios necessários à sua realização. Isto tanto é válido no que se refere à extensão dos sacrifícios como à sua duração. Desde que os dispêndios de força se tornem tão grandes que já não correspondam ao valor do objectivo político, é necessário abandonar esse objectivo e assinar a paz 7. A situação agora descrita não apaga a “Fórmula”, sublinha mesmo a importância da política e termina com uma evidência, que é quase uma inversão da “Fórmula” – A paz é a continuação da política por outros meios, que não a actuação da violência armada do instrumento militar. A situação actual de belicismo quase universal e permanente obriga-nos a repensar estas dialécticas entre a guerra e a paz, a política e a guerra e a política e a paz.

Olhando a História, vemos frequentemente o aparecimento das guerras mas notamos que surgem períodos de acalmia e de paz. As guerras que aconteceram, apesar da sua duração variável, terminaram com um vitorioso e um derrotado, com dois derrotados, com armistícios ou tratados de paz. A persistência das actuais guerras conduz-me à tentação de dizer que a política é a continuação da guerra por outros meios.

Voltando à “Fórmula” de Clausewitz quando ele diz que a guerra é a continuação da política por outros meios, isto não significa que haja uma suspensão das acções dos meios de que a política dispõe que não são utilizados na guerra, mas que passa a ser prioritária a utilização do instrumento militar e da violência que o mesmo pode exercer. Obviamente, os outros meios passam para um segundo plano. Aliás, isto é evidente quando, ao pensarmos nas várias estratégias decorrentes da estratégia geral, distinguimos a estratégia militar de outras estratégias, como a diplomática, económica, psicológica, etc., que com ela concorrem para os fins determinados pela política. Mas, mesmo para além disso, a política continua portanto a exercer-se com vista ao bem-estar e para a direcção e controle do grupo político, do Estado, da Coligação ou até do Mundo que, com maior ou menor sucesso, dirige.

Quando nós agora sugerimos que a política é a continuação da guerra por outros meios, estamos apenas a indicar que, na situação actual em que a presença e a intensidade da violência e da guerra são muito comuns, a política continua a exercer-se em cada um dos adversários, ou para além deles, mesmo quando os beligerantes continuam a usar a violência e os seus instrumentos de coacção militar ou outros.

No ambiente bélico, como é o actual, em que domina a violência, a racionalidade exercida pela política, estando muito focalizada no sucesso do aparelho de coacção militar, fica por vezes diminuída em relação à utilização dos restantes meios. Na sequência deste raciocínio, se a guerra deve ser dirigida pela racionalidade política, quando se pretende parar um conflito há que incrementar a racionalidade que a política deve manter. A política não pode, como aliás sucedeu nos últimos anos da Primeira Guerra Mundial, entrar “em greve”, expressão utilizada por Aron na sua análise sobre esse conflito. Trata-se, pois, de terminar com a irracionalidade, que é o prolongamento indefinido e sem limites da violência e da guerra, como o próprio Clausewitz referiu e que já citámos. Os outros meios que a política continua a exercer devem agora focalizar-se no seu desenvolvimento com vista a extinguir ou no mínimo fazer diminuir o grau de violência. Só assim é que a política demonstra não abdicar da racionalidade nas decisões e que deve ser o seu timbre.

Não podendo num simples artigo procurar abarcar todos esses meios e políticas a desenvolver, distingo, sublinho e sugiro algumas delas que, apesar de conhecidas e frequentemente discutidas, devem, no nosso entendimento, merecer uma atenção especial.

 

II – Sugestões

a. Numa época, como aquela que estamos a viver, em que a dissuasão nuclear está a perder o estatuto de contenção de grandes guerras convencionais; do renascimento dos imperialismos e das ameaças às soberanias dos Estados; da diluição de princípios, do aumento da violência e do alastramento e da permanência de várias guerras; de uma generalizada e muito contundente desinformação que nos impede de saber a verdade e condiciona sentimentos e decisões – há que estabelecer uma nova ordem internacional;

b. No âmbito dos princípios deve afirmar-se o primado da liberdade, sem descurar o direito à segurança e à paz; respeitar os “já aprovados direitos do Homem”; promover-se o diálogo nas relações internas em cada unidade política, entre as unidades políticas e nas Organizações Internacionais; universalizar-se a convivência entre povos; incrementar-se a tolerância em relação à diferença de ideias, de ideologias, de religiões, dos usos e costumes; respeitar-se o direito à sobrevivência e ao desenvolvimento dos povos; e promover-se o direito ao usufruto da segurança, do bem-estar e da paz;

c. No âmbito de uma Organização Internacional de topo analisar cuidadosa e profundamente a experiência que foi a “Sociedade das Nações” e é a “Organização das Nações Unidas”, por forma a ver aquilo em que elas falharam, bem como os aspectos positivos que foram e estão a ser conseguidos; conceber e criar uma Organização que disponha não apenas de uma autoridade moral, mas também de uma autoridade real efectiva.

O poder actualmente existente na ONU, representando o poder dos Estados após a Segunda Guerra Mundial, está claramente ultrapassado. Houve uma alteração significativa no poder de certos membros e não pode continuar a haver uma oligarquia nuclear com direito de veto no Conselho de Segurança, que determina muito daquilo que na opinião deste deve ser resolvido e executado, ou impede que se faça aquilo que na opinião generalizada dos membros, deve ser feito.

O órgão a criar não será por certo como a Assembleia Geral, em que é evidente a diferença de poder dos vários Estados. Será necessário imaginar e criar um sistema em que a política seguida pela Organização represente a vontade de uma maioria muito significativa dos Estados.

Com os jogos de poder dos vários Estados só haverá paz se houver um poder que lhes seja superior – é a paz pelo império. Não existindo “o império da razão”, pode porém haver uma Organização Internacional que imprima racionalidade às decisões.

Notando-se que existem tendências imperialistas em alguns Estados, o único “império” que lhes seja superior só pode resultar da “vontade mundial” e de formas de dissuasão que vão do nuclear ao “isolamento internacional”. Quem não aceitar ser membro de uma bem elaborada e previamente conseguida organização deste tipo, apenas manifesta uma visão imperialista, impede que haja paz no Mundo e deve ser contrariado por todas as outras nações em todas as áreas;

d. No âmbito de outras Organizações nacionais ou internacionais, criar, manter e apoiar todas aquelas que promovam a defesa do orbe, da natureza, dos bens escassos; o apoio à saúde, à sobrevivência e ao bem-estar da população, nomeadamente a mais necessitada e desfavorecida; o diálogo e a tolerância entre países, etnias, raças e religiões. Em suma, cuidar das organizações que tenham em vista a protecção do nosso planeta e da população mundial. Por outro lado, deve lutar-se contra todas as organizações cuja finalidade é a exploração do Homem pelo Homem; que promovam a expansão do consumo de droga ou utilizam o crime para o seu desenvolvimento; as que projetam a violência e desinformação, as máfias; as que pretendem dominar as mentes e promovam a violência. Enfim, distinguir as Organizações que protegem a Humanidade daquelas que a prejudicam e lutar vigorosamente contra estas últimas;

e. Dentro daquelas ideias aqui mencionadas, entre muitas outras que poderiam ser sugeridas, há que lembrar a importância da justiça ao nível internacional. Ela desenvolve-se nos Estados segundo as suas leis, mas a nível internacional a sua acção é muito limitada. Existem tribunais internacionais mas muitos países não aceitam que o seu Estado e os seus cidadãos sejam sujeitos a um escrutínio internacional sobre as suas actuações. Parece haver, portanto, a necessidade de repensar aquilo que deve ser considerado como crime internacional e julgado a este nível e promover a adesão dos Estados à jurisdição destes tribunais;

f. Como última sugestão, já que olhando a situação actual, persistindo a precipitada utilização dos aparelhos militares, aos quais se soma a coacção de outras estratégias particulares, dando a ideia de que a política é a continuação da guerra por outros meios, devemos procurar que se não perca a racionalidade no exercício da Política, por forma a que a Humanidade consiga aumentar o seu bem-estar e usufruir da paz.

 

_____________________________________

1 Couto, Cabral, “Elementos de Estratégia”, IAEM, Lisboa, 1987, página 148.

2 Barrento, “Da Estratégia”, Tribuna da História, Parede, 2010, página 85.

3 Op. Cit., páginas 81 e 82.

4 Op. Cit., página 72.

5 Clausewitz, “Da Guerra”, Perspectivas e Realidades, Lisboa, 1976, página 65.

6 Op. Cit., página 97.

7 Op. Cit., página 93.

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by COM Armando Dias Correia