Nº 2681/2682 - Junho/Julho de 2025
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Cooperação internacional e insurgência criminal: reconfiguração da Segurança nas Relações Internacionais
Coronel
Fernando de Galvão e Albuquerque Montenegro

1. Introdução

A segurança internacional, historicamente concebida como preservação da soberania contra ameaças externas (Waltz, 1979), enfrenta no século XXI um ambiente operacional profundamente transformado. O avanço de ameaças híbridas, insurgências criminais e estruturas paraestatais impõe uma reconfiguração teórica e prática às Relações Internacionais, exigindo abordagens integradas, multidimensionais e transnacionais.

Nesse cenário, a insurgência criminal, como definida por Sullivan (2012), representa um novo tipo de ator insurgente: grupos organizados, armados e territorializados que não necessariamente buscam capturar o Estado, mas corroê-lo por dentro. Dotados de capacidade paramilitar, controle normativo, influência simbólica e racionalidade territorial, essas organizações operam como para-estados em regiões onde a presença governamental é fraca, ausente ou rejeitada.

O século XXI é marcado por um ambiente operacional que excede as dimensões físicas da segurança. Como demonstram as doutrinas militares modernas – Manual EB20-MC-10.213 (Exército Brasileiro, 2014), FM 3-13 (Department of the Army, 2013), JDP 3-45.1 (Ministério da Defesa do Reino Unido, 2007) e RDIA-2012/008 (CICDE, 2012) – a disputa estratégica ocorre também nos eixos lógico (sistemas de informação), cognitivo (percepções públicas) e simbólico (narrativas e identidades). A insurgência criminal se apropria desses campos: molda o imaginário social, constrói legitimidade local, desafia discursos estatais e disputa autoridade institucional.

As campanhas informacionais insurgentes buscam promover sua reputação comunitária, banalizar a violência, naturalizar a ilegalidade e deslegitimar o Estado. Frente a isso, os Estados nacionais precisam mobilizar capacidades de influência estratégica, manobra narrativa e superioridade cognitiva – como forma de reconstrução da legitimidade. O uso de meios militares deve ser acompanhado por ações simbólicas articuladas, comunicações consistentes e narrativas de reintegração estatal.

Assim, a insurgência criminal no século XXI não é apenas uma manifestação de criminalidade organizada, mas uma reconfiguração da política de poder em espaços de soberania fragmentada. Requer respostas sistêmicas que vão além da repressão: exige cooperação internacional, reconstrução institucional e atuação em todos os níveis do ambiente operacional contemporâneo.

 

2. A Insurgência Criminal como Ator Insurgente Não Estatal

A insurgência criminal configura-se como uma ameaça híbrida que transcende os limites da criminalidade comum e se insere no campo dos conflitos políticos difusos. Sullivan (2012) propõe que esses grupos, embora não tenham uma ideologia revolucionária formalizada, operam como forças de contestação à autoridade estatal: mantêm estruturas de comando, hierarquia bélica, controle territorial e narrativa própria. Sua atuação obedece a uma racionalidade política e funcional voltada à substituição informal da governança pública.

Esses atores não estatais insurgentes atuam em múltiplos domínios operacionais simultâneos – físico, lógico e cognitivo – conforme estabelecido nas doutrinas modernas de operações (Exército Brasileiro, 2014; Department of the Army, 2013; Ministério da Defesa do Reino Unido, 2007). No plano físico, controlam fluxos logísticos, áreas urbanas estratégicas e rotas de tráfico. No plano lógico, operam redes de comunicação cifrada, inteligência tática e sistemas financeiros clandestinos. No plano cognitivo, exercem influência sobre comunidades vulneráveis, moldando percepções, valores e códigos sociais.

Kilcullen (2013) reforça essa abordagem ao apresentar o conceito de controle competitivo: a autoridade em uma localidade pertence a quem exerce, de fato, regulação das condutas, solução de disputas e proteção territorial. A insurgência criminal se legitima por meio da eficácia funcional, da permanência simbólica e da coerência interna – atributos que permitem sua expansão mesmo diante da superioridade armada do Estado.

Morgenthau (1948), ao discutir a essência do poder político, destaca que a capacidade de influenciar o comportamento humano é mais decisiva do que o domínio territorial formal. Nesse contexto, a insurgência criminal constrói soberania informal, baseada em autoridade social e presença contínua – configurando-se como ator relevante da política internacional contemporânea.

 

3. Soberania Fragmentada, Para-Estados e Governança Informal

O conceito de soberania, tradicionalmente associado ao controle exclusivo do Estado sobre seu território (Waltz, 1979), passa a ser questionado em contextos onde atores não estatais insurgentes exercem poder funcional. Bartelson (1995) argumenta que a soberania é uma prática discursiva e relacional, efetivada não pelo reconhecimento formal internacional, mas pela capacidade real de governar populações e territórios.

No contexto latino-americano, essa fragmentação se manifesta em zonas urbanas e fronteiriças controladas por grupos criminosos organizados. Mendonça e Franchi (2021), inspirando-se em Stanislawski (2008), denominam esses espaços como black spots: áreas geográficas dentro da jurisdição estatal onde a presença institucional é nula ou residual, e onde facções armadas assumem funções estatais substitutas – como mediação de conflitos, regulação econômica e assistência social informal.

Williams (2008) denomina essas estruturas de para-estados: organizações que exercem soberania de fato, sem legitimidade jurídica, mas com forte aceitação social. Essas entidades insurgentes se sustentam pela eficácia funcional, coerência normativa e controle simbólico – atributos centrais à governança informal. Operam em ambientes sociais vulneráveis, substituindo o Estado em suas funções mais básicas, inclusive nos domínios informacional e psicológico.

Essa lógica dialoga diretamente com as doutrinas contemporâneas sobre ambiente operacional. O Manual EB20-MC-10.213 (Exército Brasileiro, 2014) reconhece que o domínio cognitivo é central: a soberania é conquistada por quem molda percepções e normas sociais. A doutrina francesa RDIA-2012/008 (CICDE, 2012) afirma que a legitimidade estatal só se sustenta quando há narrativa simbólica coerente e presença efetiva nos espaços disputados. O poder insurgente criminal, portanto, não se estabelece apenas pela força – mas pela reconstrução de laços simbólicos, políticos e normativos.

 

4. Teorias da Segurança Internacional e Seus Limites

A insurgência criminal expõe as limitações das teorias tradicionais das Relações Internacionais, exigindo uma reconciliação entre abordagens clássicas e dinâmicas contemporâneas de poder informal.

Realismo clássico. Morgenthau (1948) define o poder como o elemento central da política internacional, exercido pelos Estados em constante competição por recursos e influência. No entanto, a insurgência criminal demonstra que o poder não é exclusivo das entidades estatais, podendo ser exercido por atores organizados e legitimados informalmente.

Neorrealismo. Waltz (1979) propõe que o sistema internacional é anárquico, e que os Estados são suas únicas unidades racionais. Contudo, como indicam Clunan e Trinkunas (2010), a crescente presença de atores não estatais capazes de exercer soberania funcional enfraquece a premissa de autonomia estatal.

Securitização. Buzan et al. (1998) introduzem a noção de que ameaças são construídas discursivamente. A insurgência criminal, ao ser reconhecida publicamente como ameaça existencial, autoriza ações excepcionais. A doutrina FM 3-13 (Department of the Army, 2013) reforça esse ponto ao destacar que percepções públicas moldam o espaço de manobra estatal.

Segurança humana. O Relatório do PNUD (1994) e Visacro (2021) propõem deslocar o foco da segurança do Estado para o indivíduo. A insurgência se enraíza em comunidades abandonadas ou negligenciadas, onde o Estado perdeu sua função protetiva e representativa.

A síntese dessas abordagens revela que a insurgência criminal é simultaneamente uma ameaça militar, sociológica, psicológica e simbólica. Enfrentá-la exige doutrinas operacionais multinível, estratégias narrativas coerentes e políticas públicas sustentáveis – articuladas por meio da cooperação internacional estruturada.

 

5. Cooperação Internacional como Eixo de Enfrentamento

Diante da falência funcional dos Estados em áreas dominadas por facções insurgentes, a cooperação internacional emerge não apenas como mecanismo diplomático, mas como estratégia operacional indispensável à reconstrução da autoridade legítima. Carr (1939) reconhece que, em cenários de ruptura, a ação conjunta entre Estados é imperativa para restaurar a ordem e a previsibilidade no sistema internacional.

Martin Wight (1977) propõe que a tradição racionalista das Relações Internacionais pode sustentar a cooperação em contextos de ameaça compartilhada – desde que haja normas institucionais confiáveis e planejamento coordenado. Bernardino (2020) reforça que a segurança regional deve ser compreendida como bem público coletivo, cuja defesa exige mecanismos de governança multinível.

No enfrentamento das insurgências criminais, a lógica cooperativa precisa articular:

• Protocolos comuns de enfrentamento;

• Forças-tarefa conjuntas com interoperabilidade tática e inteligência integrada;

• Campanhas comunicacionais articuladas contra o imaginário insurgente;

• Integração técnico-operacional entre Estados.

A doutrina FM 3-13 (Department of the Army, 2013) recomenda que ações de influência sejam alinhadas entre atores estratégicos regionais para evitar dissonâncias. A RDIA-2012/008 (CICDE, 2012) propõe coordenação interministerial na produção simbólica da política pública de segurança.

A cooperação internacional é, portanto, condição sistêmica para enfrentar insurgências criminosas transnacionais que disputam legitimidade pública e operam à margem das jurisdições estatais.

 

6. América Latina como Complexo Regional de Segurança

A América Latina reúne características estruturais que a qualificam como Complexo Regional de Segurança (Buzan & Waever, 2003): um agrupamento de Estados cujas ameaças à segurança são interdependentes. Facções criminosas como o PCC, Tren de Aragua, Comando Vermelho e Cartel de Sinaloa operam em diversos países – articulando redes logísticas, sistemas financeiros paralelos e canais informacionais transfronteiriços (Revista CREES, 2022).

Clunan e Trinkunas (2010) destacam que apenas coalizões estratégicas sustentáveis conseguem recompor autoridade institucional. Bernardino (2020) propõe a construção de uma arquitetura regional baseada em interoperabilidade, inteligência comum e estratégias narrativas compartilhadas.

Essa lógica demanda:

• Integração simbólica entre Estado e sociedade civil;

• Campanhas de influência regional que deslegitimem o imaginário insurgente;

• Sistemas comuns de monitoramento e resposta coordenada.

A doutrina RDIA-2012/008 (CICDE, 2012) orienta que a influência informacional não pode ser fragmentada entre atores estatais. O Manual EB20-MC-10.213 (Exército Brasileiro, 2014) reforça que a superioridade cognitiva só é eficaz com coerência interinstitucional.

A América Latina precisa de uma estratégia regional simbólica, operacional e institucional para restaurar a legitimidade estatal e reduzir os espaços da governança informal.

 

7. Considerações Finais

A insurgência criminal consolida-se como fator político informal que desafia a soberania estatal e os modelos teóricos clássicos das Relações Internacionais. Mais do que ameaça à ordem pública, representa uma reconfiguração da política de poder em ambientes de governança fragmentada.

O ambiente operacional do século XXI – estruturado em dimensões física, lógica e cognitiva (Exército Brasileiro, 2014; Department of the Army, 2013; CICDE, 2012) – revela que o controle simbólico e a influência sobre percepções sociais são componentes centrais da segurança contemporânea. A insurgência prospera onde o Estado perde sua capacidade de proteção e representação.

As respostas estatais devem incluir estratégias de reconstrução da legitimidade, segurança humana (PNUD, 1994; Visacro, 2021), manobra informacional integrada e ações simbólicas planejadas. A cooperação internacional, articulada por protocolos comuns, interoperabilidade e influência regional compartilhada, emerge como eixo estratégico inadiável.

A América Latina, como Complexo Regional de Segurança (Buzan & Waever, 2003), exige mecanismos coordenados para enfrentar insurgências transnacionais que desafiam a soberania funcional e disputam autoridade institucional junto às populações vulneráveis.

Este artigo propõe uma reconversão da disciplina de Relações Internacionais: uma abordagem integrada que articule teoria, estratégia e prática – capaz de enfrentar fenômenos híbridos, recompor autoridade legítima e restaurar governança onde o Estado foi substituído por poderes informais.

 

Referências

Baldwin, D. A. (1997). The concept of security. Review of International Studies, 23(1), 5-26. https://doi.org/10.1017/S0260210597000053

Bartelson, J. (1995). A genealogy of sovereignty. Cambridge University Press.

Bernardino, M. B. (2020). Segurança internacional e cooperação estratégica: Desafios contemporâneos. Revista Brasileira de Relações Internacionais, 23(2), 115-138.

Buzan, B., & Waever, O. (2003). Regions and powers: The structure of international security. Cambridge University Press.

Buzan, B., Waever, O., & De Wilde, J. (1998). Security: A new framework for analysis. Lynne Rienner Publishers.

Carr, E. H. (1939). The twenty years’ crisis: 1919-1939. Macmillan.

CICDE. (2012). L’influence en appui aux engagements opérationnels (RDIA-2012/008). Centre Interarmées de Concepts, de Doctrines et d’Expérimentations.

Clunan, A. L., & Trinkunas, H. A. (2010). Ungoverned spaces: Alternatives to state authority in an era of softened sovereignty. Stanford University Press.

Department of the Army. (2013). FM 3-13: Inform and influence activities. Headquarters, United States Army.

Exército Brasileiro. (2014). Manual de Campanha EB20-MC-10.213 – Operações de Informação. Centro de Doutrina do Exército.

Kilcullen, D. (2013). Out of the mountains: The coming age of the urban guerrilla. Oxford University Press.

Mendonça, H. O., & Franchi, T. (2021). Guerras brasílicas do século XXI: Eclipse da soberania nos black spots das grandes metrópoles brasileiras. Revista da Escola de Guerra Naval, 27(2), 317-348.

Ministério da Defesa do Reino Unido. (2007). JDP 3-45.1 – Media operations. Joint Doctrine Publication.

Morgenthau, H. J. (1948). Politics among nations: The struggle for power and peace. Knopf.

PNUD. (1994). Relatório de Desenvolvimento Humano. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

Revista CREES. (2022). Centro Regional de Estudios Estratégicos en Seguridad. Bogotá, Colômbia.

Sullivan, J. P. (2012). Criminal insurgency: Narcocultura, social banditry, and information operations. Small Wars Journal, 8(12), 1-21. https://archive.smallwarsjournal.com/index.php/jrnl/art/criminal-insurgency-narcocultura-social-banditry-and-information-operations

Visacro, A. (2021). Insurgência criminal: Guerra irregular e conflito híbrido no século XXI. Contexto.

Waltz, K. (1979). Theory of international politics. McGraw-Hill.

Wight, M. (1977). Systems of states. Leicester University Press.

Williams, P. D. (2008). Violent non-state actors and national and international security.

Gerar artigo em pdf
2025-10-30
531-530
112
112
Avatar image

Coronel

Fernando de Galvão e Albuquerque Montenegro

Mestre em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME). Investigador Associado no OBSERVARE-Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma de Lisboa, Professor na Autónoma Academy e na Faculdade Mar Atlântico.

REVISTA MILITAR @ 2025
by COM Armando Dias Correia