Nº 2465/2466 - Junho/Julho de 2007
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Contrapartidas: E não se pode exterminá-las?
Capitão-de-mar-e-guerra ECN
Jorge Manuel Pereira da Silva Paulo
As contrapartidas são um tema actual. Dos media emerge uma ideia positiva, embora hoje e em Portugal, mal executada. Neste breve artigo, vai-se defender que as contrapartidas não são uma ideia boa; por isso, dificilmente poderá ser bem executada. O autor adere a Peter Drucker, quando diz que o mais importante não é fazer bem feito, mas fazer o que é preciso - no caso das contrapartidas, não fazer.
 
A ideia das contrapartidas ou offsets é simples. Na aquisição por impor­tação dum dispendioso sistema de armas1 (como aviões de combate ou navios de guerra) por contrato entre um estado e um fornecedor estrangeiro, o estado exige a este que faça aquisições a empresas nacionais (chamadas beneficiárias), em valor da ordem de grandeza do fornecimento, mesmo que noutros sectores. Para vincular o fornecedor, cria-se um contrato de contrapartidas, paralelo ao contrato de fornecimento do sistema de armas.
 
A ideia das contrapartidas surgiu para reduzir a volatilidade das paridades cambiais devida a fluxos de pagamentos em divisas, de grandes equipamentos importados, civis (por exemplo, para centrais térmicas) ou militares. Assim, estes grandes pagamentos podiam ser compensados por fluxos, opostos, de investimento estrangeiro ou exportações, amortecendo as potenciais variações cambiais. Esta volatilidade era real quando os fluxos financeiros entre estados resultavam mormente do comércio internacional: os grandes pagamentos instantâneos acarretavam variações bruscas na procura e na oferta de moeda, e por consequência, nas paridades cambiais bilaterais das moedas do negócio. Com a liberalização dos movimentos de capitais nos anos 1990s, as paridades cambiais deixaram de ser determinadas pelos fluxos de pagamentos do comércio internacional, mas antes pela dinâmica dos mercados financeiros, em especial pelos fluxos especulativos. Isto é, esgotou-se a motivação original das contrapartidas. E esgotou-se, para Portugal, também porque, em corolário da descrição acima, as contrapartidas não têm justificação económica num espaço monetário com moeda única. Aliás, a evolução do processo de integração europeia também mina as contrapartidas, desde que se reconheça a natureza proteccionista destas.
 
De facto, as contrapartidas inserem-se no discurso proteccionista sofisti­cado, que se declara, no plano teórico e discursivo, contra, mas que, na prática, acaba por ser a favor. Assim, declara-se visar compensar a indústria nacional (por exemplo, para obter transferência de tecnologia, ou por algum “sentimento de culpa”) ou fazer o mesmo que outros estados (me too).
 
O argumento me too é tão pobre moral e politicamente que dispensa qualquer comentário; é duvidoso que um governo actue “como os outros”, quando não consegue mostrar que perde algo por não o fazer. Pode ser uma hipótese meramente teórica, mas não se pode excluir duma análise completa.
 
É difícil perceber como se associa a transferência de tecnologia a “compensação”. Como também não se entende como o serviço pós-venda pode incorporar-se na ideia de contrapartidas. De facto, seria mais transparente e correcto incluir a transferência de tecnologia e de serviço pós-venda no fornecimento e no respectivo contrato, ainda que se exija a instalação de empresa (por aquisição, fusão ou associação) para esse fim no estado adquirente. A transparência advinha da clareza de vínculos e de despesas para esse fim; e a bondade, da associação directa entre requisitos, instrumentos e resultados. Quando se fala em êxito de contrapartidas, o que se tem em mente são transferências de tecnologia e serviços pós-venda, de facto, fornecimentos complementares ao contrato de aquisição, embora através dum mecanismo lateral.
 
Falar em “compensar” encerra, pois, uma ideia proteccionista, através duma ideia de justiça, como se a aquisição de produtos no exterior fosse um mal. Esta é a filosofia mercantilista, na qual exportar é bom e importar mau, o que conduz a um perigoso absurdo: só há exportação se houver importadores; por isso, é impossível todos os estados exportarem mais do que importam; esse tipo de fim só cria uma competição destrutiva, que leva à guerra - e a primeira metade do século XX prova-o. Espantosa é a dificuldade deste raciocínio simples e evidente criar raízes; só o facto de haver outros motivos menos fortes, mas mais bem sonantes e que criam melhor imagem superficial a quem os defende, pode resolver o espanto.
 
Ou seja, a ideia de “compensar” servirá mais a comunicação, do que um fim substantivo: quando as armas têm “má imprensa”, e é difícil a alguns políticos defender publicamente as Forças Armadas, talvez a única forma de se assumirem publicamente as necessárias aquisições de armas seja pela asso­ciação a coisas que não têm “má imprensa”, como o combate ao desemprego e o apoio à indústria nacional.
 
A “boa imprensa” das contrapartidas e a “má imprensa” das aquisições de armas são ideias formadas nos media, mais ou menos subtilmente, mas não se apoiam em análises de custos-benefícios, completas ou sérias; se existe algum debate, ou se dão voz ao contraditório, a discussão tende a ser pobre e sectária. Talvez isso seja uma inevitabilidade da pobreza intelectual dos media generalistas e de massas; mas não obsta a que em media diferenciados se analisem as contrapartidas com a profundidade e a clareza devidas.
 
Assim, um debate mais profundo revelará o absurdo na ideia moderna de contrapartidas: porque irá um fornecedor estrangeiro comprar a empresas portuguesas produtos que tinha previsto comprar a outras? Só se for forçado; mas então é provável que os seus custos aumentem ou a qualidade diminua, senão seria a sua primeira escolha. Há uma excepção: as beneficiárias portuguesas produzirem mais barato ou melhor do que as concorrentes preferidas pelo fornecedor, mas deste desconhecidas. Ou não as quer conhecer - e esta é uma ideia muito apreciada por todos aqueles que acham que “a concorrência estrangeira é mazinha para nós e que só nos compram se são forçados, pois sendo eles proteccionistas, evitam vir cá comprar”. Também é uma ideia conveniente para os proteccionistas (me too, para nos “defendermos”), e para quem acha que é o cliente que tem de ir à procura do fornecedor e que deve sujeitar-se à oferta. É uma excepção possível, mas rara; só que não pode criar-se uma política pública a favor de minorias em vez da maioria, pois o Estado serve os fins gerais. De facto, na grande maioria dos casos, as contrapartidas criam custos adicionais ao fornecimento (estudos confidenciais de governos europeus apontam para 10%, e este valor é correntemente aceite) ou reduções de qualidade, durante o fabrico, facilmente perceptíveis pelos gestores e fiscalizadores dos programas, para compensar os custos das contrapartidas.
 
Justamente porque há algo irracional em um fornecedor ter de adquirir produtos que não desejava no estado adquirente de armas, mesmo sujeito a contrato, e implicando custos acrescidos, o fornecedor tende a aumentar o preço (se houver pouca concorrência para ganhar um concurso), a evitar cumprir o contrato de contrapartidas (por exemplo, tornando materialmente impossível chegar a acordo com as potenciais beneficiárias) ou a incluir os custos das contrapartidas nos pagamentos do adquirente (como seja, inserir em revisões de preços as multas, como aumentos de custos de produção). Não custa imaginar que, face às possibilidades para contornar o espírito (ou até a letra) dos contratos de contrapartidas, os fornecedores as aproveitem racionalmente. Em todo o caso, nesse processo existem desperdícios, porque há numerosas pessoas em órgãos e serviços do Estado, das beneficiárias e do fornecedor que se ocupam das questões das contrapartidas e que podiam ter ocupações mais produtivas e construtivas para a sociedade; já para não falar de eventuais contenciosos judiciais.
 
Aceitar pagar mais por um sistema de armas, aceitar menor qualidade do que a procurada pelo cliente e especificada no caderno de encargos, e aceitar ocupar pessoas (ou os tribunais) em questões estéreis de contrapartidas, para tornar a aquisição aceitável pela opinião pública ou apoiar a indústria nacional, é um uso ineficiente e pouco transparente de recursos.
 
Quando o Estado português sofre de défice excessivo e a redução de despesas é um dever acrescido e um instrumento principal, acabar com as contrapartidas pode reduzir os custos das aquisições de armas, torná-las mais transparentes e pode reduzir despesas dos ministérios com atribuições neste domínio.
 
 
*      Engenheiro Construtor Naval, autor do livro “O Mercado Único da Defesa”, Prefácio, 2006.
 
 1 A ideia também se aplica no domínio civil, onde não se designa por offsets, mas barter ou countertrade.
 
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by COM Armando Dias Correia