1. Todos sabemos que as pessoas se movem, não em função da realidade, mas sim de acordo com o que dela percepcionam. Isto é, as movimentações políticas e militares, logo as movimentações estratégicas, dependem fortemente do que as pessoas julgam ser os factos, e não dos factos tal como eles são, que, em boa verdade, não parece possível que alguém chegue a vislumbrar.
Quando falamos em pessoas, referimo-nos, não apenas aos responsáveis políticos e militares a quem cabe avaliar a situação (leia-se a realidade) e, sobre ela, decidir, mas particularmente aos cidadãos comuns, cujos conjuntos se costumam designar por “opiniões públicas” - nacional, regional, de um continente (americana, europeia, etc.), mundial. As opiniões públicas representam hoje, em época de globalização de comunicação/informação e cultural, um poderoso factor condicionante das opções estratégicas, constituindo sempre o pano de fundo sobre o qual elas se desenrolam, cujos sentimentos e julgamentos podem acelerar ou travar a velocidade da sua execução. Assumem especial importância em certos tipos de conflitos, aliás muito frequentes na actualidade, nos quais são, simultaneamente, objectivo a atingir e teatro onde se desencadeiam as operações. Referimo-nos às campanhas de pacificação (presentemente designadas como de estabilização pós-conflito), assim como às campanhas de contra-subversão.
Mas as opiniões públicas não estão ausentes dos conflitos tradicionais, do tipo convencional, onde podem desempenhar um papel assinalável, como elemento de constrangimento ou de empolamento, e tiveram uma expressão acentuada durante a guerra-fria, na parte final da qual revelaram grande importância para o seu desfecho.
A percepção da realidade depende basicamente de dois factores, um de natureza tendencialmente subjectiva, outro de natureza tendencialmente objectiva. O primeiro diz respeito à idiossincrasia individual, onde avulta o respectivo posicionamento ideológico; o segundo resulta da percepção que cada um forma, a partir daquilo que os seus sentidos lhe revelam.
2. Os média transformaram-se num poderoso instrumento à disposição dos actores que têm interesse em produzir uma percepção da realidade que lhes seja estrategicamente favorável. Sejam eles económicos, políticos, militares ou de outra natureza. A utilização de operações mediáticas pode acentuar fortemente os traços de uma dada realidade que interessa explorar, dissimulá-la (por esbatimento de um ou vários dos seus componentes e empolamento de outros), e, no limite, é capaz de produzi-la, na medida que as pessoas só têm conhecimento daquilo que, directa ou indirectamente, percepcionam. É o caso da realidade virtual, cujos efeitos poderão corresponder aos de qualquer realidade objectiva, desde que os observadores se não apercebam da natureza da realidade que percepcionam.
Este facto mostra a importância estratégica das operações mediáticas, especialmente em tempos de globalização. O seu emprego terá sempre resultados de relevante impacto, em apoio dos vectores estratégicos tradicionais, entre os quais o uso da força militar. E os seus efeitos poderão ser de uma dimensão tal, que o vector informação (difusão de informação e de análise pelos média), por si só, tem condições para constituir o eixo sobre o qual se sustenta uma campanha.
O jihadismo de segunda geração, aparecido na guerra do Iraque sob o impulso e orientação de Zarqawi, reforçou claramente esta tendência, já bem visível no aproveitamento e exploração mediática das tácticas terroristas de primeira geração, da responsabilidade de Bin Laden. Reforço que foi obtido, graças à Internet. O laptop, para o líder jihadista táctico ou estratégico assumiu uma importância decisiva.
3. Numa campanha militar convencional, com a possibilidade dos contendores controlarem a zona de combate, torna-se mais difícil moldar, a partir do exterior, a percepção da realidade em termos operacionais, de modo a ela nos ser mais vantajosa. Os jornalistas correm perigos que, na maioria das vezes, não arriscam, pelo que, normalmente, aceitam ser integrados (embedded) nas colunas militares (portanto sujeitos a regras específicas) ou limitam-se a ficar em locais afastados da área onde se desenvolvem as operações de combate, portanto em piores condições para fazer reportagens em directo.
Neste caso, as operações mediáticas visam particularmente as opiniões públicas. No que se refere às opiniões públicas dos contendores, existe o objectivo de, através delas, atingir a vontade das direcções políticas opostas e reforçar a liberdade de acção da nossa direcção política. Relativamente aos aliados e neutros, visam transmitir-lhes a percepção de que caminhamos em direcção à vitória, com o fito de reforçar ou alcançar o seu apoio.
Num conflito assimétrico, tipo campanha de pacificação, onde as operações militares são de pequena envergadura, embora pontualmente culminem em acções de elevada intensidade, em que as “zonas de combate” são de reduzida extensão e temporárias, frequentemente não estabelecidas formalmente ou, sendo-o, só durante um curto período de tempo (chegando a ser apenas de algumas horas), as operações mediáticas, nesta situação, tendem a adquirir muito maior relevância, chegando mesmo a constituir-se no eixo de toda a acção estratégica, na medida em que as opiniões públicas não são apenas um ambiente de atrito para as operações militares. Elas constituem o objectivo que se pretende atingir, através da adesão das populações à vontade de quem as concebe - afectiva (pelos corações) e racional (pelas mentes).
4. Neste âmbito, a actividade de informações (intelligence) não se limita ao seu componente contra-informação - negação ao inimigo e a todos quantos possam influenciar as opiniões públicas de tudo quanto entendamos nos seja prejudicial, portanto tenha sido timbrado com o grau de classificação de segurança correspondente.
Neste domínio, o conhecimento por outrem daquilo que temos (o nosso potencial) e do que pretendemos fazer (das nossas possibilidades e/ou intenções), especialmente se forem elementos que possam sustentar o desencadeamento de operações mediáticas, esse conhecimento é sempre considerado como obstáculo aos nossos objectivos, sejam eles tácticos, operacionais ou estratégicos. Enquanto o segredo é a “alma do negócio” de quem prepara e executa manobras para vencer um conflito, quebrar esse segredo é a “alma do negócio” dos profissionais dos média, independentemente do seu posicionamento em relação aos actores em jogo.
Isto porque poderá existir divergência de entendimento sobre qual a atitude a tomar, em função do interesse público, já que se supõe ser este, também, o farol orientador dos jornalistas, assim como é para os militares. Enquanto da avaliação de uns (profissionais dos média), a divulgação de certos assuntos se imporá por razões de interesse público, a ponderação de outros (responsáveis pela condução das estratégias e das tácticas) poderá concluir pela exigência de não os revelar. Para os profissionais dos média, a dúvida sobre qual será a atitude mais conveniente complica-se, se, à revelia dos seus códigos deontológicos, agirem como actores interessados no resultado do conflito ou serem manipulados por tais actores.
Por norma, o “jogador”, seja ele táctico ou estratégico, deve encarar qualquer fuga de informação como matéria com fortes probabilidades de ser objecto de tratamento jornalístico, particularmente se for considerada “notícia”, não no sentido que lhe é dado na doutrina do processamento das informações (intelligence), mas com o significado que lhe dão os jornalistas. Isto é, há o convencimento de que merece ser publicada, em virtude do grau de novidade e da amplitude de interesse para os consumidores dos média. Será excepção a esta regra o caso de ser desejável promover uma “fuga” para os meios de comunicação (imprensa escrita, rádio, televisão ou Internet) de algo que nos seja vantajoso, o que, afinal, configura uma operação mediática ou, pelo menos, o seu início.
Neste contexto de segurança, insere-se a recente medida do Exército norte-americano no Iraque (em 19 do mês passado), determinando que os posts inseridos nos “milblogs” (blogues dos militares aí em serviço) devem ser submetidos a um oficial superior.
5. Poderá ser preferível, para responder a todo o tipo de cenários, desencadear operações mediáticas com vista a anular os efeitos negativos que a difusão de notícias e análises provoca, ou antecipar mesmo operações susceptíveis de originar percepções suficientemente fortes a nosso favor, com capacidade de contrariar previsíveis ou eventuais manobras mediáticas posteriores do adversário.
Toda a operação exige o conhecimento mais rigoroso possível da natureza do objectivo a atingir (no caso em apreço, os corações e as mentes cuja adesão está em disputa), das ameaças que sobre ele se podem desencadear (operações que influenciem contra nós as percepções que disputamos) e da forma como elas são concretizadas. Isto é, trata-se de averiguar as respostas às clássicas e tão referidas interrogações: quem, o quê, onde, quando e como.
Neste contexto, encontramo-nos no âmago do que constitui o domínio específico da actividade de informações (intelligence). Sem uma acção eficiente nesta área, as operações mediáticas que desencadearmos têm toda a probabilidade de serem votadas ao fracasso. Mas o mais grave é que elas se poderão voltar contra nós, produzindo percepções das opiniões públicas que muito prejudiquem os nossos objectivos. Tanto no caso de operações mediáticas activas ou punitivas (para mudar sentimentos e mentalidades que nos são desfavoráveis ou que o adversário conseguiu estabelecer), como no caso de operações mediáticas preventivas, com a finalidade de criar um ambiente de aceitação e adesão aos nossos objectivos, portanto de acomodação à nossa vontade.
6. Como mera pergunta de quem, como eu, considera fundamentais estas operações mediáticas, nomeadamente nos conflitos com que mais teremos de lidar, entre os quais avulta a subversão de âmbito global que está a ser empreendida pelos dirigentes, ideólogos e combatentes alqaedistas, a questão que gostaria de levantar relaciona-se com os protagonistas do trabalho de intelligence, indispensável para as planear e executar. Questiono-me, não como especialista de pesquisa e processamento de informações, que nunca tive oportunidade de ser ao longo de toda a minha carreira, mas como utilizador do produto acabado - as informações. Mais como quem indica os Elementos Essenciais de Informação que são necessários, do que quem leva a efeito as tarefas necessárias para lhes responder.
Bastará às lideranças rodearem-se de alguns “spin doctors”, que dominam os meandros da comunicação social e pouco ou nada sabem do planeamento e conduta das operações militares, para que este cada vez mais significativo, por vezes decisivo, vector de acção estratégica (a utilização estratégica dos média) atinja o nível necessário para concorrer para a vitória? Se for considerada esta como a melhor solução, não existe o perigo de serem desencadeadas operações mediáticas completamente virtuais, de tal modo desligadas da realidade objectiva, que abram vulnerabilidades que o inimigo facilmente aproveitará e explorará contra nós próprios?
7. Se parece pacífico que as operações mediáticas devam ser produzidas por estruturas em cuja constituição participem elementos especialistas em comunicação social, é muito discutível que sejam as mesmas estruturas a conduzir também todo o processo de obtenção e produção de informações que as sustentam. Isto só seria exequível, na condição dos especialistas em média serem simultaneamente especializados em informações (intelligence). Mas repare-se, não somente para o tratamento das notícias, também para a sua obtenção, o que significaria a duplicação do sistema de intelligence, para o que se relacionasse com as operações mediáticas. Além de prejudicial - juntando na mesma estrutura o processamento de informações com a sua exploração operacional - seria um notório desperdício de recursos escassos, como são os recursos humanos qualificados em intelligence.
O que parece mais aconselhável é separar os instrumentos e organismos com tarefas específicas de intelligence para os média, daqueles (instrumentos e organismos) que efectuam operações mediáticas.
Compreende-se a dificuldade de adoptar estas soluções, a nível da estratégia integral, ou seja, nos mais elevados escalões da direcção política, quando as operações mediáticas neles concebidas e concretizadas tiverem pouco a ver com o interesse nacional. O que, infelizmente, é o mais comum, pois tais operações tendem a cuidar mais da imagem pessoal de protagonistas políticos individuais ou a defender interesses partidários do que a pugnar pelo interesse nacional. Nestas circunstâncias, a experiência mostra que os spin doctors são capazes de se encarregar das tarefas apropriadas, embora nem sempre muito bem, como temos visto.
No caso de estarmos em presença de operações mediáticas ligadas ao interesse nacional, por conseguinte cooperando para a consecução dos objectivos nacionais concretos, tanto dos longínquos como dos actuais, então parece nítida a necessidade dos sistemas especializados na produção de informações tomarem as medidas que conduzam à sua obtenção (para o que devem dispor de pessoal com a correspondente especialização). Assim, as operações devem ser estudadas, planeadas e executadas, não por spin doctors recrutados em função de fidelidades discutíveis, mas por órgãos devidamente preparados e com pessoal especializado.
8. Nos vários patamares da estratégia militar, existem estruturas adequadas à produção de informações, assim como estruturas cuja função pode (e deve) absorver as operações mediáticas, seu estudo, planeamento e execução.
Quanto a estas (as que têm a missão de efectuar operações mediáticas) poderão situar-se em organismos que se designaram “de Acção Psicológica” (durante as nossas campanhas africanas mais recentes), cuja actuação abrangia a dos elementos CIMIC (de cooperação civil/militar), actualmente em uso em unidades militares de países da NATO.
Nos conflitos de baixa intensidade com picos de média ou elevada intensidade, que constituem a principal preocupação do Ocidente nos nossos dias, além do relevo que as operações mediáticas assumem no todo operacional, existe uma influência e dependência mútua especialmente marcante entre elas e as operações militares. Nestas condições, convirá ponderar se não será preferível que sejam os Departamentos de Operações a encarregar-se de tudo o que diz respeito à actividade operacional, embora dispondo na sua composição de uma área vocacionada para as operações mediáticas, guarnecida com os necessários especialistas. Se forem mantidos dois organismos distintos, um para as operações militares outro para as operações mediáticas, será indispensável a existência de um Adjunto do Comandante para as Operações, com a função específica de os coordenar.
Relativamente à actividade de informações relacionadas com as operações mediáticas, tudo aconselha que esteja integrada nos Sistemas de Informações já existentes, reforçando-os com especialistas em comunicação social, cuja ajuda será importante no processamento das notícias provenientes ou relacionadas com os média.
9. Em síntese, podemos acentuar o seguinte:
- A globalização da comunicação/informação exige a utilização das operações mediáticas pelos actores dos conflitos, como instrumentos orientados para alterar a relação de forças a nosso favor, através da modificação da percepção da realidade objectiva no sentido que nos é mais vantajoso.
- Tal como as operações militares, para que as operações mediáticas sejam estudadas, planeadas e executadas, precisam de ser sustentadas num trabalho eficiente de informações.
- Parece conveniente uma cuidadosa ponderação sobre qual deverá ser o organismo com a função de efectuar as tarefas correspondentes a esta finalidade, nomeadamente a pesquisa e tratamento de notícias, assim como a difusão de informações, além da formulação das medidas de contra-informação (segurança).
- Entre as hipóteses de solução, podemos considerar a existência de um departamento autónomo, onde se localizariam todas as tarefas necessárias ao desencadeamento das operações mediáticas, juntamente com aquelas que se relacionassem com as respectivas actividades de informações (intelligence).
- Mas não deve ser colocada de parte a modalidade clássica, encarregando o actual organismo vocacionado para as operações do tratamento de tudo quanto se referisse a operações, tanto das militares como das mediáticas. Assim como o órgão que trata das informações para as operações de combate passaria a absorver a parte relativa ao trabalho das informações vocacionadas para as acções a desenvolver através dos média.
* Conferência proferida em 8 de Maio de 2007, no Simpósio promovido pela AFCEA Portugal, sobre “Intelligence in Global Age”.
** Sócio Efectivo da Revista Militar.