Nº 2467/2468 - Agosto/Setembro de 2007
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Estado Português da Índia. Eventos da década de cinquenta anterior à invasão do Estado pelas Forças Armadas da União Indiana em 18 de Dezembro de 1961 - REMEMORAÇÃO PESSOAL.
Tenente-general
José Lopes Alves
A todos os que serviram nas Forças Armadas do Estado
Português da Índia e, em especial, nos Quartéis-Generais
do Comando das Forças Terrestres e do Comando-Chefe,
muitos, infelizmente, já desaparecidos, e ali viveram
os primeiros anos da ameaça efectiva da União Indiana.
1.  Preâmbulo
 
Dois livros e um “Ciclo de Conferências e Seminários”, este no qual participei como “moderador” duma das sessões, levaram-me a redigir estas notas com a finalidade de algo poder acrescentar ao conhecimento histórico geral do período de meados do século XX em que se deu a agressão indiana aos então territórios portugueses da costa ocidental da Península do Hindustão - Goa, Damão, Dadrá, Nagar Avelly e Diu - desde já admitindo que outros com elementos de informação dos âmbitos geopolítico e geoestratégico eventualmente mais pormenorizados e precisos, que eu não consegui reunir, pudessem fazê-lo melhor.
 
Contém este relato, no entanto, testemunho sério e ponderado baseado em fontes oficiais e na experiência que, então, como parte da “equipa expedi­cionária”, pude colher.
 
Foi o primeiro livro o intitulado “Fim do Estado Português da Índia - Um Testemunho da Invasão”, do Tenente-General Francisco Cabral Couto, de primoroso e pormenorizado conteúdo e aliciante leitura, lançado em De­zembro de 2006, cujo texto nos faz penetrar esclarecidamente naquelas então nossas parcelas do Hindustão, cuja junção à Coroa Portuguesa, bem como de outras que se lhe seguiram, foi iniciada em Goa em 15 de Novembro de 1506 pelo grande navegador, estratega e destemido combatente D. Afonso de Albuquerque, localmente e no Mundo ainda hoje como tal cantado e reconhecido.
 
Foi o “Ciclo de Conferências” subordinado ao tema “Revisitar Goa, Damão e Diu”, que em boa hora a Direcção da Liga dos Combatentes organizou no quarto trimestre também do transacto ano de 2006 com a louvável finalidade, entre outras, de incrementar “o estudo da História, do relacionamento desta com Poder Político e inerentes consequências para a Nação” e, finalmente, no dizer do Tenente-General Chito Rodrigues, Presidente da Direcção da Liga, “para que os jovens portugueses deste conturbado Mundo em que vivemos saibam os feitos dos seus maiores e deles possam orgulhar-se, mentalizando-os para, nos diversos domínios, os prosseguirem”.
 
E foi o segundo livro o que tem por título “Invasão e Ocupação de Goa - Comentários da Imprensa Mundial”, editado em 1962 pelo então Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, volumoso repositório de artigos publicados imediatamente antes, durante ou logo a seguir à Invasão em órgãos da Imprensa nacional mas, fundamentalmente, de outros países, cujo contexto, sem abstracção do possível interesse político posto na sua selecção por quem o elaborou, expressa enorme conjunto de apreciações pessoais ou de instituições literárias pejadas de informação geopolítica e geoestratégica que, de certo modo, ajuda a esclarecer e completar o que no livro do Tenente-General Francisco Couto se afirma.
 
Foram efectivamente estas fontes e os comentários que com base nelas redigi que me levaram a pensar na eventual utilidade de me debruçar sobre a situação política e estratégica e sobre o empenhamento das nossas Forças Armadas para fazer face às permanentes ameaças da União Indiana no período de meia dúzia de anos que antecedeu a invasão, após ter obtido da Inglaterra em 15 de Agosto de 1947 a sua independência, dois anos após o termo da Segunda Guerra Mundial.
 
Decidido em conformidade, referir-me-ei fundamentalmente aos acontecimentos de meados de 1955 a meados de 1957, período da minha comissão de serviço de dois anos no Teatro de Operações de Goa, apontando desde já que foi no último trimestre daquele primeiro ano e por todo o ano de 1956 que se verificaram as principais e mais ruinosas acções de guerrilha por parte de elementos indianos infiltrados nos territórios, concretizados em assaltos a postos da Polícia, da Guarda Fiscal e a destacamentos militares mais isolados, em sabotagens nas vias de comunicação, estradas e caminhos de ferro, em explorações mineiras e, embora raros, em ataques a entidades com destacada preponderância no sistema económico do Estado.
 
Antes, porém, de continuar, seguindo na sombra os bons mestres de História e as regras para o apuramento e conclusão do seu conhecimento, que procurarei ser claro, preciso e conciso nos elementos compilados e nas memórias e congeminações reunidas, tudo rodeando do espírito de verdade e honestidade que, para ser válido, esse conhecimento exige. Dirigir-me-ei nomeadamente aos acontecimentos vividos no período de meados de Outubro de 1955 a fins de Setembro de 1957, durante o qual fiz parte do Quartel-General das Forças Terrestres (FTEI), até meados de 1956, primeiro, e do Quartel-General do Comando-Chefe (FAEI), até fins de Setembro de 1957, a seguir, data em que terminei a comissão de serviço e regressei à Metrópole. Ficaram, então, para trás os temores, os receios e os sacrifícios feitos ao tempo numa parcela do glorioso “Império” dos séculos XV e XVI para responder à troante potência vizinha que se assumira líder da libertação e independência dos países asiáticos e africanos ainda sujeitos, como propalava, a “degradante colonização europeia”.
 
 
2.  Ambiente Internacional Envolvente
 
Aspectos Gerais
 
Como as Guerras Napoleónicas e a Primeira Guerra Mundial no seu tempo, é lugar-comum o conhecimento de que a Segunda Guerra Mundial de 1939-1945, que a sangrenta Guerra Civil de Espanha, de 1936 a 1939, antecedeu e seria em muitos aspectos valioso e experimental cadinho, foi o germe explosivo e sangrento do período de guerras irregulares, de instabilidade e de pressão política, estratégica e militar de âmbito global que, uma vez implantado, deu origem a série de eventos de todos os domínios, a um Mundo com características que anteriormente não exibia e que, nas suas demoradas, mas consistentes, reconstrução e evolução material e humana, voltaria a assumir aspectos políticos e estratégicos próprios e preocupantes que encaminharam os países e os blocos de estados para novos domínios.
 
Na realidade, surgindo de um tempo em que o marxismo-leninismo-estalinismo ditatorial de Leste e o capitalismo conservador e democrático do Ocidente procuravam, mutuamente, sobrepor-se para lá das derrotadas po­tências do Eixo - Alemanha, Itália e Japão - esse novo Mundo desenvolveu desde logo no seu interior um terceiro em que dois blocos político-militares, o Ocidental e o Oriental, se destacaram sob a supremacia das duas superpotências, os Estados Unidos da América e a então Rússia Soviética, respectivamente. Surgiu, então, longo período de Guerra-Fria, assente na dissuasão que os poderosos meios nucleares que essas potências, a Inglaterra e a França exibiam, e se estenderia até 1986, o ano em que Michael Gorbachev conseguiu provocar a autodestruição do seu governo russo, da ideologia que o informava e da sua influência em todos os países afins. Como resultado mais clamoroso da derrocada comunista, que iria revelar-se também um perigo como o demonstra a presente situação global, actual, a até então dividida hegemonia internacional que sustentava o equilíbrio entre os estados ficou apenas entregue à Grande Potência Americana do Norte, a qual se tornou assim, pelo seu imenso e afirmado poderio industrial, económico e militar, a única superpotência dominante no Globo.
 
Na sua extensão às terras, águas e ares de todos os continentes, a Segunda Guerra Mundial influenciou política e estrategicamente, é facto, como maior ou menor incidência, a generalidade dos países, raças e religiões do Globo, nela tendo vertido o seu sangue tanto o homem europeu e americano, do norte e do sul, como o asiático, o africano e o australiano, de países mais ou menos livres e evoluídos e de países subdesenvolvidos, alguns destes ainda sob domínio de países europeus. A “praxis” bélica, a convivência e o espírito de coesão e de luta conjuntamente vividos nos campos de batalha e a renascida ancestral convicção de que todos os homens e mulheres eram na verdade iguais e importantes face aos objectivos perseguidos, desenvolveram ou reforçaram ideias de nacionalismos adormecidos e de desejos de libertação dos países dominados que as técnicas da subversão e da revolução marxista-leninista-maoista cristalizaram e que, pelos fins da guerra, explodiram. Surgem, assim, em muitos territórios e populações os proclamados “ventos da história” que acabariam por soprar com êxito em todas as comunidades do Globo ainda mais ou menos submetidas.
 
É neste âmbito, nas décadas a seguir a 1945, que surgem e se afirmam as subversões e revoluções regionais da Índia, do Vietname, da Argélia, de Angola, da Guiné, de Moçambique e doutros países asiáticos e africanos, obrigando os imperialistas países europeus, após guerra irregular mais ou menos prolongada e sob pressão e aplauso de países da órbita comunista e de muitos ocidentais, como os Estados Unidos da América, a conceder-lhes a almejada libertação.
 
O “Vento” na União Indiana
 
A então designada União Indiana, com populações de maioria hindu, e o Paquistão, com populações de maioria muçulmana, foram, a nível global, dos primeiros países a beneficiar da atenção libertadora do Reino Unido, em Agosto de 1947, para o que, de facto, muito contribuíram a intranquilidade e a resistência ao dominador fomentadas por Ghandi, Nehru e outros caudilhos indianos e o reconhecimento do esforço despendido pelos seus naturais ao lado dos Aliados nos diversos teatros de operações da Segunda Guerra Mundial, esforço que se impunha considerar e retribuir.
 
Em consequência, ficaram então a subsistir apenas na Península do Hindustão, na costa oriental, os estabelecimentos franceses de Pondichery, Karical, Jannon, Mahé, Surrate e Chandernagor do século XVII, confirmados por tratados de 1814 e 1915, na costa ocidental o Estado Português da Índia, constituído pelos distritos de Goa, Damão, Dadrá, Nagar Avelli e Diu, com a superfície total de 4 194 quilómetros quadrados e a população de 700 000 habitantes, entre os quais cerca de 250 000 católicos, e, a norte, nas vertentes da cadeia do Hymalaia, alguns territórios fronteiriços desde sempre recla­mados pela China Popular. E ficaram a subsistir na eternidade da História entre as populações, lembre-se com veneração, as memórias de um Afonso de Albuquerque, o grande conquistador e estratega militar e político que no primeiro quartel do século XVI estabeleceu Portugal no Oriente, e o jesuíta espanhol S. Francisco Xavier que ao serviço do nosso país e do Mundo estendeu àquelas áreas, à China e ao Japão o credo cristão.
 
 
3.  Eventos Subsequentes
 
Pressões do Governo da União
 
Logo após ter obtido a independência a União Indiana começou a fo-mentar, com intensidade crescente, por intermédio de exaltados governantes e chefes de partido político, com destaque para Nehru, a saída da Península dos dois países europeus, Portugal e França, que nela ainda permaneciam. Utilizando grupos de agitação interna e realizando sessões no seu Congresso em que peroravam, nomeadamente sobre a ideia, os deputados comunistas e se dava ampla divulgação aos ditames da Conferência dos Países não Alinhados, constituída fundamentalmente por representantes de africanos e asiáticos e de que Nehru era membro influente, depressa se projectou internacionalmente a existência nas costas do Oceano Índico de resquícios de colonialismo que havia que liquidar.
 
A Assembleia Geral das Nações Unidas, na qual tinham assento todos aqueles países, tornar-se-ia também logo a seguir séria e autorizada propa­gandista da situação, desde logo exigindo dever ser mantida informada do que se passava nos territórios franceses e portugueses da Península e recomen­dando, agressivamente, que fossem aí satisfeitos os desejos do Governo Indiano e, alargando geograficamente o texto da moção, que fossem igualmente tratados com urgência casos semelhantes que ainda se verificavam noutros continentes. Como consequência imediata, a França cedeu em curto prazo aos desejos do Pandita Nehru, entregando ao Governo Indiano a administração dos seus territórios.
 
Três anos depois da independência, em 1950, na sequência da saída dos franceses da Península, Nehru exigiu que Portugal lhes seguisse o exemplo quanto aos três distritos do Estado Português da Índia, clamando que os mesmos representavam, “uma verruga no território indiano que deteriorava o seu belo rosto”.
 
Atitude do Governo Português
 
Como é conhecido, mantendo-se intransigentemente na orientação política e estratégica que desde sempre vinha proclamando perante os outros países, quer a nível bilateral e multilateral, quer perante as organizações interna­cionais, como a ONU, a Organização da Unidade Africana (OUA) e outras, Portugal, seguindo a doutrina expressa nos seus Diplomas Fundamentais, declara em resposta que o País é uno e indivisível” desde o Minho a Timor, mas que se encontra disponível para desenvolver e manter relações de boa vizinhança com todos os estados com os quais tinha fronteiras desde a Europa à longínqua Oceânia, prosseguindo sereno na sua acção de, conforme as suas possibilidades, promover o progresso de todas as populações que tinham a Bandeira das Quinas como seu símbolo.
 
A União Indiana, como seria de esperar, não aceitou esta posição do Governo Português e começou a fomentar acções de “satiagrahas”1 nos distritos portugueses da Península do Hindustão, conjugando-as com pequenas acções de força e a fomentação de incidentes junto das fronteiras dos três distritos, particularmente no de Goa. Neste distrito, em consequência dessas acções que apenas atingiram algum vulto na Imprensa internacional, a acção das nossas forças de polícia e militares levou à detenção de alguns daqueles elementos subvertidos que foram de imediato encerrados no Forte da Aguada, a histórica fortaleza do Estado, então transformada em prisão, que controla por norte a entrada do Rio Mandovi. E, não se detendo na sua oposição ao “esbulhamento” territorial pretendido pela União Indiana, o Governo Português começa a considerar o reforço imediato das escassas forças do Exército e da Marinha que guarneciam o território do Estado, atitude que o governo indiano critica e explora, diga-se com grande aplauso internacional, em nosso desfavor.
 
Como viria a lume meses mais tarde durante as campanhas de Contra-Subversão em Angola, na Guiné e em Moçambique, iniciadas em 4 de Fevereiro e consolidadas em 15 de Março de 1961 naquela primeira província, o clima internacional que reinava relativamente à política ultramarina portuguesa era de marcada oposição quase generalizada, surgindo países, como os da órbita da URSS e até “ocidentais”, entre estes a Espanha e a Inglaterra, dispostos a aproveitar os “cacos” que resultassem do descalabro colonial português para reforçarem, nomeadamente em África, a sua influência no Globo. Os primeiros, então, agindo pacientemente, sem pressa, geralmente através dos países apaniguados, iam “abrindo os cordões à bolsa”, capitalizando sobre a possibilidade de acesso mais tarde consentido. Foi factor muito importante, este, no rol das dificuldades que durante treze ou catorze anos se levantaram, de facto, ao empenhamento natural das nossas Forças Armadas nos então territórios de Além-Mar.
 
 
 
Ocupação do Enclave de Nagar-Avelly
 
Perante a teimosa permanência de Portugal na sua posição, em 1954, concretizando atitude de força já, de resto, muito anunciada, uma força de polícia da União Indiana invade e ocupa o enclave de Dadrá e Nagar-Avelly, dependente do distrito de Damão, ocasionando a morte de um polícia português, a que se seguiu a integração oficial do pequeno território no todo territorial indiano.
 
Reagindo de imediato no exterior à ocupação do seu território, Portugal fez queixa ao Tribunal de Justiça Internacional com sede em Bruxelas, o qual, pressionado pelos interesses políticos de vários países, entre os quais alguns “amigos” do Ocidente que não aceitavam, embora não a hostilizassem abertamente, a nossa posição, só em 12 de Abril de 1960, portanto seis anos depois, viria a dar uma sentença, “mais diplomática do que justa”, diz um especialista de Direito. Na realidade, é por ela “reconhecido a Portugal o direito de passagem dos seus cidadãos e funcionários entre Damão e aquele território, mas, prejudicando claramente o uso desse direito, é paralelamente reconhecido à União Indiana o de se opor à passagem de tropas”, ou seja, Portugal continua a deter a soberania sobre os territórios, mas esta não pode ser efectivamente exercida se houver, ou o governo indiano os eleger ou inventar, motivos para tomar essa atitude. Tratou-se duma sentença “sobre o arame” que não contém a devolução do território e que mais beneficia para futuro a União Indiana.
 
Explorando a seguir o cometimento da ocupação de Dadrá e Nagar-Avelly, Nehru ameaça marchar pacificamente sobre Goa em 15 de Agosto de 1954, dia do sétimo aniversário da independência da União. Seria retumbante número do programa da comemoração.
 
O governo do Estado, alertada a Metrópole, tomou as disposições de segurança convenientes e possíveis que a ameaça exigia, a qual, no entanto, se saldaria por muito pequena aderência de indianos sem força reivindicativa e seria apenas razão para engrossar de uma vintena de detidos o efectivo de presos do Forte da Aguada.
 
Insistência do Governo Indiano e Firmeza do Governo Português
 
A pressão regional e internacional da União Indiana iria, no entanto, prosseguir. Em meados de 1955 recomeça a invasão de “satiagrahas”, com alguns focos de resistência passiva no sistema utilizado por Ghandi contra a ocupação inglesa antes da concessão da independência, são incrementados os ataques a postos da Polícia e da Guarda Fiscal junto à fronteira ou no interior do território, a habitações de naturais tidos por mais ligados a Portugal e a realização de emboscadas e sabotagens, situação que viria a atingir os seus maiores valores durante o ano de 1956.
 
O governo português, que já havia iniciado o reforço da guarnição militar do Estado em 1954, acelera e aumenta esse reforço no ano seguinte com unidades de Infantaria, Artilharia, Cavalaria (Reconhecimento), Engenharia e Artilharia e pessoal de Estado-Maior e doutros Serviços para os quartéis-generais do Comando das Forças Terrestres (FTEI) e do Gabinete do Comando-Chefe (CCFAEI). É do mesmo modo reforçado em pessoal, equipamento e navios o contingente naval em serviço no Estado. A Força Aérea, como do antecedente, não seria aí instalada, dispondo apenas de um oficial para aconselhamento aéreo junto do Gabinete do Comando-Chefe.
 
Comandos e Unidades em fins de 1955
 
Deste modo, pelos fins do ano de 1955, o efectivo total das Forças Armadas do Estado Português da Índia (FAEI), incluindo a Polícia de Segurança (PEI), 600, e a Guarda-Fiscal (GFEI), 250, naturais e metropolitanos, era de cerca de 8 000 homens, com 7 000 para as Forças Terrestres e 250 para as Forças Navais (FNEI). A representação do ramo aéreo estava a cargo do oficial-adjunto já referido.
 
A discriminação geral das Forças após os citados reforços, com os quais se entendeu satisfazer as necessidades então emergentes de acordo com os quadros orgânicos vigentes para todos os comandos ultramarinos, ainda que adaptados às particulares locais, era a seguinte:
 
a) O comando superior das Forças Armadas (CCFEI) era exercido pelo Governador e Comandante-Chefe, que dispunha para o exercício das suas funções de comando de um Gabinete Militar constituído por Chefe do Estado-Maior (o então Major CEM Hermes de Araújo Oliveira), um Adjunto do Exército (Capitão c/CGEM), um Adjunto da Armada (1º Tenente de Marinha c/CGEM) e do Adjunto da Aviação.
 
b) Forças Navais (FNEI) - o comando superior, embarcado a bordo do Aviso de 1ª classe “Afonso de Albuquerque”, era exercido por um Capitão-de-Mar-e-Guerra e dispunham, para além daquele navio, de 3 Lanchas.
 
c) Forças Terrestres (FTEI) - sob o comando do Brigadeiro Monteiro Libório, constituíam os comandos e unidades seguintes:
 
1) Quartel-General, com Chefe do Estado-Maior (Major CEM Jaime Silvério Marques), Subchefe do Estado-Maior (Capitão c/CEM, Vieira de Araújo), Repartição-Geral, Secção de Informações e Operações, Secção de Logística (a cargo do Subchefe EM), Serviços de Saúde, Material, Intendência e Contabilidade (chefiados por capitães), Comando de Artilharia (Major de Artilharia), Comando de Enge­nharia (Capitão de Engenharia), Companhia de Comando e Serviços (naturais do Estado) e Pelotão de Polícia Militar;
 
2) Em GOA
       - Batalhão de Caçadores Nº 1 (Moçambique),
       - Batalhão de Caçadores Nº 2 (Angola),
       - Batalhão de Caçadores da Índia,
       - Batalhão de Caçadores Vasco da Gama,
       - Comp de Caçadores Independente Nº 8,
       - BatArt 8,8 cm (Angola),
       - BatArt 8,8 cm (D. João de Castro),
       - BatArt 8,8 cm (Santarém),
       - Bat AAA 4 cm (Bogmaló),
       - 4 Esquadrões de Reconhecimento,
       - Comp de Engenharia de Moçambique,
       - Comp de Sapadores,
       - Destac de Engenharia da Índia,
       - Pelotão de Transposição de Cursos de Água,
       - Destacamento de Transmissões.
3) Em DAMÃO
       - Companhias de Caçadores,
       - BatArt 8,8 cm.
4) Em DIU
       - Companhia de Caçadores,
       - BatArt 7,5 cm/11,4 cm.
 
O armamento ligeiro e o equipamento destas unidades eram os que estavam em uso nas unidades da Metrópole, dispondo o BCaç Índia, sediado em Velha Goa, de 1 Pelotão de Viaturas Bren.
 
 
 
4.  Reforço do Pessoal dos Comandos
 
Considerações Gerais
 
Do reforço de pessoal atrás referido, parte foi preparado e efectivado em maior volume em meados de 1955 e nele se englobavam três capitães de Administração Militar e dois de Infantaria destinados a chefiar Serviços do Quartel-General das FTEI e três, também de Infantaria mas com o Curso Geral de Estado-Maior, destinados a chefiar as Secções de Infor­mações, Operações e de Logística do mesmo QG e a exercer as funções de Adjunto do Gabinete Militar do Comando-Chefe. Além do encargo do serviço geral de Estado-Maior correspondente, os três últimos oficiais tinham por missão adequar as funções e a documentação das Secções e Serviços ao modelo “americano”, pela primeira vez completamente ministrados no Curso de Estado-Maior do Instituto de Altos Estudos Militares no ano lectivo de 1954-1955. A comissão de serviço dos três oficiais corresponderia ao estágio de dois anos então obrigatório para ter acesso, se considerados aptos, à frequência do Curso Complementar2.
 
As necessidades no Estado impunham marcha imediata dos oficiais mobilizados, estando previsto o seu deslocamento por via aérea. No entanto, o período necessário às vacinações (eram cinco ou seis vacinas) não o permitiam, sendo então relegados para a via marítima, mais concretamente para o navio mercante “Moçâmedes”) que, armado em transporte de tropas, com Capitão de Bandeira (coronel do Exército), largaria de Lisboa na segunda quinzena de Setembro. Concluir-se-iam durante a viagem as vacinações ainda necessárias, tendo embarcado para o feito uma equipa do Serviço de Saúde chefiada por um capitão-médico.
 
Viagem para Goa (Notas de um “Diário”)
 
“Em 25 de Setembro de 1955, um domingo, pelas dez horas da manhã, o “Moçâmedes” largou do cais de Santa Apolónia, em Lisboa, e, após longos dezanove dias de percurso, seguindo a rota do Canal de Suez, aportou a Mormugão ao alvorecer de 14 de Outubro. Além dos oficiais para os comandos, seguiam a bordo dois capitães de Infantaria e alguns oficiais subalternos milicianos para rendições individuais, uma Bataria de Artilharia de 8,8 cm com pessoal e material, equipamento de Engenharia, víveres, diversos tipos de munições e outros artigos de reabastecimento.
 
A viagem, sob tempo geralmente chuvoso e por mar encapelado, decorreu sem problemas de maior. No último troço do Mediterrâneo, no entanto, antes da chagada a Alexandria, a agitação das águas adquiriu maior amplitude, navegando o navio em permanente ondulação e em “parafuso”, com incli­nações que em certo período atingiram os 30 graus.
 
O navio entrou no porto ao princípio da manhã, sob sol escaldante, mas não acostou, aguardando a formação do “comboio de navios” em que seria incorporado para a travessia do Canal de Suez. Todavia, logo que lançou ferro, foi rodeado por dezenas de pequenos barcos e jangadas a partir dos quais enxames de andrajosos vendedores ofereciam com grande alarido os produtos locais de artesanato. A questão da Índia Portuguesa já fazia, porém, parte do quotidiano universal. Uma hora depois, vendo que o navio era português e transportava pessoal militar para Goa, formou-se no cais mais próximo, em poucos minutos, ruidosa manifestação de maltrapilhos que, empunhando berrantes cartazes escritos em inglês, nos acusavam de colonialistas, assassinos e doutras péssimas qualidades. Só então se soube, tinha havido dois dias antes no território goês nova tentativa de invasão de “satiagraha´s” que, como as anteriores, tinha redundado em fracasso, a ela se devendo certamente todo aquele aparato contra nós.
 
A manobra do navio logo a seguir para ocupar o seu lugar no “comboio” fez desistir a quase totalidade da turba, continuando alguns isolados a gritar impropérios contra Portugal.”
 
“Quando, percorrido o Mar Vermelho, se navegava já bem ao largo dos altos e negros rochedos de Aden, em pleno Oceano Índico, alguém lembrou ao ver uma fragata que se dirigia aquele porto que a União Indiana, sabendo por certo que se aproximava do território goês um navio com tropas, poderia tentar deter o “Moçâmedes”, tomar conta dele ou, mesmo, afundá-lo com a sua carga, mas que os obuses amarrados na coberta poderiam constituir meio de defesa apreciável. Todavia, a improbabilidade de tal gesto da União Indiana era tão certa como o da possibilidade de defesa do navio à custa dos meios de Artilharia “plantados” e disfarçados na coberta: as munições que permitiriam a imaginada reacção tinham sido “cientificamente” empilhadas no mais fundo dos porões, jazendo por debaixo de toda a carga”.
 
“Mas, um outro evento deu azo a combater a monotonia da viagem na qual, para além da leitura, dos jogos de cartas e da observação dos “peixes voadores” que, às centenas, se elevavam em extensos voos à frente da quilha do navio, nada mais se manifestava. Foi o facto de o comandante do navio e o coronel “Comandante de Bandeira”, que geralmente tomavam as suas refeições no gabinete do primeiro, terem numa das refeições em que o calor era mais sufocante mandado pôr a mesa do repasto num recanto da coberta onde se sentia leve brisa, e colocar uma grande Bandeira Nacional a servir de cobertura contra o sol que escaldava. O acto teve repetição, mas não passou daí: dois dos capitães que iam a bordo, após reunião com os outros oficiais, fizeram ver ao “Comandante de Bandeira” tratar-se de atitude inadequada, o que ele de imediato aceitou, fazendo recolher a Bandeira.”
 
A Chegada (continuação do mesmo “Diário”)
 
“Após sete dias sobre as águas mais ou menos calmas do Índico, na madrugada de 14 de Outubro, uma sexta-feira, começou a desenhar-se ao longe a linha baixa da costa goesa, o morro elevado da ponta da península de Mormugão e, muito ao longe, a massa escura da cordilheira dos Gates Ocidentais. E como o crepúsculo matutino rapidamente desapareceu, sur­giram logo a seguir longas filas de coqueiros debruçados sobre a água e, à direita da larga boca que era foz do Rio Zuári, extensa praia que marcava a margem esquerda da foz do Rio Mandovi, o rio que, poucos quilómetros acima, banhava Pangim. Não pôde então deixar-se de pensar que por meados de 1492, portanto cerca de quatro séculos e meio antes, os portugueses de Vasco da Gama que chegaram à Índia terão desfrutado sensivelmente idêntico panorama paisagístico.
 
Acocoradas no fundo do morro da península, batido pelas águas do Oceano e do Rio Zuári, as instalações do porto de Mormugão, com dois navios acostados a carregar minério sob o olhar parado de dezenas de naturais vestidos de branco sentados ao longo do muro do cais e das encostas pedregosas à retaguarda. À entrada da larga baía, quais fantasmas na manhã de céu cor de chumbo, as pontas dos mastros de quatro ou cinco cargueiros de minério japoneses que durante a Segunda Guerra Mundial haviam sido afundados pelas tripulações para não caírem sob a alçada de navios de guerra ingleses que os esperavam ao largo, fora das nossas águas territoriais, e, ainda, à esquerda, junto ao cais de D. Paula, sua base permanente, o aviso “Afonso de Albuquerque” e a lancha armada que o apoiava.”
 
(O Tenente-General Cabral Couto descreve no seu livro a acção destes navios nesse mesmo local durante a invasão pelas forças armadas indianas, bem como a das duas lanchas que se encontravam em Damão, uma, e em Diu, a outra).
 
“Concluído, pelas onze horas, o desembarque do pessoal, seguiu-se o seu transporte imediato para Pangim pela estrada estreita e mal alcatroada que conduz à rampa de Cortalim (Kortali) sobre o Zuari onde, num velho batelão, se fez o transporte conjunto para a rampa de Agassaim, na outra margem, de militares, civis de ambos os sexos, viaturas, animais de carga e de reveren­ciadas vacas, consideradas animais sagrados.. O calor, associado a alto grau de humidade, era sufocante, tornando pouco aprazível o uniforme Nº 1, da Metrópole, que os expedicionários do nosso tipo tinham de continuar a usar. Prosseguindo depois entre coqueiros, cruzeiros pintados de branco e casas miseráveis, depressa se atingiu a aldeia de Goa Velha e o planalto de Bambolim onde, em edifício moderno, se situavam a estação radiotelegráfica e o posto da Rádio Naval que permitiam a ligação com o exterior.
 
Pangim, a capital do distrito e do Estado, surgiu logo a seguir, um emaranhado e casas térreas e de primeiro andar acachapadas em torno do Altinho, bordando a margem esquerda do Rio Mandovi. Coqueiros, mais coqueiros e mangueiras ao longo de ruas estreitas, por todo o lado, o Palácio do Hidalcão, o Forte dos Reis Magos e a Fortaleza da Aguada, estes na outra margem do rio, a destacarem-se. Embora se fizesse já uma ideia do que iria encontrar-se, estranhou-se a real pobreza duma colonização de quase cinco séculos. Todavia, à medida que os dias foram decorrendo esta impressão da chegada foi-se desvanecendo, tornando-se evidente a presença histórica de Portugal nas instituições, nos monumentos, na língua, na cultura, nos usos e costumes de grande parte da população e nos diversos aspectos do relacionamento, em especial entre os luso-descendentes, cuja vida pessoal, familiar e comunitária, muito conservadora, fazia lembrar por vezes o comportamento vigente na Metrópole nos princípio do século XX e, mesmo, dos fins do século anterior.”
 
Apresentação e Instalação (ainda o mesmo “Diário”)
 
“A apresentação militar da ordenança foi feita logo a seguir à chegada e prosseguiria depois perante os Serviços de interesse na segunda-feira ime­diata, sempre sujeitos à pavorosa “armadura” do uniforme metropolitano, que era obrigatório, na realidade desajustado ao cálido e húmido clima local de todas as horas. Entretanto, o subchefe do quartel-general empenhava-se em conseguir o alojamento possível para os oficiais recém-chegados, tarefa, no entanto, sem possibilidades de resolução adequada imediata uma vez que os sucessivos reforços de pessoal metropolitano tinham aumentado em muito a população militar da cidade e de Velha Goa, ocupando todas as instalações. O Destacamento de Engenharia da Índia, comandado pelo activo Capitão Medeiros, que era também o comandante da Engenharia do quartel-general, havia-se até então desdobrado em esforços para construir, limpar e “remendar”, do ponto de vista de obras e instalações o que fosse possível, sem o conseguir. Tinha em construção a nova Messe de Oficiais e outras depen­dências no Altinho - a colina, por elevada, mais fresca da cidade - mas os meios de pessoal técnico, material e equipamento disponíveis eram escassos e não fornecidos com regularidade e os trabalhadores naturais contratados para as diferentes obras não obtinham adequado rendimento do seu esforço.”
 
“A solução final, de momento, foi conseguida à custa de uma ou outra “república” que alguns oficiais já tinham fundado e do aluguer de alguns quartos em casas particulares, como a de um casal de holandeses na praia de Caranzalém, junto à estrada para D. Paula, com muito deficiente e mal equipada casa de banho colectiva, água suja e de vasilha, camas desventradas, sem uma cadeira sequer e com mosquiteiros, artigo indispensável para a região e época do ano, cheios de buracos por onde se infiltravam resistentes e activos mosquitos do tamanho de moscas anafadas.
 
Esta situação prolongar-se-ia durante algumas semanas após as quais, tendo carregado minério, o ”Moçâmedes” levantou ferro de regresso à Lisboa, levando a bordo alguns oficiais que tinham terminado a comissão de serviço, o que permitiu libertar alguns quartos no edifício de alojamentos anexo à messe existente. Chamava desde logo a atenção à retaguarda deste edifício de rés-do-chão o ribeiro reduzidíssimo que ali corria, no qual lutavam permanentemente pela sobrevivência dezenas de enormes ratazanas, peixes e grande número de cobras de todos os tamanhos e feitios.”
 
 
5.  Cumprimento da Missão
 
Organização das Unidades e Trabalho de Estado-Maior
 
Já se referiu que uma das razões porque foram mobilizados e destacados para Goa em 1955 três oficiais que tivessem terminado nesse ano o Curso Geral de Estado-Maior, perfeitamente compatíveis com os quadros orgânicos em vigor no Estado, foi, para além das necessidades operacionais que se haviam tornado imperativas pelas ameaças da União Indiana, a de adequar o funcionamento do quartel-general ao modelo tipo “americano” (TA), cujo ensino completo havia sido pela primeira vez ministrado nesse Curso do ano lectivo de 1954-1955 e exemplificado apenas nos segundo e terceiros anos dos Cursos de Estado-Maior já em andamento no Instituto.
 
Na realidade, como é conhecido, durante e após o termo da Primeira Guerra Mundial, em que participou, o Exército Português viveu mais ou menos “encostado” às doutrinas de organização, métodos de ensino, planeamento e emprego bélicos em uso no Exército Francês (modelo francês) temperadas, nomeadamente no domínio das Informações, pelo modelo inglês, assim se mantendo até ao termo da Segunda Guerra Mundial, ainda que também atento à “praxis bélica” do Exército Alemão. Tal era devido ao empenhamento conjunto verificado naquele primeiro conflito, em que participámos, e à sucessiva frequência de cursos nas escolas dos dois Exércitos Aliados por alguns dos nossos oficiais, que a seguir davam conta dos conhecimentos obtidos.
 
Uma vez terminada a Segunda Guerra Mundial, a influência então exercida pelas doutrinas de guerra americanas na maior parte dos exércitos ocidentais, a inserção do nosso País na Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), o recebimento por compra ou dádiva de materiais e equipamentos ingleses e americanos experimentados e utilizados naquele conflito e a frequência acelerada, mantendo-se as ligações anteriores, de escolas do Exército Americano, quer entre as suas forças de ocupação na Europa, quer no próprio território americano, originaram entre nós sistemas de administração do pessoal, de instrução, de organização, operacionais e logísticos diferentes dos anteriores.
 
Visava-se então, em primeiro lugar, a preparação e realização das Ma­nobras Divisionárias de 1953 pelas quais se aferiria a nossa aptidão para singrar e participar com uma Divisão de Infantaria nas necessidades da Aliança.
 
Não havia, porém, tempo e muito menos meios para reorganizar e instruir todo o Exército nos novos moldes de instrução e organização. Assim, temporariamente, a par da organização e instrução antecedentes, passou a considerar-se também nos estabelecimentos de ensino e nas unidades o modelo “americano”, designando-se aquele por Tipo P (Tipo Português) e o último por Tipo A (Tipo Americano). A transformação sucessiva e progressiva do primeiro para o segundo modelo, que só pôde ser completada dois ou três anos depois, em especial quanto à organização, originaria algumas confusões no espírito de adaptação de algum pessoal.
 
Era essa transformação que os três oficiais com o Curso Geral de Estado-Maior já referidos nos domínios possíveis, tinham por missão implantar, no âmbito possível, nos comandos e unidades do Exército do Estado Português da Índia.
 
Inicio do Serviço nos dois Comandos
 
Na manhã de 17 de Outubro (2ª feira), após as últimas apresentações, foram iniciados os trabalhos de estado-maior. O quartel-general das FTEI funcionava num velho palacete pintado de cor de boi, junto à avenida que acompanhava o Mandovi distribuindo-se pelo amplo salão do primeiro andar, que também servia de biblioteca, e pelos compartimentos contíguos os gabinetes do comandante, dos chefe e subchefe do estado-maior, da repartição geral e das secções e comandos operacionais; no rés-do-chão funcio­navam todos os serviços.
 
Perante a natureza do clima local, geralmente quente e muito húmido, mesmo no período da monção, que conduzia a incomodativo “depauperamento” físico para o pessoal metropolitano, o quartel-general funcionava das 07h30 às 13h30, sem interrupção, seguindo-se o almoço e deixando a tarde livre. Geralmente, após a refeição, fazia-se uma boa sesta, aproveitando-se a seguir o fim de tarde, até ao jantar, para deambular pela Baixa e contactar com a vida e as populações da cidade.
 
Em relação à distribuição de funções, primeiro acto da reorganização do Serviço, as Informações e Operações foram entregues a um dos oficiais c/CGEM (o autor destas notas), libertando das mesmas o chefe da Repartição Geral, e a Logística e o relacionamento operacional com os Serviços a cargo de segundo oficial c/CGEM, o capitão Paranhos Teixeira, libertando o subchefe do estado-maior que, com o apoio dum eficiente subalterno, as vinha tendo a seu cargo. O terceiro oficial c/CGEM, capitão Martins Bragança, foi destinado ao Gabinete Militar do Comando-Chefe. Competia-lhe, além do serviço próprio do Gabinete no apoio do Governador, servir de elemento de ligação, muito necessário, com o Quartel-General das FT.
 
Vem a propósito referir que os chefes de estado-maior do Comando das FTEI e do Comando-Chefe, por razões pessoais que se desconheciam, se não relacionavam pessoalmente nem em serviço, o que por vezes se saldava por sérios inconvenientes para o adequado funcionamento dos dois Órgãos. Esta situação era, no entanto, minorada pelo excelente relacionamento e camaradagem existentes entre a generalidade dos outros oficiais do Quartel-General e do Gabinete Militar.
 
Revisão de Atribuições e Remodelação de Documentos
 
O serviço de estado-maior decorria efectivamente à “antiga portuguesa”, quer nos estudos e documentos elaborados e difundidos, quer no relacionamento administrativo, operacional e logístico com as unidades subordinadas. Todavia, diga-se, funcionava e cumpria efectivamente a sua missão.
 
Então, sob a coordenação e apoio do subchefe do estado-maior, capitão Vieira de Araújo, oficial de excelente trato, sempre activo, dedicado e preocupado com o que do mau relacionamento dos chefes de estado-maior pudesse resultar de inconveniente para o Serviço e para o exercício do comando pelos responsáveis, que havia frequentado o Curso Complementar de Estado-Maior dois anos antes e, portanto, ainda no Tipo P, iniciou-se tanto quanto possível a tal “americanização” dos trabalhos e documentos de estado-maior e dos arquivos correspondentes nos domínios da Administração do Pessoal, das Informações, das Operações, da História e da Logística, tendo em conta, naturalmente, a estrutura militar e operacional já descrita em parágrafo anterior.
 
Especificamente quanto às Informações e à sua congénere Contra-Informação, de que eram fontes principais os Órgãos de Imprensa local e da União Indiana recebidos em Goa e extractos da correspondência dos “presos políticos” da Aguada, provenientes dos “satiagrahas” em tempo detidos - esta era lida por graduado (Sargento Datharama) versado, além do português, no inglês, no indi, no concani (dialecto local) e no marata, que merecia toda a confiança - (infelizmente, não deveria ser assim), melhorou-se o número e articulado dos documentos elaborados, começou a reunir-se e a actualizar elementos da “Ordem de Batalha” das Forças Armadas Indianas de interesse para os três distritos do Estado, elaboraram-se estudos das condições meteorológicas e do terreno e relatórios periódicos de Informações, intensificou-se a pesquisa de notícias e realizaram-se inúmeros reconhecimentos do terreno para além dos que se tornavam imperativos quando circulavam boatos de assaltos a postos ou destacamentos ou estes, infelizmente, já tinham sido concretizados.
 
Do ponto de vista operacional, remodelou-se num ou noutro ponto o dispositivo de cobertura do território de cada distrito, metodizaram-se “à moderna” estudos e documentos e, após elaboração e conclusão de cuidado Estudo da Situação, depois mantido actualizado, e de se haverem ponderado os clássicos factores - Missão, Inimigo, Terreno e Meios - foi estruturado e difundido o Plano de Operações correspondente - o “PLANO DE OPERAÇÕES GRALHA”, de 201500JUN56 - cujo título ficou a dever-se à chilreada permanente de tais aves em torno do edifício do Quartel-General - que iria substituir toda a documentação operacional até então em vigor nos comandos e unidades.
 
 
6.  Factores e Contexto do Plano “Gralha”
 
 A Missão
 
As últimas Missão e Ideia de Manobra difundidas pelo Secretariado-Geral da Defesa Nacional para a defesa do território do Estado impunham claramente “defesa do território dos distritos e o retardamento do eventual inimigo pelo maior tempo possível, a fim de permitir activar a comunidade internacional e obter o apoio indispensável” - este naturalmente diplomático e, eventualmente, militar.
 
Todavia, por meados da década de cinquenta em apreço, espelhando o pensamento oficial - político, estratégico, táctico e militar - que então existia sobre a defesa do Estado Português da Índia, dois outros contextos sucessivos de “missões” haviam sido difundidos, cujo espírito se englobava dum modo geral no da “Missão” precedente. Os dois contextos são os que figuram no “Relatório correspondente à visita que o então General CEME fez ao Estado em Janeiro de 1955” e no “Plano de Operações Gralha” já referido.
 
a) Missão constante do ”Relatório” de 1955
  1)     Forças Terrestres:
“Fazer face a todos os ataques em terra, quaisquer que sejam a sua natureza e envergadura, lutando até ao último extremo sobre as posições que lhes tenham sido fixadas e, dominada a sua resistência organizada, prolongar a luta onde for possível através de intensa acção de guerrilha.”
  2)     Forças Navais:
“Garantir o exercício da Soberania Nacional em águas territoriais e cooperar com as Forças Terrestres, quer apoiando-as directamente, quer assegurando a ligação por mar entre todos os territórios de Goa, Damão e Diu.”
(O enclave de Nagar-Avelly, ocupado no ano anterior, já era considerado facto consumado).
 
b) Missão constante do Pl Op “Gralha”, de Junho 1956:
“Realizar acção inicial de gastamento levada o mais longe possível e fazer face a todos os ataques quaisquer que sejam a sua natureza e a sua envergadura, ocupando, organizando e defendendo uma posição (final) que, apoiada num obstáculo natural e no mar, cubra a região Pangim-Mormugão, impedindo a todo o custo a sua queda em poder do inimigo”
(A posição final, pelas suas condições de defesa, que se previa fossem “organizadas”, era a península de Mormugão até à linha Cortalim-Bogmaló, para ela concorrendo as unidades da Reserva inicialmente a ela destinada, um Agrupamento Táctico (‑), e todas as que, cumprida a missão, tivessem podido retirar da frente).
 
O Inimigo e os Meios
 
As tarefas decorrentes do cumprimento da Missão, eticamente imperativo, tinham em vista um Inimigo forte em meios de todos os tipos, bem instruídos e equipados e cuja força efectiva em torno dos distritos podia facilmente “engrossar” para um Corpo de Exército apoiado por meios navais e meios aéreos guarnecidos com pessoal que tinha também tido larga experiência de combate colhida na Segunda Guerra Mundial. Em confronto com a nossa pequena e irregular força de curto nível divisionário, sem apoio aéreo, e com pequeno apoio naval, era claramente evidente que o potencial relativo de combate lhe era inteiramente favorável, devendo pensar-se em face do que se conhecia da sua Ordem de Batalha e das características dos seus meios que poderia facilmente conseguir contra o Estado uma superioridade de 5 para 1 ou outra que lhe seria ainda mais favorável.
 
Tornava-se, portanto, evidente, que o apoio diplomático realizável tinha de ser tratado em tempo adequado para poder ter efeito e, quanto ao eventual apoio de meios de força, não se vislumbrava qual o país do Ocidente que poderia e desejaria montá-lo e fazê-lo funcionar para evitar um ataque e uma ocupação, tanto mais que as limitadas dimensões dos territórios possibilitavam da parte do inimigo uma acção relâmpago. Embora se evitasse referi-lo, em documentos oficiais jamais apareceu nem poderia acontecer, era claro que a “pequenez” do território dos três distritos e dos seus meios de defesa perante o “colosso” que lhe fazia constante sombra e que procurava, de quando em quando, exibi-la, constituía sentimento vivo e permanente em todo o pessoal. Todavia, cada qual pensava honrar a sua devotação à Pátria, mas vogava também na Fé de que ele, o colosso, acabasse por respeitar três exíguas parcelas da Península do Hindustão que historicamente lhe não pertenciam.
 
Tal sentimento de “pequenez”, mesmo em relação aos 60 por 40 quiló­metros do território de Goa, manifestou-se claramente e foi preocupante quando, pelos fins de 1955 e meados de 1956, respectivamente, a União Indiana decidiu pôr entraves à passagem de malas de correio, de um para o outro lado das fronteiras e, fundamentalmente, quando impôs a exigência de os aviões da carreira aérea entre os distritos não sobrevoarem território indiano, obrigando os pilotos a voar bem ao largo da costa e a fazer-se aos aeródromos, para aterrar, perpendicularmente à orla marítima.
 
O Terreno e os Objectivos
 
O território do distrito de Diu, nos seus 73 Km2 de superfície, com a sua imensa e vigorosa fortaleza cinco vezes centenária, a pequena planície com três ou quatro povoações que a cercam e a sua guarnição militar, apoiada por um navio, constituíam em si mesmo um objectivo, cuja defesa teria de bastar-se por si própria. O território de Damão, com 160 Km2 (Damão Grande e Damão Pequeno) e os enclaves de Dadrá e Nagar-Avelly, estes com 290 Km2, já ocupados pela União Indiana em 1954, constituíam outro objectivo cuja defesa, com os meios ao tempo atribuídos, teria também de resolver por si a situação que se lhe deparasse.
 
O território do distrito de Goa, a nossa “Jóia do Oriente”, concentraria o esforço principal e dominante da defesa do Estado. De cerca de 60 quiló­metros no seu máximo comprimento, entre o Rio Tiracol, a norte, e a linha de fronteira de Polém, a sul, e de cerca de 40 na sua máxima largura na sua parte média, entre a linha de costa e a linha de fronteira de Surla-Dudhsagar, a leste, era todo ele muito arborizado e humanizado. Plano e sem linhas de água transversais que pudessem constituir obstáculo para sul da do meridiano da foz do Rio Mandovi, apresentava-se por outro lado bastante movimentado para norte do mesmo meridiano onde, além deste curso de água transversal largo e caudaloso, havia extensas áreas alagadiças em que se cultivava o arroz e que condicionavam a progressão de carros e viaturas ligeiras às estreitas vias rodoviárias. A região a norte do vale do Rio Mandovi, até ao Rio Tiracol que delimitava a fronteira setentrional do território, apresentava também manchas de terrenos arborizados e movimentados e formava na região de Maulinguém uma “brecha” que colocava um eventual invasor a cerca de 20 quilómetros de Pangim. Portanto, os Rios Tiracol e Mandovi e as áreas alagadiças, de arrozais que se formavam no vale deste rio constituíam obstáculo à progressão de viaturas mecanizadas.
 
O extenso vale litoral que o território formava era ainda barrado a leste pelas encostas de montanha, que iam até 700 metros de altitude, dos Gates Ocidentais, muito arborizadas e desprovidas de estradas e caminhos utili­záveis por tropas motorizadas.
 
Objectivo principal do território: área de Pangim, a capital, associada à da península de Mormugão, separadas pela larga bacia do Rio Zuari até à passagem Agaçaim-Cortalim. Do ponto de vista operacional, este objectivo poderia ser subdividido em dois Objectivos menores ou subobjectivos: o de Pangim para forças invasoras de norte e o de Mormugão para forças do sul ou de leste.
 
Eixos de Penetração e Articulação da Defesa de Goa
 
Considerando objectivos, obstáculos, vias de comunicação e a permeabilidade geral do terreno, considerou-se serem mais favoráveis a um invasor os seguintes eixos de penetração:
 
A) O que, por sul, por Polém e Margão, conduzia à península e ao porto de Mormugão, o mais utilizável por meios blindados e mecanizados;
B) O que, por norte, pela “brecha” de Maulinguém, seguia por Bicholim para Pangim, permeável a forças motorizadas;
C) O que, por leste, por Darbandorá e Pondá, poderia seguir para Pangim ou para a península de Mormugão.
 
O Eixo Sul, permitia deslocamento rápido sobre a Península de Mormugão.
O Eixo Norte, de percurso mais curto, permitia cair rapidamente sobre a capital embora deparasse na sua parte final com a larga foz do Rio Mandovi, que havia que atravessar para concretizar o controlo do objectivo - correspondia, aliás, à área em que desde 1954 havia mais subversão e terrorismo e, portanto, em que o inimigo encontraria maior apoio das populações. Era, ainda, desse lado que se encontravam aquarteladas as mais próximas tropas indianas.
 
O Eixo Leste, na parte média do território, pelas características monta­nhosas do terreno apontadas e escassez de estradas, não era considerado predominante. Tal eixo, no entanto, era o que poderia conduzir mais rapidamente à península de Mormugão.
 
Não havia quaisquer indícios da parte do inimigo que levassem a considerar as suas preferências de eixos em caso de ataque ao território do distrito.
 
(É de referir desde já, até por razões a seguir apontadas, que, inteiro conhecedor da nossa Ordem da Batalha nos três distritos e do esquema geral do seu emprego no terreno, as Forças Armadas da União Indiana montaram em Goa uma manobra terrestre, apoiada por meios aéreos, na qual, realizando a surpresa, contrariaram a manobra do Plano “Gralha” e doutros como o Plano “Sentinela”, que se lhe seguiram. Foi essa manobra a de utilizarem efecti­vamente como um dos principais Eixos o de norte, por Bicholim, directo a Pangim, de não se empenharem em força no Eixo de Sul, por Polém e Margão, e de montarem um segundo esforço sobre Pondá, o qual, em conjugação com o principal, o de Bicholim, lhe permitiu correr sobre Mormugão e “cortar” a meio o território do distrito e a estrutura da defesa montada, atingindo rapidamente, também pela menor distância a vencer, o seu Objectivo.
 
Pela nossa parte, é evidente, não foram aparentemente consideradas no planeamento todas as suas possibilidades para realizar esta manobra e tomadas as medidas correspondentes. Assim, em apenas um dia, o território de Goa ficou com as suas partes norte e sul separadas pelo inimigo).
 
 
Os Meios Empenhados
 
Considerando, em conformidade, o espírito da missão, que o potencial relativo de combate era largamente favorável ao invasor, permitindo-lhe actuar onde, quando e como quisesse, e que os nossos meios do Exército e da Armada disponíveis, para além de não se dispor de Forças Aéreas de apoio, eram escassos e, em muitos casos, deficientes, foi a defesa articulada em 4 Agrupamentos Tácticos, um para cada um dos três eixos e o quarto para Reserva, e cada um deles constituído, dum modo geral, por 1 Batalhão de Caçadores, 1 Bataria de Artilharia, 1 Esquadrão de Reconhecimento e pequenos destacamentos de Engenharia e de Transmissões, sendo o Agrupamento orientado para o Eixo de Leste, pelas razões apontadas, o mais aligeirado.
 
A Reserva foi distribuída por Pangim e, na sua maior força, pela Península de Mormugão, sendo de resto nesta que, como se referiu, se estabeleceria o último reduto da defesa, com o concurso das unidades que fossem “empurradas” da frente. Aí devia proceder-se, em conformidade, previamente, à indispensável “organização do terreno”.
 
Deve dizer-se quanto a esta “organização” que até ao último trimestre de 1957 nada se fez na Península de Mormugão para prover à sua defesa pois a isso se opunham a falta de materiais e de equipamentos adequados e de verbas para proceder ao pagamento das expropriações necessárias e a consciência de que tais obras iriam prejudicar o património local de populações já muito carentes. A utilização ou expropriação cairia sempre em desfavor das Forças Armadas, aumentando a indiferença e a oposição a uma guerra que aquelas, na sua quase totalidade, não sentiam. Todavia, do ponto de vista de trabalhos de Engenharia, foi esboçado um Plano de Barragens que incluía além de obstáculos, a destruição de algumas pontes, tarefa que, em face das imensas possibilidades do adversário, acabaria por se saldar em prejuízo do património das populações goesas.
 
Na realidade, quanto a este último aspecto da conduta da defesa, deve repetir-se que era sentimento generalizado no seio das nossas Forças Armadas de que a luta contra uma eventual invasão das Forças Armadas Indianas teria de ser eticamente realizada no quadro da missão atribuída, mas que se tornaria inglória em face das possibilidades apresentadas pelo inimigo. Esta convicção seria cinco anos depois altamente reforçada quando, numa visita ao território do Estado em Novembro de 1960, o Tenente-Coronel CEM Costa Gomes, então Secretário de Estado do Exército, declarou na messe do Altinho (2) “que se avizinhavam graves acontecimentos em Angola, cujo dispositivo era necessário reforçar e que havia que fazer economias noutras Províncias, nomeadamente em Goa, onde o efectivo existente comportava 7 500 homens, o que era demasiado para fazer face a acções terroristas, mas sempre pouco para responder a uma invasão da União Indiana, hipótese que, a verificar-se, teria de ser resolvida por outros meios”3.
 
A defesa do Estado ficaria então, logo a seguir, entregue aos meios que no ano seguinte suportariam a Invasão, pouco mais que metade dos que estavam disponíveis em 1955 e já então escassos e mal equipados.
 
 
Ainda o Factor População
 
É de reafirmar, sobre o que apenas se aflorou anteriormente, que a atitude geral das populações naturais do território em relação aos militares no sentido de aceitarem ou não claramente e de constituírem ou não apoio às acções da defesa, era de retraimento e indiferença, pensando certamente que iriam depois ser administradas e julgadas pelo admitido e vitorioso invasor com as consequências inerentes. O mesmo problema se punha para aos luso-descendentes, com a sua vida e os seus bens enquistados no território, ainda que houvesse certa, mas não muito elevada, percentagem dos que conviviam abertamente com as autoridades civis e militares e se empenhavam em prestar-lhes colaboração.
 
No período de 1955-1957 em apreço, com Pangim pejado de militares portugueses de todas as raças, quer da guarnição, quer de aquartelamentos próximos, como os de Velho Goa, sempre foi harmónica, no entanto, aliás, a convivência e a aceitação mútua entre as tropas e as populações urbanas. Pelo que respeita às populações rurais, era diferente, no entanto, o seu comportamento: sempre tímidas e retraídas, não poucas vezes fugiam das estradas para os arrozais sempre que avistavam militares e jipes a circularem nas estradas próximas.
 
Dizia-se a este propósito que tal comportamento fugidio se devia ao exacerbado autoritarismo implantado naquelas terras por Afonso de Albuquerque no primeiro quartel do século XVI e depois continuado pelos vice-reis que se lhe seguiram, circulando também o boato de que, em princípios de 1955, as populações indianas costeiras tinham fugido apavoradas para o interior do território quando lhes disseram que a Esquadra Portuguesa de Mormugão iria atacar as aldeias ao longo da costa até Bombaim. Resquícios, diziam, da fama granjeada pelo nosso egrégio fundador do Império do Oriente.
 
O “Pico Terrorista” de 1956 e o Juramento de Bandeira
 
Já estava em curso a intensificação dos ataques a postos fronteiriços e no interior - um deles foi mesmo contra o posto de Polícia de Betim, na margem esquerda do Mandovi, em frente do Palácio do Hidalcão, onde amarravam os barcos da travessia quotidiana do Rio - quando, aproveitando o termo da instrução de recruta duma companhia de naturais goeses destinada à guarnição, o chefe do estado-maior decidiu fazer uma cerimónia alargada do Juramento de Bandeira respectivo para se porem em movimento todas as tropas, materiais e viaturas que, sem prejuízo da sua segurança e dos seus aquartelamentos, as unidades do território pudessem deslocar. O evento teria influência psicológica positiva sobre as nossas tropas, sempre acantonadas nas suas áreas, e mostraria à União Indiana e aos Goeses, encobrindo tanto quanto possível deficiências, que ali residia uma força que, apesar de pequena, tinha entusiasmo, era coesa e estava pronta para lutar.
 
Estávamos, creio, em fins de Fevereiro, a dois meses do início da monção de inverno e, em poucos dias, construiu-se uma bancada de cerca cem metros no extenso areal da Praia de Caranzalém, logo a seguir ao Largo do Campal, em Pangim, cobrindo-a de vistosos panos brancos e vermelhos e dotando-a com todas as cadeiras que conseguiram reunir-se na cidade. As unidades prepararam o pessoal e viaturas, fez-se cuidado ensaio e no dia da cerimónia encontravam-se formados em frente da tribuna, tendo atrás de si o rio e as Fortalezas dos Reis Magos e da Aguada, impecavelmente fardados, armados e equipados, cerca de 1 800 homens, com os carros “Bren” e canhões anticarro da infantaria e meios de artilharia, cavalaria e engenharia, concluindo-se a cerimónia com aparatoso desfile.
 
Fizeram-se dezenas de convites individuais extensivos às famílias, tendo havido o cuidado de os enviar especialmente a luso-descendentes, e muitos estiveram presentes, cujo apego à nossa política e aos militares era mais duvidoso ou era claramente contrário. A população de todas as raças e castas acorreu em massa e não se cansou de aplaudir as diversas actividades apresentadas desde que, com salvas de artilharia, foi hasteada no recinto a Bandeira Nacional e tocada a “Portuguesa”.
 
Presidiu à cerimónia o Governador-Geral e Comandante-Chefe e estiveram presentes todas as entidades superiores do Estado. Durante dias, as estradas de todo o distrito tiveram o desusado e intenso movimento imposto pela preparação e realização da cerimónia a que a Imprensa e a Rádio locais deram também adequada projecção
 
 
7.  Reorganização do Comando-Chefe
 
Em meados de 1956, aproveitando o fim da comissão no Estado do Brigadeiro Monteiro Libório e a nomeação do chefe do estado-maior do quartel-general, Major CEM Jaime Silvério Marques, para outras funções, o Comandante-Chefe propôs, e o SGDN aprovou, a reorganização dos dois comandos no sentido de se economizarem efectivos de oficiais, de se lhe conferir maior funcionalidade e de conseguir melhor e mais fácil ligação entre Repartições, Secções e Serviços no desempenho das respectivas actividades.
 
Em síntese, o comando das FTEI foi absorvido pelo Comando-Chefe, ficando então este com a constituição seguinte:
a) Comandante-Chefe, General Bernard Guides;
b) Quartel-General,
  ­– Chefe do Estado-Maior - Major CEM Hermes de Araújo Oliveira;
     - Subchefe do EM - Capitão CEM Vieira de Araújo, depois substituído pelo Major CEM Barros Rodrigues;
    - 1ª Repartição - Capitão Inf Vieira Ribeiro;
    - 2ª Repartição - Major CEM Henrique Chagas Lopes;
    - 3ª Repartição - Capitão Inf C/CGEM Lopes Alves;
    - 4ª Repartição - Capitão Inf c/CGEM Paranhos Teixeira;
    - 5ª Repartição (Assuntos Civis e Acção Psicológica) - Capitão Inf
C/CGEM) Martins Bragança;
    - Adjunto da Armada - 1º Tenente de Marinha H. Guimarães;
    - Adjunto para a Aviação.
c) Chefias de Serviço,
  - As que faziam parte do ex-QG/FTEI.
d) Arranjo Interno - O bloco Informações, Operações, Instrução, Organização, Assuntos Civis e Acção Psicológica funcionavam junto do Chefe do Estado-Maior, no Palácio do Hidalcão, e o bloco Pessoal, Administração, Logística e Serviços, com o Subchefe do Estado-Maior no edifício do antigo comando das Forças Terrestres.
Como anteriormente, a PEI e a GFEI, continuaram a depender administrativamente do Governo-Geral e, operacionalmente, do Quartel-General do CCFA através da 3ª Repar-tição (Operações).
 
 
8.  A Invasão e a Imprensa Mundial
 
Considerações Gerais
 
Os órgãos da Imprensa de muitos países acompanharam a preparação da invasão nos campos político, diplomático, estratégico e militar e a sua ulterior execução com comentários que, podendo nalguns pontos não coincidir com os da ponderada análise constante da obra do Tenente-General Cabral Couto, poderão noutros esclarecer aspectos que influenciaram a atitude de Nehru ao ordenar o desencadeamento da “Operação Vijay”. Não deve olvidar-se, no entanto, o facto de aqueles terem sido escritos “a quente”, isto é, quando a invasão estava prestes a ser desencadeada ou já em efectivação, então com base nas escassas informações de momento disponíveis, e os últimos o serem “a frio”, com base em documentação, opiniões e elementos bibliográficos, que o Autor relaciona, já estudados e difundidos.
 
Acresce registar em apoio, talvez, das duas situações que o Tenente-General Cabral Couto viveu também “a quente”, como combatente, quer o desenrolar das acções de guerra, quer a vida em campo de prisioneiros que se lhe seguiu.
 
Os Porquês Imediatos da Invasão
 
No âmbito do desejo sempre manifestado pelos sucessivos governos indianos de libertarem toda a Península do Hindustão de resquícios “colonialistas”, constituíram eventos imediatos, de iniciativa ou estranhos aos mesmos governos, que culminaram na invasão do Estado, a par doutros menos impor­tantes, os seguintes:
 
a) Os designados “ventos da História” que começaram a “soprar” ainda antes do termo da Segunda Guerra Mundial e abrangeram todos os territórios ainda dependentes de países europeus e eram activados por terceiros países;
 
b) Os resultados da Conferência de Bandung, em 1955, e da Conferência do Cairo, em 1957, esta também já com a presença de países árabes e muçulmanos, nas quais foi acentuado o caminho para a indepen­dência e nas quais o chefe do governo indiano, Nehru, se assumiu figura dominante;
 
c) Necessidade de o governo indiano dar força à Opinião Pública e de a retirar à Oposição que criticava a sua inacção perante a ocupação de cerca de 12 000 milhas quadradas de território indiano na fronteira dos Hymalaias levada a efeito meses antes pela República Popular da China;
 
d) As eleições para o Congresso em 1962 que Nehru, o Ministro da Defesa, Krisnha Menon, e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dessai, este com interesses particulares na exploração do ferro em Goa, sujeito a baixos impostos, não queriam perder e, pelo contrário, aumentar votos com a operação;
 
e) Produções de ferro e manganês de Goa que o governo indiano queria acautelar e cuja venda tinha como principais destinatários o Japão, a Alemanha e a Itália, tendo as mesmas orçado em seis e cinquenta e três milhões de toneladas, respectivamente, durante o ano da Invasão, o de 1961;
 
f) Importância do porto de Mormugão, o melhor da costa indiana, para a ligação marítima com a Europa e países africanos e asiáticos;
 
g) Precedente criado pela França no abandono mais ou menos voluntário das suas possessões na costa ocidental da Península;
 
h) Acção persistente do grupo esquerdista do Congresso, liderado pela deputada comunista Asuf Ali, alcunhada a “Passionária Indiana”, que acompanhou pessoalmente as tropas invasoras;
 
i) Apoio declarado à invasão por parte da então Rússia Soviética, da China Popular e dos países recém independentes do domínio europeu;
 
j) Acção psicológica e enganosa persistente do governo indiano, proclamando ao Mundo constantes incidentes nas fronteiras provocados pelas tropas portuguesas, abertura de fogo contra um navio indiano da Ilha de Angediva e instabilidade permanente nos três distritos com perseguição das populações, eventos na realidade jamais verificados;
 
m) Proclamação de Nehru, referindo que se impunha “levar a liberdade e a civilização aos nossos irmãos, reduzidos à condição de animais selvagens”.
 
Forças de Invasão
 
No seu excelente trabalho, o Tenente-General Cabral Couto refere com adequado pormenor os efectivos utilizados pelas Forças Armadas Indianas a forma como o foram. Ainda sem dados certos neste domínio, a Imprensa apontava na altura do ataque uma organização tipo Corpo de Exército com 45 000 homens (tropas “sikhs” e “gurkas”, 30 000 num escalão avançado e 15 000 no escalão recuado, apoiados por Aviação de bombardeamento e combate (aviões Camberra) e uma Esquadra com cruzadores e outros navios. de combate e de apoio.
 
Noticiava também a Imprensa que as forças invasoras eram seguidas por numerosos grupos de populares, recrutados entre os desordeiros das principais cidades, com vista ao saque dos bens goeses, e que o Exército Indiano pensava ir encontrar 10 000 militares portugueses nos três distritos, o que lhe conferia uma superioridade, clássica, de 3 para 1. Na realidade, considerando o efectivo total da defesa então presente apontado pelo Tenente-General Couto, de cerca de 5 400 homens (5 395) - 4 160 em Goa, 800 em Damão e 435 em Diu, incluindo os de momento incapazes para o combate - essa superioridade era de 8 indianos, bem armados, equipados e apoiados, para cada português, este deficientemente armado e equipado e sem apoio de Aviação.
 
A nossa Força Naval, com o Aviso Afonso de Albuquerque e as Lanchas Sirius, Antares e Vega, abrangia 208 combatentes.
 
Os mesmos Órgãos de informação situavam o Quartel-General da Invasão em Belgão, com o Major-General Candeth, a 100 quilómetros da fronteira leste de Goa, operacionalmente dependente do Quartel-General Meridional do Exército, com sede em Poona, este comandado pelo Tenente-General Choudoury.
 
Decurso e Conduta da Invasão
 
Os Órgãos de Imprensa publicados nos dias 18 e 19 de Dezembro, domingo e segunda-feira, dias principais da invasão, e os dos dias a ela imediatamente anteriores e posteriores não se alargaram em notícias e comentários sobre o acontecimento, com particular destaque para os indianos. A estes, de resto, não foram fornecidos quaisquer elementos de informação, tendo todos os seus agentes sido proibidos de acompanhar as tropas, julga-se, para que não pudessem constatar in loco serem falsas as alegações do governo indiano quando se referia a populações goesas mal tratadas e gemendo às dezenas em prisões miseráveis. Com grande pasmo, só iriam encontrar efectivamente e adequadamente tratados 7 presos no Forte da Aguada.
 
O início do movimento, segundo os mesmos Órgãos teria sido às 04h00 da manhã de 18, verificando-se a abordagem da fronteira cerca das 07h00, ao mesmo tempo que eram bombardeados pela aviação alvos em Pangim e Mormugão. Pelo fim do dia, a coluna do norte, por Bicholim, tinha atingido a margem direita do Rio Mandovi, em frente de Pangim, cuja ocupação, bem como de todo território de Goa, seria levada a efeito no dia seguinte, 19, dando-se por terminada a Operação em 20, terça-feira, ao princípio da tarde com a prisão do governador General Vassalo e Silva no Palácio do Hidalcão.
 
Cerca de 2 000 goeses teriam aplaudido da outra margem do Rio Mandovi a chegada das tropas indianas à sua margem norte. Um oficial do nosso Exército referiu, no entanto, no Seminário da Liga dos Combatentes atrás referido, que não se teria concentrado maior número de goeses em virtude de elementos da Polícia do Estado da Índia terem percorrido antes a cidade a aconselhar os habitantes a ficarem em casa visto os indianos irem bombardeá-la.
 
A ordem para a invasão teria sido dada por Nehru na noite de 17 para 18, após ter conferenciado uma vez mais com o embaixador Gailbraith, ameri­cano, que lhe fora propor uma moratória de seis meses, quem teria respondido que era impossível adiar uma operação “sobre rodas” cuja data já havia sido mudada duas vezes.
 
Acrescentavam ainda os Órgãos de Imprensa que, após os tiros de preparação por meios do Exército, da Marinha e da Força Aérea sobre alvos específicos, as forças de invasão tinham ordem para só abrir fogo sobre as tropas portuguesas se estas resistissem à sua progressão.
 
 
9.  Considerações Finais
 
Consequências da Invasão
 
A operação desencadeada com o êxito já admitido pelas forças armadas da União Indiana encerrou a presença portuguesa, velha de 466 anos, no Hindustão, deu novo alento aos partidos subversivos das outras parcelas do ainda Ultramar Português para “fazerem a sua guerra de libertação” e fortaleceu o espírito de não-aceitação e de incompreensão dos países com assento na ONU em relação à nossa política ultramarina, com destaque para a Rússia Soviética, China Popular, Cuba, Países Satélites da Rússia e alguns países ocidentais. De resto, ao afirmar que a presença portuguesa em Goa era ofensa inaceitável para a sua nação, Nehru era sempre aclamado por muitos milhões de africanos e asiáticos de todas nacionalidades ansiosos por lhe seguir o caminho. Todavia, ao dar a sua ordem para a invasão, o chefe do governo indiano, proclamado pacifista e propagandista da resolução pelo diálogo dos problemas internacionais, viu o seu crédito altamente prejudicado, ainda que os interesses políticos de alguns países ocidentais e a necessidade de captarem a simpatia dos designados “países não alinhados”, de que ele era entidade influente, tivessem conduzido a que esse prejuízo se fosse esbatendo pouco a pouco, até quase desaparecer.
 
A efectivação da invasão demonstrou mais uma vez a fragilidade do Conselho de Segurança, no qual a Rússia era elemento dominante. De facto, perante a ameaça que estava prestes a concretizar-se, Portugal pediu a reunião urgente do Conselho em 17 de Dezembro, um dia antes da data fatal. Porém, marcada para 18 de Dezembro, às 09H00, quando, embora tarde, ainda haveria tempo para fazer deter as tropas indianas nas posições então ocupadas e obter um cessar-fogo, a reunião não chegou a realizar-se por se saber de antemão que o resultado nos seria negativo. O Conselho viria a considerar, no entanto, horas depois, quando a agressão já estava francamente em curso, “um cessar-fogo imediato, o termo dos ataques e a retirada das tropas indianas do território goês”. Mas, então, também, nada resultaria: a Rússia Soviética, no âmbito da hostilidade já estabelecida contra Portugal, deu o seu veto a tal resolução que condenava claramente a União Indiana.
 
A invasão e a falta de apoio da Inglaterra ao reforço dos nossos meios, de que falarei a seguir, puseram em cheque o Tratado de Whitehall de 1661, redeclarado em 1940 e 1942, o qual testifica que “Sua Magestade Britânica obriga-se a defender e a proteger todos os colonos e colónias pertencentes à Coroa Portuguesa”. Situação sem dúvida muito difícil para o Reino Unido que era o ter de se impor perante um poderoso membro da sua Comunidade, ao qual treze anos antes tinha dado a independência. Mas, era, efectivamente, o que fora acordado havia trezentos anos!...
 
Referiu ainda a Imprensa internacional, entre outras afirmações, que, consumada a ocupação, se assistiu ao saque de mobílias, arcas recheadas de roupas, livros antigos e outros valores e que muitas foram as viaturas militares ou conduzidas por militares, algumas com atrelados, que tomaram recheadas o caminho de regresso ao território indiano.
 
Espionagem e “Quinta Coluna”
 
Escreve o Tenente-General Cabral Couto no seu livro que existiriam entre as nossas Forças Armadas elementos naturais “quinta-colunistas” que cola­boraram na invasão. Tal não pode constituir surpresa em face da identificação e ligações familiares das populações de um de outro lado da fronteira, de haver militares indianos, alguns de alta patente, com familiares em Goa, de haver entre a população goesa, mesmo luso-indianos conhecidos, simpatizantes com as reivindicações indianas, não sendo, portanto, difícil aos seus governantes e entidades militares montar e fazer funcionar redes de informadores e de colaboracionistas nos nossos departamentos e unidades, nomeadamente naqueles em que houvesse tropas localmente recrutadas ou trabalhadores civis naturais. Aliás, a nossa contra-informação foi sempre incipiente, resumindo-se nos seus resultados à identificação de uns tantos cidadãos, em regra com meios de fortuna, que sabíamos nos serem adversos, mas que verdadeira­mente nunca foram incomodados.
 
O seguinte exemplo do campo das Informações, de que fui, durante os dois anos da minha comissão “cego colaboracionista” demonstra claramente a situação que se vivia. Trabalhava comigo na Secção de Informações e Operações do quartel-general das FTEI, primeiro, e na Repartição de Operações do quartel-general do Comando-Chefe, a seguir, um amanuense do recrutamento local, o Sargento Datharama, que se distinguia entre os demais, todos metropolitanos, pelo extremo cuidado, prontidão e rapidez com que dactilografava as minutas manuscritas que lhe eram distribuídas, pelo que a maior parte dos docu­mentos de maior responsabilidade e grau de segurança - directivas, estudos, planos e ordens de operações, mensagens e outros - do meu e doutros departamentos lhe iam sempre parar às mãos. Esta situação, como afirmei, verificou-se continuamente durante os dois anos da minha comissão como seu chefe directo. Além disso, conhecedor, como já referido, além do português e do inglês, de diversas outras línguas e dialectos regionais, o sargento Datharama tinha também a seu cargo a leitura da correspondência destinada aos presos do Forte da Aguada ou por eles expedida, prestando depois informação, que ele fazia sempre em voz baixa e comedida, sobre o seu conteúdo e dando opinião sobre o destino que devia dar-se-lhe - ou seguia para o preso ou era arquivada. Acrescente-se que nas suas funções o sargento Datharama jamais se comportou de modo a merecer desconfiança ou censura, sendo além disso sempre correctíssimo e dedicado no seu comportamento pessoal... E tinha outra qualidade!... Não se importava, mesmo só, de trabalhar fora das horas de serviço do quartel-general...
 
Ora, decorridos dois ou três meses sobre a invasão, quando, na 2ª Repartição do EME, lia um jornal inglês com pequenas notícias sobre a actividade das forças indianas da guarnição de Goa, dei com uma pequena local na qual se dava notícia de que, em cerimónia militar realizada em Pangim, havia sido promovido a tenente e condecorado por bons serviços um graduado de nome Datharama... por “bons serviços”, tratava-se certamente das notícias e documentos do Exército Português de que dava regular conhecimento às autoridades indianas... Ainda que com ligeira dúvida, tenho admitido tratar-se do mesmo elemento, do dedicado Datharama que comigo serviu...
 
Mas, este, não constituiria caso isolado. Era voz corrente em Pangim por esse tempo que Mister Marathy, um goês ou indiano muito conhecido que dava lições de inglês a oficiais e sargentos dos comandos e unidades da guarnição de Pangim, em especial a oficiais do Quartel-General, era também silencioso e devotado informador do Exército Indiano.
 
O Dia da Invasão vivido no Estado-Maior do Exército
 
Por natural coincidência, em 18 de Dezembro de 1961, eu, que tinha servido até quatro anos antes nos quartéis-generais de Goa, estava, nomeado, por escala, de “serviço ao telefone” no Estado-Maior do Exército, em Lisboa. A delicada situação política e militar que se verificava em relação ao Estado Português da Índia determinara que, diariamente, durante o período de não funcionamento das repartições, houvesse sempre um oficial de Estado-Maior da 2ª Repartição em condições de ser contactado pelo Centro de Transmissões e tomar imediato conhecimento de qualquer mensagem urgente recebida de Goa sobre a mesma situação. Se tal sucedesse, esse oficial, em face do teor da mensagem, providenciaria para que o texto da mesma fosse presente à apreciação e decisão do Chefe do Estado-Maior do Exército, General Câmara Pina, ou à doutro Oficial-General por ele previamente designado. Esse “serviço ao telefone”, como a designação deixa ver, era normalmente desempenhado em casa.
 
Quando, ao fim da manhã de Sábado, 17 de Dezembro, fecharam as repartições para o fim-de-semana, havia conhecimento da montagem nos dias precedentes de forte e ameaçador dispositivo de forças da União Indiana com intenção, declarada, da invasão e ocupação dos três distritos, tendo-se a sensação de que, apesar das acções diplomáticas em curso, já não seria viável àquele país “enrolar” o mesmo dispositivo, quer pelo descrédito que tal medida acarretaria para a posição de força já assumida perante os países apoiantes, quer pelas consequências psicológicas ne­gativas que poderiam resultar para as forças preparadas e concentradas. Havia, no entanto, sempre a esperança de que, por intervenção provi­dencial de última hora de governante de país amigo, a invasão se não concretizasse.
 
Pelas catorze horas de Domingo, 18, o telefone tocou. Era efectivamente a Central de Transmissões do Estado-Maior a comunicar que tinha sido recebida mensagem relâmpago e “em branco” do chefe do estado-maior do quartel-general de Goa. Como a eventual perda de segredo já se poderia ter verificado, pedi que fosse lido o texto da mensagem. Sem mais comentários, referia-se no seu texto que o território dos três distritos estava a ser atacado desde a madrugada por forças indianas e pedia-se que fossem enviadas as munições do Lança-Granadas “Instalaza” (fabrico espanhol) pois tinha chegado sem elas.
 
Telefonicamente, também, comuniquei de imediato ao General Câmara Pina, que se encontrava em Sintra, o que estava a passar-se, tendo ele determinado reunião imediata no Estado-Maior - o que se verificou meia hora depois - de todo o pessoal que pudesse ter interferência no assunto da mensagem. Assim se fez e, após contacto com o Secretariado-Geral da Defesa Nacional, foi decidido despachar de imediato para Goa um avião militar com as munições pedidas, aproveitando-se o transporte para reforçar Goa com uma companhia de tropas especiais que viajariam como trabalhadores especializados. Solução de emergência, mas, sem dúvida, inadequada à força do inimigo e às suas possibilidades de realização em pouco mais de vinte e quatro horas dos seus objectivos.
 
O avião, no entanto, não chegaria a levantar voo, se esteve em algum momento pronto a fazê-lo. Tratando-se de transporte militar em situação de guerra embora não declarada, as escalas civis ou militares que era necessário utilizar não terão autorizado a sua passagem, incluindo Karachi, no Paquistão, cujo governo, já então em guerra surda com o da União Indiana, sempre nos facilitara as relações com Goa por via aérea. Seria o último acto, efectivamente não realizado, duma operação militar de defesa dos primeiros territórios que marcaram durante quatro séculos e meio a presença de Portugal no Oriente.
 
Conclusões
 
O drama do Estado Português da Índia atingira verdadeiramente o seu fim. As decisões tomadas no quadro da “descolonização” dos territórios do Ultramar consequentes do Movimento de Abril permitiram considerar o facto politicamente consumado em 1974 e que no ano seguinte, em 1975, fossem restabelecidas relações diplomáticas entre Portugal e a União Indiana, seguindo-se um plano de contactos e visitas de estado a confirmar essas boas relações - o Presidente da União Indiana visitou Portugal em 1990, o Presidente Mário Soares retribuiu a visita em 1994, incluindo Goa no seu roteiro, e o Presidente Cavaco Silva fez o mesmo em Janeiro de 2007 - “com boas perspectivas de entendimento político em vários domínios”.
 
Os dois principais protagonistas das posições políticas e estratégicas que culminaram com a invasão do Estado viriam a desaparecer, como é conhecido, em 1964 o Pandita Nehru - disse-se em Goa, entre os católicos, por castigo de S. Francisco Xavier pela invasão do território - e, em 1970, Oliveira Salazar.
 
 
10. A Terminar
 
A invasão e ocupação do Estado Português da Índia pelas forças armadas da União Indiana representou o início da perda dos nossos territórios do Ultramar, na África, na Ásia e na Oceânia e o resvalamento do Todo Nacional por plano inclinado que, se bem que muito apoiado por países amigos e organizações internacionais, não pode atingir ainda o nível de equilíbrio social e de desenvolvimento geopolítico por que se aspira.
 
Insistem alguns goeses na afirmação de que, se o governo português tivesse concedido em tempo a independência ou, pelo menos, a autode­terminação ao Estado, Nehru não teria determinado a sua invasão e ocupação e, consequentemente, que se estaria hoje perante um país inteiramente livre e com condições de vida muito diferentes, para melhor, pela utilização racional e intensiva das suas riquezas minerais e doutras potencialidades do território. Não se pode recuar, todavia, para aquilatar da certeza da afirmação.
 
A propósito deste sentimento, de verdade certamente ponderável, repita-se, será de considerar que a História se repete por vezes, ainda que com carizes diferentes de caso para caso, e que Portugal continua a estender-se actualmente por duas Regiões Atlânticas, a da Madeira e a dos Açores, cujo patriotismo e espírito de coesão das populações em relação ao País Continental, tomando as grandes decisões oportunas e adequadas, convirá cuidar. O Estado Português da Índia é já hoje um mito a afastar-se rapidamente do período áureo que percorreu na História, mas, mesmo como mito, pode aconselhar.
 
 
AGRADEÇO AO CAMARADA E AMIGO
GENERAL FRANCISCO CABRAL COUTO
A POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DE
ALGUNS DADOS E CONSIDERAÇÕES DO
SEU EXCELENTE TESTEMUNHO.
 
 
____________
  
*      Sócio Efectivo da Revista Militar.
 
 1 “Satiagraha” - O que se imola voluntariamente por uma causa; força da verdade.
 2 O Curso de Estado-Maior compreendia então: Curso Geral EM (1 ano), Estágio (2 anos), Curso Complementar EM (2 anos) e Estágio (1 ano), entrando-se ou não depois no Corpo de Estado-Maior.
 3 “O Fim do Estado Português da Índia - 1961”, Tenente-General Cabral Couto.
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Tenente-general

José Lopes Alves

Ex-Presidente da Direcção e Sócio-honorário da Revista Militar. Falecido em 30 de abril de 2018.

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