O Drama Espiritual das Forças Armadas. Estilhaços de uma vida castrense desfigurada.
O teor do artigo que aborda alguns dados biográficos do General Carlos Silva Freire e particularmente algumas passagens nele contidas e que se me referem pessoalmente e a actividades do Comando de que fui responsável, estimulam-me a abordar o assunto, repondo a verdade histórica, que o respeito pela memória do Chefe Militar biografado e, também, pelos leitores da “Revista Militar”, que me impõem. Assim faço apelo a mim próprio para cumprimento de mais uma missão, com a convicção de se tratar de esforço compensador, arrancado da inércia que o peso dos anos vai avolumando imparavelmente.
O breve trânsito do General Silva Freire como Comandante Militar em Angola integra-se no longo período em que exerci o Comando do “2º Agrupamento dos Transportes Aéreos Militares”, que organizei, dirigi e impulsionei (operacional e logisticamente); Aliás no cumprimento de honrosa missão, para defesa do ultramar Português em guerra, tal como me impunha o “Juramento de Bandeira”, nos termos constitucionais, que, livre e consciente, aceitei e subscrevi. Mais que uma comissão de serviço, o desempenho destas funções proporcionou-me a grata satisfação de ter “posto no ar”, com a eficácia requerida, uma “Ponte Aérea”, “cordão umbilical” do esforço de guerra de Portugal em três frentes, defendendo a sua integridade territorial e a vida e bens de portugueses de todas as etnias. Escassos os meios e poucos os executantes, levamos a tarefa até ao extremo limite das nossas forças. Aqueles tripulantes que tombaram no cumprimento da missão foram, singelamente, combatentes e soldados - não nas trincheiras ou nas picadas de ÁFRICA ou da ÍNDIA mas nos céus dos trópicos, que cruzaram em permanência todas as horas e minutos (dia e noite) nos meses de Março, 1961 a Abril, 1962. Não é próprio e ofende a sua dignidade que os portugueses de hoje o esqueçam e aqueles que nem sequer eram então nascidos deliberem ignorar. Se essa é atitude ditada por doutrinação política de “novas eras” - que sejam expulsos do nosso convívio. Nem então, nem agora, lutamos e morremos para açambarcar bens materiais - unicamente para defender a Honra da Bandeira.
Reivindicamos a sóbria verdade contra assédios de quantos a delapidem.
Tudo quanto acima se expõe responde:
1. ao que se contém no penúltimo parágrafo da página 230 do artigo da “Revista Militar” Nº 2461/62 de Fev/Mar 2007.
a) é surpreendente que o esforço das tripulações do “2º A.T.A.M.”, levado ao extremo limite da sua determinação, viesse um dia a ser apontado como uma espécie de “covert operations” ( “operação encapotada”), como que em segredo por razões políticas, sobrepondo-se a directivas operacionais emanadas do meu inalienável Comando. O trânsito pelas dependências de chegadas e partidas do Aerodromo-Base Nº1, de Figo Maduro, era a única forma de cumprir o desiderato: Aproveitar cada minuto das 24 horas do dia para que, de todos os dias dos meses, nenhum minuto fosse perdido.
Ingrata Pátria. À nossa decepção que se adicione a justa indignação da memória dos que tombaram a nosso lado - Capitão Piloto-Navegador David Dias Marques, 1º Sargento Mecânico de Material Aéreo Joaquim António.
(Vitimados por enfarte de miocárdio - Morte súbita após prolongadas missões operacionais de voo).
2. ao contraste que se procura estabelecer entre as funções de Estado-Maior e pedagógicas nos gabinetes e salas do Instituto de Altos Estudos Militares e a vida da “fileira”, “roçando as tarimbas dos quartéis ou provando o calor dos trópicos”.
a) as “tarimbas dos quartéis”, como Oficial de Dia à Base:
Arrear da Bandeira Nacional, precedido do toque regulamentar de Sentido;
Em ronda inesperada (às tarimbas das casernas), foram surpreendidas algumas praças deitadas. Seguiu-se a ordem de ”formar companhias” de toda a força presente, postada depois em “guarda de honra”, em continência à Bandeira, enquanto o clarim tocava os acordes de “apresentar armas” e a Bandeira descia no mastro, lenta e altaneira.
b) o “calor dos trópicos”… “Sangue, Suor e Lágrimas” …
Missão nocturna de evacuação sanitária da povoação de Farim, na Noite de Natal. Base Aérea de Bissalanca, Guiné Portuguesa.
Recordando a Família distante, assumi o comando do “C-47 Dakota”, para missão de risco em pista não preparada para voo nocturno, a 3 Km de base Inimiga a Sul do rio Cacheu. Dos feridos graves, por rebentamento de granada contra festa natalícia, três morreram no voo de regresso a Bissau.
Vinte jovens sobreviveram.
A “rebelião armada nacionalista” viu frustradas as suas intenções.
Não só as palavras de Mouzinho, ditadas pela amarga desilusão no acaso da vida e fermentadas num passado de glória (por ele mesmo ressurgido da apagada e vil tristeza) nos tinham levado a concorrer em renhida pugna académica à admissão como “cadetes da Bemposta” nos anos 1938/39. Terminado o curso da Escola do Exército, vivemos a iminência de Portugal entrar na II Guerra Mundial. O equipamento de voo de pilotos de caça, treinando intensivamente para o combate aéreo contra a temível LUFTWAFFE, era mais apelativo do que concorrer ao Curso do Estado-Maior, com as suas teorias e as suas não desprezíveis benesses.
Não só líamos Mouzinho mas também Lyautey, sintonizados com a “psicose da Guerra” de 1939/45;
“Desde antes da minha partida de França, como vós sabeis, eu tinha boas razões para não ter senão uma confiança moderada em certos procedimentos do pessoal dos Ministérios centrais e do Estado-Maior, reverências de admiração mútua, adoradores das reportagens fotográficas e das fórmulas sociais, distanciados das grandes correntes sinceras que a fileira apenas está apta a evidenciar, cheios de teorias, levando para os Comandos superiores as pequenas vilanias de escola, subserviências subtis, procura da suficiência, retratação da personalidade e da independência de espírito.”
No universo circundante da Europa ensanguentada dos “Senhores da Guerra” (“The War Lords”) assumíamos e ratificávamos a nossa vocação.
Contrariamente ao que se passava com a vida da sociedade portuguesa coeva, usufruindo da Paz, conseguida graças à superior clarividência da sábia política da “matreira e velha raposa” (Sic Art. em apreço da “RM”) Oliveira Salazar, a Aviação Militar - ainda integrada no Exército - encarando a perspectiva da guerra, olhava, sem se amedrontar nem desertar, o preço da atrição (baixas numerosa em treino operacional intensivo), com os pilotos da R.A.F., que nos enquadravam, vindos do T.O. do Norte de África e nos traziam “HURRICANES”, “SPITFIRES”, “BLENHEIMS” e, posteriormente, “AIRACOBRA-P37” e “LIGHTNING-P38” (estes últimos com pilotos da U.S Army Air Forces). O solo da Pátria conheceu a cor do sangue generoso de uma plêiade de pilotos, que morreram voando. Para que “da lei da morte se fossem libertando” os seus nomes encontram-se “gravados” no Preâmbulo do Pórtico do livro que lhes dediquei, no ano, já distante, de 1985. (“Bordo de Ataque” Coimbra Editora. Oferta á “Revista Militar” na pessoa do então Presidente da Direcção, General Bettencourt Rodrigues).
As anotações extraídas da agenda pessoal do General Carlos Silva Freire, bem como algumas notas de fundo de página, requerem algumas rectificações, Assim:
1. Pag 235 da “RM.” Nota de fundo Nº124 (09 JUN.)
A 01Mar fui promovido a Coronel, exercendo o Comando do “2º ATAM”.
Na circunstância, fui o “correio” para levar, em “mão própria” a carta do General Silva Freire. (“Bordo de Ataque” págª254)
2. Pag 237 da “RM.”. Nota de fundo Nº142.
A voz corrente e não desmentida indicava que o motivo da discórdia gravitava à volta da oportunidade política da implementação dos “Estudos Gerais Universitários” em Luanda. Adriano Moreira entendia que o assunto não era do foro do Governo da Província.
3. Pag 244 da “RM.”. Nota de fundo Nº195.
Tal como já referido, a minha missão era comandar o “2º ATAM”. Não desfrutando do dom da ubiquidade, não podia ter sido o comandante de avião do Aérodromo-Base do Negage. O nome indicado na agenda do General Silva Freire deve ser KRUG e não KRUS. (Tenente-Coronel Augusto Krug Bom oficial e piloto pioneiro da Aviação Militar, combatente na legendária Esquadrilha dos “VIRIATOS”, na Guerra de Espanha, na “cadena” de GARCIA MORATO.)
4. Pag 245 da “RM.” 17SET.
A atmosfera de febril e quase patológica inquietação vivida no dia-a-dia de Luanda está retratada com pormenor no livro “Bordo de Ataque” (Pag 253/254) A amotinação dos pára-quedistas foi consequência desta situação crítica de subversão de Comando e generalizada indisciplina.
5. Pag 248 da “RM.”
O acidente fatal com o Tenente-Coronel Lomelino verificou-se com avião “Nord-Atlas” e não “DO-27”. O primeiro tinha riscos acrescidos que obrigavam à maior vigilância dos tripulantes no acesso dos passageiros pela porta lateral esquerda, muito próxima do motor 1. O TenCor foi colhido pelo hélice em marcha lenta e por inadvertência dos mecânicos, menos atentos ao corredor de entrada dos passageiros.
6. Pag 250 da “RM”. Pag 267 do livro “Bordo de Ataque”.
10NOV1961.
O acidente fatal no Chitado, com avião “C-47 DAKOTA”
Vítimas mortais: dois Oficiais-Generais
- General Carlos Silva Freire, Comandante Militar de Angola
- Brigadeiro José Silva Correia, 2º Comandante da 2ª Região Aérea
- Oficiais dos Estados-Maiores respectivos, Sargentos e cabos da tripulação.
- Total - 18 mortos.
Comandante do avião - Capitão Francisco Fernandes de Carvalho
Co-piloto - Tenente Chagas
Segundo as conclusões do inquérito da Secção de Segurança de Voo
- Responsável principal: O Co-piloto
- Co-responsáveis: Comandante do avião
Comandante do Grupo Operacional da Base Aérea Nº 9 - Luanda.
Juízo ampliativo:
O co-piloto executou manobra de volta apertada em voo rasante, no limite da velocidade, provocando uma perda, sem recurso, por não dispor de altura suficiente para retomar o controlo, percutindo com o solo.
O Comandante do Avião pelo erro gravíssimo de confiar a pilotagem a um co-piloto inexperiente, retirando-se para a cabine de passageiros, em fase crítica de um voo de reconhecimento táctico.
O Comandante do Grupo Operacional da Base Aérea Nº 9, ao nomear a tripulação para uma missão de extrema responsabilidade. Ainda que o 1º Piloto tivesse a maior qualificação (aceito que não disporia de melhor na Base) com centenas de horas em comando de “DAKOTA”, a inexperiência do co-piloto tornava proibitiva tal nomeação.
NOTA TÉCNICA - O avião “C-47 DAKOTA”, devido a particularidades do perfil aerodinâmico das pontas das asas, perdia subitamente a sustentação em manobras de volta apertada, perto da velocidade de perda. Esta condição era, por vezes, negligenciada na instrução de voo a pilotos, omitindo as demonstrações compulsórias, em altitude de segurança. (acima de 1 500 metros).
Concluindo
O infausto acontecimento que levou à lamentável morte do General Silva Freire é espelho das dimensões do drama espiritual vivido pelas Forças Armadas Portuguesas e, por osmose, da sociedade em que integram e, por acréscimo, ao estado de desorientação que tem prevalecido noutras épocas e noutros países e, até, noutros continentes. Destaque-se a crise de sentimentos gerada em França, na derrocada das suas Forças Armadas, em 1940, após a invasão pela “BLIETZKRIEG” e a fuga das tropas inglesas, em DUNKERKE. Na dramática conjuntura tornou-se difícil ser militar Francês. Para onde seguir?
Na marcha fúnebre da derrota, as arengas de desespero, entre apelos e intrigas de “pétanistas”, “degaulistas” e “giraudistas”. O piloto de guerra Tenente-Coronel Antoine de Saint-Exupéry, tendo-se batido nos céus de Arras, desorientado escolhe o exílio nos Estados Unidos da América (ainda neutral) - Vida errática de exilado entre 1940 e 1943. Regressa a França e alista-se no seu Grupo de Reconhecimento “2/33”, baseado na CÓRSEGA, a partir de Maio, 1944. É abatido pela LUFTWAFFE sobre o Mediterrâneo, em missão de Reconhecimento Armado quando voa no seu caça-bombardeiro “LIGHTNING - P38” Nº223. A “RESISTÊNCIA” tomara forma e a França ressurgia das cinzas. Era a invasão pelo Sul e Antoine S. Exupéry morreu voando a 31 de Julho, 1944.
As grandes convulsões nas sociedades abalam os fundamentos de instituições como as Forças Armadas, que delas dimanam.
Nos tempos que correm, elas sofrem os abalos dessa crise e a sua identidade arrisca-se a olvidar virtudes intrínsecas, matriz da sua existência. Ousa-se, sem constrangimentos, advogar que a sua missão se restrinja a uma presença em forças internacionais de manutenção da paz, em terras e países longínquos, entregando a lacuna resultante no Território Nacional a forças militarizadas, como a Polícia e Guarda Republicana.
É por demais evidente que o futuro das Forças Armadas Portuguesas, que se pode antever, causa, no mínimo, inquietação e apela à meditação de quem a elas consagrou a existência. Elas, que foram o sustentáculo da Pátria em inúmeras crises da sua História secular, são credoras dessa grave meditação.
A instituição militar, na sua universalidade, criou um metabolismo próprio.
É ele que se ergue como o melhor garante da sua sobrevivência. São valores éticos que têm a apoiá-los e defendê-los, no dia-a-dia das sociedades em que se integram, características perecíveis e vulneráveis, próprias dos homens que as servem - com todas as virtudes, defeitos, grandeza e miséria da condição humana.
Em presença do que hoje se nos depara, as Forças Armadas de Portugal, espartilhadas a condicionalismos, que foram germinando distanciados dos valores morais que as suportaram, afigura-se que a atmosfera é de crise, o futuro incerto.
Pesam na circunstância efémeras opções políticas, opções distanciadas da grande mestra: “A vida militar prestante, não se aprende, Senhor, na fantasia - senão pelejando”. (Luís de Camões nos “Lusíadas”)
A procura de figurinos externos, nesta idade definida como a do grande consumo, da avidez e da abastança, arrasta consigo vírus perniciosos, susceptíveis de desvirtuar objectivos e, por acréscimo, obscurecer raciocínios, na busca de racionalizações inovadoras e espúrias. Não será nunca o mercantilismo, a procura de soluções militares compatíveis com idealismos libertários de “terceiras vias” que poderá regenerar virtudes como a disciplina e a prontidão para o combate - espontâneos ingredientes da sua essência vital. O desiderato pragmático de reduzir a sua função à eficácia no campo de batalhas amorfas, respirando atmosferas cosmopolitas de Comandos heterogéneos - poderá tornar políticos e governantes mais seguros nos seus pedestais, generosos na imaginação de “engenharia financeira” para as dotar com a última palavra tecnológica em sofisticado armamento. Porém, será ruinoso, enganador e potencialmente demolidor de uma identidade nacional que as diferencia e as afirma nas agruras das missões mais penosas.
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* Sócio Efectivo da Revista Militar.